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terça-feira, 20 de junho de 2017

Carne é assassinato

Entrando no restaurante universitário, ele e ela seguem sorridentes na fila, conversando, distraindo um o outro. Após o silêncio de se servirem encontram um lugar para sentarem-se. Enquanto outras pessoas esbarram nele para sair do lugar, ela se oferece para buscar o suco para os dois. De volta à mesa ela informa “Parei de tomar leite!” como uma criança que aprendeu a fazer algo maravilhoso, digno de orgulho.
            Ele, apesar de compreender que ela é vegetariana, não vê benefícios nisso, nem entende completamente o porquê. Mais desacreditado que surpreso responde:
            - Como assim?
            - Parei de tomar leite, não compro mais.
            Um riso inconveniente penetra o rosto dele.
            - Eu não vou te parabenizar por isso. – diz ele em tom de brincadeira - Como assim? E os queijos?
            - Ah, eu vou sentir falta. Queijo é muito bom.
            - Bom pra você. Por quê?
            - Já viu como fazem para tirar o leite?
            - Você diz isso por ser similar a trituração das vacas para virar carne moída?
            - Não, é pior!
            Ele detém-se para prestar atenção. Ela prossegue:
       - Elas nascem, crescem em locais apertados, são obrigadas a ter bezerros, são separadas dos bezerros e têm uma ordenhadeira presa nas tetas dela até criar inflamações. Depois disso elas viram carne.
            - Então é um sofrimento a mais.
            - Exatamente.
            Entre uma garfada e outra ela pergunta sem segundas intenções:
            - Por que você come carne?
           Ele, no entanto, sem saber, já repugna a pergunta por ver-se vítima de um fatalismo: sua própria alimentação, de forma que responde:
        - Por que eu sempre comi carne. Sempre esteve aí e nunca vi motivos para não comer.
            - Mas nós não precisamos de carne.
          Ela parece descontraída, confortável com o tema. Ele é só mais uma vítima de seus próprios demônios, esses que são empurrados garganta à dentro em forma de almôndegas de carne.
      Ele desvia o olhar por um instante, organiza seus pensamentos. Falar sobre os costumes geralmente nunca foi custoso para ele, como virá a fazê-lo, e continua:
           - Não é tão óbvio. Eu poderia não comer carne como poderia não usar talheres, mas é estranho pensar em alguém que não use talheres hoje em dia, eu e boa parte das pessoas aqui sempre usaram talheres, é natural. Da mesma forma eu poderia não usar roupas e andar pelado por aí, mas usamos roupas pelo mesmo motivo. - Houve uma troca de risos - Por isso eu como carne.
            - É verdade. Mas essa carne vem de torturas feitas contra animais.
           Ainda sentindo-se ameaçado e, ao mesmo tempo, querendo manter uma diplomacia ele sugere:
        - Meu argumento mais forte é o da cultura. Eu como carne porque eu vivo numa cultura que come carne. Jogam animais numa granja, trituram todos e eu posso comer algo que as pessoas geralmente comem, de outra maneira seria muito mais difícil. – Neste momento ele percebe um erro em sua argumentação, desvia o olhar novamente e organiza mais uma vez seus pensamentos – Mas para não fazermos isso o que poderíamos fazer? Criar animais nas nossas próprias casas? Consumir de pessoas que não mal tratam ou torturam seus animais? Virar vegetarianos... E os mercados? Teria que reestruturar tudo. Leites, queijos, açougues... Todo mundo compra em mercados, ficaria muito difícil mudar tudo. - Ela apenas concorda, como se todos esses questionamentos já fizessem parte de sua vida, nenhuma novidade.
      Ele se distrai pelo riso, como se evitasse confrontar seu problema real. Disfruta nervosamente do riso como ri quando um familiar inconveniente conta uma piada esdrúchula na mesa de jantar: não gosta, mas tenta não demonstrar. Neste caso, não é que a conversa não lhe agrade, é que ele sente-se ameaçado pelo rumo que ela toma. Numa tentativa frustrada de problematizar a situação, questiona:
           - Os animais sentem dor, mas as plantas devem sentir dor também e ninguém liga.
         Os risos nervosos inundam o pequeno campo entre os dois conversadores. Ninguém está tão à vontade como no início.
