Entrando no restaurante universitário, ele e ela seguem
sorridentes na fila, conversando, distraindo um o outro. Após o silêncio de se
servirem encontram um lugar para sentarem-se. Enquanto outras pessoas esbarram
nele para sair do lugar, ela se oferece para buscar o suco para os dois. De
volta à mesa ela informa “Parei de tomar leite!” como uma criança que aprendeu
a fazer algo maravilhoso, digno de orgulho.
Ele, apesar
de compreender que ela é vegetariana, não vê benefícios nisso, nem entende
completamente o porquê. Mais desacreditado que surpreso responde:
- Como
assim?
- Parei de
tomar leite, não compro mais.
Um riso
inconveniente penetra o rosto dele.
- Eu não
vou te parabenizar por isso. – diz ele em tom de brincadeira - Como assim? E os
queijos?
- Ah, eu
vou sentir falta. Queijo é muito bom.
- Bom pra
você. Por quê?
- Já viu
como fazem para tirar o leite?
- Você diz
isso por ser similar a trituração das vacas para virar carne moída?
- Não, é
pior!
Ele detém-se
para prestar atenção. Ela prossegue:
- Elas
nascem, crescem em locais apertados, são obrigadas a ter bezerros, são
separadas dos bezerros e têm uma ordenhadeira presa nas tetas dela até criar
inflamações. Depois disso elas viram carne.
- Então é
um sofrimento a mais.
-
Exatamente.
Entre uma
garfada e outra ela pergunta sem segundas intenções:
- Por que
você come carne?
Ele, no
entanto, sem saber, já repugna a pergunta por ver-se vítima de um fatalismo:
sua própria alimentação, de forma que responde:
- Por que
eu sempre comi carne. Sempre esteve aí e nunca vi motivos para não comer.
- Mas nós
não precisamos de carne.
Ela parece
descontraída, confortável com o tema. Ele é só mais uma vítima de seus próprios
demônios, esses que são empurrados garganta à dentro em forma de almôndegas de
carne.
Ele desvia
o olhar por um instante, organiza seus pensamentos. Falar sobre os costumes
geralmente nunca foi custoso para ele, como virá a fazê-lo, e continua:
- Não é tão
óbvio. Eu poderia não comer carne como poderia não usar talheres, mas é
estranho pensar em alguém que não use talheres hoje em dia, eu e boa parte das
pessoas aqui sempre usaram talheres, é natural. Da mesma forma eu poderia não
usar roupas e andar pelado por aí, mas usamos roupas pelo mesmo motivo. - Houve
uma troca de risos - Por isso eu como carne.
- É
verdade. Mas essa carne vem de torturas feitas contra animais.
Ainda
sentindo-se ameaçado e, ao mesmo tempo, querendo manter uma diplomacia ele
sugere:
- Meu argumento mais forte é o da
cultura. Eu como carne porque eu vivo numa cultura que come carne. Jogam
animais numa granja, trituram todos e eu posso comer algo que as pessoas
geralmente comem, de outra maneira seria muito mais difícil. – Neste momento
ele percebe um erro em sua argumentação, desvia o olhar novamente e organiza
mais uma vez seus pensamentos – Mas para não fazermos isso o que poderíamos
fazer? Criar animais nas nossas próprias casas? Consumir de pessoas que não mal tratam ou torturam seus animais? Virar vegetarianos... E os mercados? Teria que reestruturar tudo. Leites, queijos, açougues... Todo mundo compra em mercados, ficaria muito difícil mudar tudo. - Ela apenas concorda, como se todos esses questionamentos já fizessem parte de sua vida, nenhuma novidade.
Ele se
distrai pelo riso, como se evitasse confrontar seu problema real. Disfruta
nervosamente do riso como ri quando um familiar inconveniente conta uma piada
esdrúchula na mesa de jantar: não gosta, mas tenta não demonstrar. Neste caso,
não é que a conversa não lhe agrade, é que ele sente-se ameaçado pelo rumo que
ela toma. Numa tentativa frustrada de problematizar a situação, questiona:
- Os
animais sentem dor, mas as plantas devem sentir dor também e ninguém liga.
Os risos
nervosos inundam o pequeno campo entre os dois conversadores. Ninguém está tão
à vontade como no início.
- O que? –
pergunta ela, desacreditada.
