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domingo, 6 de dezembro de 2015

Considerações sobre Trainspotting, drogas, liberdade e absurdos

Introdução


O seguinte texto é impulsionado pelo filme Trainspotting (1996), dirigido por Danny Boyle. Uma das partes que quero destacar do filme é o começo dele, no vídeo a seguir: 


A partir dessa breve introdução do filme, que é encerrado numa fala semelhante a de seu início (para não dizer igual), podemos começar a questionar alguns pontos: as drogas e o consumo de ilícitos; o que entendemos por liberdade e como inquirimos as decisões e ações de outras pessoas pelo que achamos que parece bom ou que leva ao que é bom e proveitoso; finalizando no encontro com o absurdo quando tentamos explicar o que é liberdade e como as drogas podem ser um tipo de liberdade, o que leva a outras complicações e a mais absurdos.

Viver além de tudo

O estilo de vida das pessoas é questionável, principalmente quando elas escolhem viver dessa forma (como Trainspotting nos apresenta o mundo das drogas), o que incomoda os usuários da liberdade, por considerarem restrito o estilo de vida a ser levado. As drogas são um estilo de vida limitado; não encontramos liberdade nelas. As almas são baqueadas mais do que podem aguentar; ficam paralisadas, são privadas de desfrutar outras belezas, outros prazeres; o envenenamento do corpo acontece lentamente, um atentado à vida. - De onde tiramos a ideia de preservar a vida? Ou ainda, por que as restrições autoinferidas são tão nocivas para os usuários da liberdade tal como a conhecemos?

 Um exemplo de clichê sobre as drogas que podemos reproduzir sem maiores problemas.

Não pensamos (digo isso pensando naqueles que interferem no curso das sociedades) em preservar a vida de quem se acorrenta às drogas, mas daqueles que não experienciam seus efeitos e o vício que deixa a desejar expectativas. Permitir que as pessoas se acabem em drogas é inconcebível, pois é permitir que acabe com a liberdade a qual estamos acostumados.

De todas as liberdades que escolhemos: as escolas, os trabalhos, os shoppings (ou comércios/mercados), os entretenimentos, são vitais, o que torna estranho pensar que é uma liberdade. A necessidade, o dever, as normas, as regras, e seus semelhantes compõem o absurdo da liberdade. Ser livre é muito menos uma imposição a uma posibilidade; a falácia condicional de pensar "somos livres desde que..." é tão comum quanto a imagem ilícita das drogas.

Vivendo liberdades

Se existe liberdade em algum momento de nossas vidas é a liberdade de pensamento: que simplesmente acontecem ao acaso, estimulados pela consciência e plena racionalidade, por lampejos associativos que podem ser geniais (no instante em que eles conseguem nossa atenção), por lembranças passageiras. E sobre o pensar que achamos que pensamos, será que o pensamos? Com isso quero dizer que somos capazes de ser lógicos, de encadear as ideias para serem o que queremos que elas sejam, e por isso o nosso orgulho de exibir os pensamentos: porque eles nos pertencem; são originais em algum aspecto, pela liberdade de pronunciar as palavras como queremos. De fato é uma atividade memorável. Ou seria se fôssemos livres.

O discurso clichê sobre as drogas que: acabam com a família, levam a compulsividade, destinam a morte, degeneram a mente, tornam o corpo improdutivo, são pensamentos livres ou reproduções de um estilo de liberdade? Se a liberdade é livre, ela pode escolher não uma, mas outra liberdade, e assim ad infinitum. A possibilidade de ser livre não cria a possibilidade de escolha num espaço fechado, senão a abertura dessa espaço e na quebra de delimitações possíveis e existentes. Por isso digo que existem liberdades, não liberdade. Se me permitem a liberdade, recusarei e afirmarei a importância de me concederem as liberdades em suas infinitudes.

LUZ, Wiliiam. Linha involutiva. Retirado do artigo de Paiva Netto em:  <http://www.paivanetto.com/pt/saude/pais-e-filhos-contra-droga>.
 
As liberdades geram os absurdos, chamamos inicialmente de estranhezas. Os mais astutos, capazes de enunciar os conflitos gerados pelas liberdades de que se tem conhecimento, podem montar estratégias para controlar, dirigir, interditar, sistematizar, organizar, regular, negar, conduzir a liberdade estranha, adotando a sua liberdade como ponto de referência ou correção das liberdades que se constituem em bases errantes do ser livre.

É confortável posicionar-se contra as drogas, dificilmente haverá oposição. Somos criados para seguir a liberdade estabelecida, a única a ser conhecida, uma espécie de liberdade-saber. Que argumentos encontramos a favor do uso indiscriminado de drogas? E quantos são contra? Deveria ser difícil enumerar os argumentos a favor? Direi que não.