           - O que? – pergunta ela, desacreditada.
           - Estou falando sério!
           - Não parece!
           Não há risos, apenas cabeças baixas. Olhares fixos nos pratos.
         - Se não for pra comer carne, queijo e outros alimentos de animais presos em granjas, com tratamentos péssimos e tudo mais, o que sobra? Arroz, feijão...       
            - Temperos, verduras, legumes, grãos de soja.
        - É uma dieta muito diferente da minha, precisaria de um incentivo enorme para começar. – Nisto, lhe ocorre perguntar: - Por que você não come carne?
           Ela para uns instantes, assim como ele se deteve antes, para formular sua resposta.
          - Não concordo com o tratamento que é dado à carne. Produzimos muita carne que não precisamos. É um princípio meu não comer, me faz bem, faz eu sentir que não estou comendo animais torturados.
        A almôndega de carne no prato não lhe parece mais tão apetitosa, seu sentido de estar aí adentra sua mente para trapaceá-lo, revirar sua cabeça sem propósito, sem respostas, sem bons motivos para continuar comendo.
          - Imagina que complicado seria este restaurante deixar de servir carne, considerando que é tão comum. Não imagino tantas pessoas deixando de comer carne. Na verdade, bastaria elas deixarem de comer carne para que o cardápio mudasse. Acho que como carne porque todos comem carne... – Ele para para repensar sua lógica, sente-se diminuído pelas próprias constatações – Não paro de comer carne porque não adianta eu parar de comer carne, as coisas não vão mudar. Ninguém vai parar de comer carne.
      Como se ele tivesse dado um salto muito grande na conversa, ela cautelosamente anuncia de olhos bem abertos:
         - Eu não estou tentando te converter a não comer carne, não é isso.
        - Eu sei, só que não é esse o sentido? Não é deixar de comer carne porque sabemos como acontece a produção dela e é horrível?
            Ver-se comendo carne sabendo suas origens é nada mais que um ato de hipocrisia. Como não é possível desumanizar os animais, pois nem humanos são, não há problema inicial, o que faz com que comer carne pareça normal ou pelo menos aceitável. Por que se importar com os animais? Isto ele intui de forma muito precária: pela dor, pelo sofrimento, pelo enclausuramento, pela violência, pela escravização, mas nada muito elaborada. Parcas noções flutuantes em sua gruta imaginária, gruta de seu ego aberta aos perigos de si mesmo, pronta para englobar as ameaças e fragmentá-lo.
        Se ela disse alguma coisa nesse meio tempo ele não ouviu bem, estava atônito consigo e seus pensamentos atormentadores. Deixou de alimentar seu corpo para tentar esvaziar sua psique. Sem sucesso. Olhando para um canto, gesticula ativamente, como se pudesse fazer figuras surgir no ar.
       - O que eu quero dizer é algo que vi recentemente em alguns filmes. É natural, praticamente instintivo, querer matar outras pessoas ou abandonar seus filhos para conseguir os próprios prazeres. As pessoas fazem barbaridades, coisas que machucam, e essas coisas estão aí. Não está só nos filmes, às vezes o que vemos nos filmes sonos nós mesmos, somos essas pessoas que achamos estranhas no filme, em alguma medida, ainda que elas possam virar vegetarianas, o que é ótimo. – Faz-se uma breve pausa, ele sente o desespero de si e se acalma. - As pessoas gostam de carne porque elas gostam de comer animais torturados. Elas não se importam, faz bem pra elas, me faz bem. Por isso, eu gosto de comer animais torturados e não vou deixar de comer tão cedo.
        Um silêncio mortal toma conta dos dois. Ele está envergonhado, ainda tomado por seus pensamentos. Ela espera um pouco e diz:
           - Terminou?
         - Sim. Nem estou mais com fome. – Ele responde no automático enquanto observa um restinho de comida no prato, embora toda a carne tenha sido comida, e com um aceno de cabeça. – Vamos. – Preocupado com o fato de talvez não ter respondido a pergunta e só estivesse encerrando tudo, pergunta: - Foi isso mesmo que você perguntou?
           - Uhum, foi. – Ela ri.
      Ele explica o ocorrido. Os dois levantam-se, entregam as bandejas e vão embora continuar esta e outras conversas noutro lugar.