- Estou
falando sério!
- Não
parece!
Não há
risos, apenas cabeças baixas. Olhares fixos nos pratos.
- Se não
for pra comer carne, queijo e outros alimentos de animais presos em granjas,
com tratamentos péssimos e tudo mais, o que sobra? Arroz, feijão...
- Temperos,
verduras, legumes, grãos de soja.
- É uma
dieta muito diferente da minha, precisaria de um incentivo enorme para começar.
– Nisto, lhe ocorre perguntar: - Por que você não come carne?
Ela para
uns instantes, assim como ele se deteve antes, para formular sua resposta.
- Não
concordo com o tratamento que é dado à carne. Produzimos muita carne que não
precisamos. É um princípio meu não comer, me faz bem, faz eu sentir que não
estou comendo animais torturados.
A almôndega
de carne no prato não lhe parece mais tão apetitosa, seu sentido de estar aí adentra
sua mente para trapaceá-lo, revirar sua cabeça sem propósito, sem respostas,
sem bons motivos para continuar comendo.
- Imagina
que complicado seria este restaurante deixar de servir carne, considerando que
é tão comum. Não imagino tantas pessoas deixando de comer carne. Na verdade,
bastaria elas deixarem de comer carne para que o cardápio mudasse. Acho que
como carne porque todos comem carne... – Ele para para repensar sua lógica,
sente-se diminuído pelas próprias constatações – Não paro de comer carne porque
não adianta eu parar de comer carne, as coisas não vão mudar. Ninguém vai parar
de comer carne.
Como se ele
tivesse dado um salto muito grande na conversa, ela cautelosamente anuncia de
olhos bem abertos:
- Eu não
estou tentando te converter a não comer carne, não é isso.
- Eu sei,
só que não é esse o sentido? Não é deixar de comer carne porque sabemos como
acontece a produção dela e é horrível?
Ver-se
comendo carne sabendo suas origens é nada mais que um ato de hipocrisia. Como
não é possível desumanizar os animais, pois nem humanos são, não há problema
inicial, o que faz com que comer carne pareça normal ou pelo menos aceitável.
Por que se importar com os animais? Isto ele intui de forma muito precária:
pela dor, pelo sofrimento, pelo enclausuramento, pela violência, pela
escravização, mas nada muito elaborada. Parcas noções flutuantes em sua gruta
imaginária, gruta de seu ego aberta aos perigos de si mesmo, pronta para englobar
as ameaças e fragmentá-lo.
Se ela
disse alguma coisa nesse meio tempo ele não ouviu bem, estava atônito consigo e
seus pensamentos atormentadores. Deixou de alimentar seu corpo para tentar
esvaziar sua psique. Sem sucesso. Olhando para um canto, gesticula ativamente,
como se pudesse fazer figuras surgir no ar.
- O que eu
quero dizer é algo que vi recentemente em alguns filmes. É natural,
praticamente instintivo, querer matar outras pessoas ou abandonar seus filhos
para conseguir os próprios prazeres. As pessoas fazem barbaridades, coisas que
machucam, e essas coisas estão aí. Não está só nos filmes, às vezes o que vemos
nos filmes sonos nós mesmos, somos essas pessoas que achamos estranhas no
filme, em alguma medida, ainda que elas possam virar vegetarianas, o que é
ótimo. – Faz-se uma breve pausa, ele sente o desespero de si e se acalma. - As
pessoas gostam de carne porque elas gostam de comer animais torturados. Elas
não se importam, faz bem pra elas, me faz bem. Por isso, eu gosto de comer
animais torturados e não vou deixar de comer tão cedo.
Um silêncio
mortal toma conta dos dois. Ele está envergonhado, ainda tomado por seus
pensamentos. Ela espera um pouco e diz:
- Terminou?
- Sim. Nem
estou mais com fome. – Ele responde no automático enquanto observa um restinho
de comida no prato, embora toda a carne tenha sido comida, e com um aceno de
cabeça. – Vamos. – Preocupado com o fato de talvez não ter respondido a
pergunta e só estivesse encerrando tudo, pergunta: - Foi isso mesmo que você
perguntou?
- Uhum,
foi. – Ela ri.
Ele explica
o ocorrido. Os dois levantam-se, entregam as bandejas e vão embora continuar
esta e outras conversas noutro lugar.