Desconstrução da liberdade

A resposta está na estratificação do campo de formação social e de seus interesses em relação ao objeto de saber. Acontece uma separação, no caso das drogas, entre o útil e o inútil; o que deve perseverar, eternizar-se, perpetuar-se, e o que deve desaparecer, deixar de existir, que não é interessante para persistir nos costumes. A partir disto criam-se as disposições a esquemas de percepção e apreciação que se inscrevem nos corpos, no pensamento, nas ações, na linguagem, no discurso, nas decisões, no presente vivido e no futuro desejado.

O Direito afirma uma ordem, reconhecida por todos nas leis, que não apenas protegem, garantem direitos, proporcionam um tipo de liberdade, como também punem, encurralam, corrigem e criam  uma atmosfera de vigilância constante. O menor deslize é um crime; a infração da liberdade-norma é vista com maus olhos. Ao pronunciarem a Lei em defesa de terceiros, supostos inocentes, vítimas, passivos que sofrem as consequências dos infratores, o Gládio recria o aburdo de supor que aqueles que se encontram nas dependências de sua liberdade estão sob essas regras e concedem abrir mão de suas liberdades individuais para serem acobertadas por um poder legítimo, um bem maior.

 Gládio: a arma romana que podemos encontrar encarnada no Direito como o símbolo da decisão sobre a vida.

As liberdades estão sempre em conflito, são caóticas, o que não significa que elas são prejudiciais. O que causa desconforto nas mentes docilizadas é pensar  (por conta própria, usufruindo da liberdade concedida) nas possibilidades de violência. Elas continuarão a existir desde que o estranho seja intolerável e deva ser domesticado, civilizado, silenciado, desqualificado, aniquilado. O reconhecimento desse estranho, o outro, é um passo importante para firmar o reconhecimento de uma outra liberdade.

Este discurso parece incoerente com a realidade e continuará sendo na medida em que os vários campos livres estejam sujeitos a uma ordem, uma razão, um sistema, uma presença reguladora que utilize do poder e sua microfísica para transformar as diversas vivências numa vivência comum, organizada, livre de diferenças, desigualdades e, também, diversidades. Nos tornaremos um grande formigueiro livre da dor e do medo, mas a custa de nossas liberdades individuais.

As drogas são más, serão por um bom tempo. A Igreja, a Medicina, o Direito e a Escola afirmarão o descompasso que ela possui na sociedade atual, porém, devemos lembrar que elas são instituições antigas e que possuem um poder bem específico, cada um deles agindo de forma singular e criativa para a tentativa de proibição das drogas. Elas possuem autoridade para negar qualquer utilidade do seu objeto-absurdo.

O conflito entre liberdades cria a ideia de absurdo, como já expliquei anteriormente. As disposições de pensamento não nos permite perceber os absurdos, mas liberdade-verdade. Asim garantimos o sucesso e o progresso de uma nação, um país, uma elite, uma minoria, que juntos com outras minorias são espalhadas pelo globo, anunciam um alvo, promovem uma guerra desnecessária para parecer que defendem a liberdade comum, caçam esse alvo. Como se não fosse suficiente, apontam para uma rede de saberes relacionada ao alvo e tornam-na cúmplice dos efeitos deste alvo. O tempo inteiro nos é oferecido proteção para uma liberdade que escolhemos ter, nos é garantida desde o nascimento, o que poupa nosos esforços de decisão e canalizam as vontades, interesses, sonhos, desejos, forças para algo pré-programado, para o sistema natural (ou que nos é apresentado desta forma).

Conclusão

Encerro alfinetando nossa liberdade restrita sobre o quão livres somos para decidir o que pensamos, e se as drogas, como qualquer outro tema, não são ideias confortáveis pela impossibilidade de: viabilizar alternativas, deixar nossas zonas de conforto, admitir que não possuímos liberdades, que entregamos o poder de decisão para instâncias "mais capazes", entre outros. A violência que decorre das drogas seria uma invasão das regras morais de um grupo de dominantes que se incomodam com a existência delas? Não responderei prontamente, embora esteja claro para mim o absurdo que decorre dessa verdade moral.
 
 Michel Foucault (1926-1984) observando você reproduzir discursos que incitam alguma verdade.

Diálogo com um amigo

Quem me apresentou o filme Trainspotting foi um amigo meu e estudante de direito. Assistimos ao filme de madrugada. Terminado o filme pedi papel e um lápis para uma reflexão que culminou da parte Viver além de tudo até a Conclusão. Esse amigo me entregou um caderno, escrevi o que pensava (e me incomodava sobre o tema) e deixei o caderno para que ele lesse o que escrevi, pois ele compartilhava em partes a legalização das drogas e achei que essa tensão de ideias seria produtiva, como sempre acaba sendo, pelo menos para nós. Suas interlocuções foram feitas por post-its que considero de vital importância para a apresentação de outras verdades e outras liberdades vividas sobre o mesmo tema.
 