            Mais tarde, no retorno à casa. Ele recebe uma mensagem dela pelo celular: é uma música do The Smiths, Meat is Murder. Além do link para o vídeo ela escreve “um clássico” numa linha e “para reflexão” em seguida. Ele escuta a música em tom angustiado por ser parte dos carnívoros que justificam sua existência. Em algum momento é incapaz de ouvir a música sem que alguns sons descontínuos nela lembrem uma enorme serra, pronta para ceifar bezerros.

            “O gemido do bezerro poderia ser choro humano”;
            “Morte sem razão é assassinato”;
            “Você sabe como os animais morrem?”;
            “Os aromas da cozinha não são acolhedores, confortáveis ou algo do tipo/ É sangue escaldante e o ímpio cheiro fétido/ De assassinato”;
            “A carne que você animadamente frita/ A carne na sua boca/Enquanto você saboreia o sabor de assassinato/ Não, não é outra coisa, é assassinato”.

      São essas frases, as últimas com mais força no corte, que marcam o ego desesperançado, que só viria reconhecer mais tarde, quase na virada da meia noite desse mesmo dia, numa frase de Paulo Freire em Pedagogia da Esperança, bem no começo do livro:

Como programa, a desesperança nos imobiliza e nos faz cair no fatalismo onde não é possível juntar as forças indispensáveis ao embate no mundo [...] Desesperança e desespero, consequência e razão de ser do inatismo ou do imobilismo

            Ele responde a mensagem dela em duas partes: a primeira com a citação, a outra, sem enrolações, dizendo “(...) que é também os tipos de respostas que te dei hoje”.
          Assim ele compreendeu que os atos de esperança pela pura espera não mudam nada. Saber e não fazer enquadra permanência. Por outro lado, quem quer mudar alguma coisa, se não ele? Ela parecia muito à vontade com seu comprometimento ético a favor da vida e da dignidade dos animais, contra sua coisificação. Ela está contra uma indústria de alimentos insustentável, pelo seu ponto de vista.
            Para que quer ele mudar as coisas que fazem tão bem a ele sem antes fazer uma renúncia de alguns desejos e gozos particulares encontrados na alimentação? Para que quer ele, sequer, pensar em mudar todas as pessoas carnívoras no restaurante, como se esta fosse a solução, simplesmente porque nunca pensara sobre ela e parece ser o certo? De onde vêm esse espírito salvacionista em defesa de animais que se confundem com alimentos? Confunde ele sua posição alienada com a de um intelectual ou entendedor? Que outro jeito de provocar mudança a não ser pelo choque da contradição interna? Ele sentindo a mudança em si mesmo, que outra coisa se não dialogar, como ela fez com ele, e esperar que outras pessoas, por razões que são suas, mudem seus hábitos também, sejam mais conscientes de si?
            E o que garante que esses pensamentos pré-revolucionários não se tornem apenas fantasmas bobos rodeando sua mente na hora do almoço, enquanto disfruta de um maravilhoso bife à parmegiana: saboroso, suculento, quente, crocante e dourado?
            As chances de ele continuar seus hábitos são tão altas que ele pode considerar-se, no máximo, portador de um germe da revolução vegetariana, sem ter nada de revolucionário em seu ser. Porta um gene que nunca se ativará, embora possa ser transmitido.
          A verdade é que ele pensa que alguns crimes, por serem mais vantajosos que outros, são permitidos e incentivados sem a possibilidade de ver as pessoas alardeando pelo seu fim. Tanto mais cultural é o crime quanto mais apetitoso é a experiência que ele suscita nos corpos, o que não se dá sem um incentivo da propaganda, da mídia, dos empresários, do capital, da obscenidade, da barbaridade, da invasão cultural e da amplificação do prazer efêmero própria dos tempos em que vivemos.
          Ele cala-se insatisfeito, esperando que ela possa ajudá-lo, ao menos ouvi-lo mais uma vez. Compreender seus limites e suas apreensões. Ele precisa que um olhar de pena recaia sobre ele, já que ele não suporta seu próprio olhar. Sente-se condenado por algo que não é plenamente responsável, e nem por isso, isento de responsabilidade, o que pede sacrifícios para uma transformação. Mais precisamente, sacrifícios da carne.