Mais tarde,
no retorno à casa. Ele recebe uma mensagem dela pelo celular: é uma música do
The Smiths, Meat is Murder. Além do link para o vídeo ela escreve “um clássico”
numa linha e “para reflexão” em seguida. Ele escuta a música em tom angustiado
por ser parte dos carnívoros que justificam sua existência. Em algum momento é
incapaz de ouvir a música sem que alguns sons descontínuos nela lembrem uma
enorme serra, pronta para ceifar bezerros.
“O gemido do bezerro poderia ser choro humano”;“Morte sem razão é assassinato”;“Você sabe como os animais morrem?”;“Os aromas da cozinha não são acolhedores, confortáveis ou algo do tipo/ É sangue escaldante e o ímpio cheiro fétido/ De assassinato”;“A carne que você animadamente frita/ A carne na sua boca/Enquanto você saboreia o sabor de assassinato/ Não, não é outra coisa, é assassinato”.
São essas
frases, as últimas com mais força no corte, que marcam o ego desesperançado,
que só viria reconhecer mais tarde, quase na virada da meia noite desse mesmo
dia, numa frase de Paulo Freire em Pedagogia
da Esperança, bem no começo do livro:
“Como programa, a desesperança nos imobiliza e nos faz cair no fatalismo onde não é possível juntar as forças indispensáveis ao embate no mundo [...] Desesperança e desespero, consequência e razão de ser do inatismo ou do imobilismo”
Ele
responde a mensagem dela em duas partes: a primeira com a citação, a outra, sem
enrolações, dizendo “(...) que é também os tipos de respostas que te dei hoje”.
Assim ele
compreendeu que os atos de esperança pela pura espera não mudam nada. Saber e
não fazer enquadra permanência. Por outro lado, quem quer mudar alguma coisa,
se não ele? Ela parecia muito à vontade com seu comprometimento ético a favor
da vida e da dignidade dos animais, contra sua coisificação. Ela está contra
uma indústria de alimentos insustentável, pelo seu ponto de vista.
Para que
quer ele mudar as coisas que fazem tão bem a ele sem antes fazer uma renúncia
de alguns desejos e gozos particulares encontrados na alimentação? Para que
quer ele, sequer, pensar em mudar todas as pessoas carnívoras no restaurante,
como se esta fosse a solução, simplesmente porque nunca pensara sobre ela e
parece ser o certo? De onde vêm esse espírito salvacionista em defesa de
animais que se confundem com alimentos? Confunde ele sua posição alienada com a
de um intelectual ou entendedor? Que outro jeito de provocar mudança a não ser
pelo choque da contradição interna? Ele sentindo a mudança em si mesmo, que
outra coisa se não dialogar, como ela fez com ele, e esperar que outras
pessoas, por razões que são suas, mudem seus hábitos também, sejam mais
conscientes de si?
E o que
garante que esses pensamentos pré-revolucionários não se tornem apenas
fantasmas bobos rodeando sua mente na hora do almoço, enquanto disfruta de um
maravilhoso bife à parmegiana: saboroso, suculento, quente, crocante e dourado?
As chances
de ele continuar seus hábitos são tão altas que ele pode considerar-se, no
máximo, portador de um germe da revolução vegetariana, sem ter nada de
revolucionário em seu ser. Porta um gene que nunca se ativará, embora possa ser
transmitido.
A verdade é
que ele pensa que alguns crimes, por serem mais vantajosos que outros, são
permitidos e incentivados sem a possibilidade de ver as pessoas alardeando pelo
seu fim. Tanto mais cultural é o crime quanto mais apetitoso é a experiência
que ele suscita nos corpos, o que não se dá sem um incentivo da propaganda, da
mídia, dos empresários, do capital, da obscenidade, da barbaridade, da invasão
cultural e da amplificação do prazer efêmero própria dos tempos em que vivemos.
Ele cala-se
insatisfeito, esperando que ela possa ajudá-lo, ao menos ouvi-lo mais uma vez.
Compreender seus limites e suas apreensões. Ele precisa que um olhar de pena
recaia sobre ele, já que ele não suporta seu próprio olhar. Sente-se condenado
por algo que não é plenamente responsável, e nem por isso, isento de
responsabilidade, o que pede sacrifícios para uma transformação. Mais
precisamente, sacrifícios da carne.