O anzol
Pode não estar claro na imagem, mas é um anzol; momento em que eu pesco a atenção dele ao dizer "O Direito afirma uma ordem (...)". Seguido dos seguintes post-its ao afimar "As liberdades estão sempre em conflito (...)" e na continuação do raciocínio "(...) são caóticas, o que não significa que elas são prejudiciais.", o que rendeu o nome do filósofo de Direito alemão Robert Alexy, vivo até o presente momento.

"Normas conflitam/Princípios colidem" e "Robert Alexy", da esquerda para a direita.


Este é o post-it interpretei como uma cutucada: quando menciono o Direito ao lado da Igreja, da Medicina e da Escola não estaria me referindo mais especificamente à Lei? Faz todo o sentido que o problema esteja na redação ou na representação (que é o que entendo no momento por Lei). Mantenho o Direito no meu texto, deixando esta questão para mais pessoas mais habilitadas do que eu para tratar da questão: Direito ou Lei? E outra resposta ao texto, na parte "As drogas são más (...)". As drogas ou o tráfico são mal vistos? Eu diria que eles se confundem e são reduzidos ao ponto de serem a mesma coisa, pois um tráfico acaba sendo de drogas, ocasionalmente, e as drogas geram, entre tantas coisas, o tráfico. Acaba não havendo diferença quando se olha de longe, e essa pergunta também não quero responder agora, ela merece a reflexão do leitor. Acredito que meu amigo queira dizer que o problema é o tráfico, não as drogas.
  
"Direito ou Lei?/Drogas ou Tráfico?"












Este amigo cita o medo conservador quando digo "(...) promovem uma guerra desnecessária para parecer que defendem a liberdade comum, caçam esse alvo."



"Lutam uma guerra para fugir de outra/Medo conservador"

 Tudo indica sua aprovação pelo código do joinha representado por (Y). Acima do post-it está escrito "Paulinia, 11 de Outubro de 2015. Alan I. M. Caballero", com Campinas rasurada, pois nunca sei se estou em Campinas ou Paulínia quando estou na casa desse amigo. Enfim, inicialmente escrevi uma carta, só depois que pretendi publicar o conteúdo.
 
"(Y)" ou "Joinha"
 A conversa com esse amigo foi uma das primeiras vezes que pensei seriamente sobre o uso das drogas, antes eu só não me importava com o que as pessoas faziam e como faziam, pois elas são livres para escolherem o que querem fazer com si mesmas, caso contrário deveríamos continuar com os casamentos arranjados; parece ridícula a comparação, mas é porque é isso que parece. A ideia de que escolham por nós o que e como devemos fazer não é de outro mundo, a imagem mais clara e fácil de assimilar é o pedir conselhos: "Briguei com o meu chefe, acho que vou ser demitido, o que eu faço?", "Chamei ele/ela para sair, mas como como eu tenho que agir?", "Eu deveria contar para meus pais que eu fumo maconha?". Os conselhos acabam em roteiros para conquistar um objetivo quando muito específicos, não dando margem para escolha, mas sendo uma resposta precisa do que deve ser feito. A escolha é uma liberdade, quando nos restringimos à essas situações rasas de sim/não, bom/mau, usar/não usar, falar/calar-se e não ampliamos o leque de opções, nos permitimos viver nossa liberdade conforme a liberdade que nos apresentam, as liberdades ofertadas. "Você deveria ir pedir desculpas ao seu chefe!", "Você tem que deixar ele/ela decidir tudo!", "Você vai se encrencar, melhor não contar". Essas situações se invertem quando as respostas são: "Você pode pedir desculpas ao seu chefe", "Talvez você possa deixar ele/ela decidir", "Você pode se encrencar, conte se achar melhor". A decisão deve partir do sujeito e não de um coletivo; o coletivo pode impulsionar a liberdade pela forma como questionam a liberdade do sujeito, que é muito menos corrigindo, punindo e restringindo ao uso da pergunta que leva a dúvida e à autorreflexão. Este meu questionamento não é para os usuários de drogas, e sim para os coletivos que desestimulam as drogas: a sua preocupação com a vida dos diversos usuários (seja do que for) é a sua real preocupação ou a preocupação de outras pessoas? E o mais preocupante: sua preocupação é uma preocupação que vem de alguma coisa, como uma instituição? Por fim: até que ponto falamos o que falamos porque pensamos sobre o que falamos?




 



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