Pelos sentidos, percebemos as
pessoas e as coisas que nos rodeiam, pelos símbolos da mente conferimos sentido
a essas percepções. Mesmo quando não sabemos dizer exatamente o que gostamos ou
o que nos incomoda no outro, é por esse acervo simbólico que somos capazes de
dizer como nos sentimos e não apenas o que é sentido por nós. Podemos
singelamente chama-las sensações externas e internas.
Alguns
poderiam dizer que temos pleno domínio sobre nós mesmos por advento da
consciência, tanto das sensações internas quanto das sensações externas. O
corpo e a mente combinam seus interesses para agir conscientemente sobre si e
sobre o mundo externo. A inconsciência é o maior incômodo para a afirmação de
si, é uma dúvida. O inconsciente é a instância psíquica aonde reside não apenas
os conflitos, mas onde os velamos para manter nosso ego saudável, nisso recorro
à Freud.
Se
vivêssemos em conflitos com nós mesmos o tempo todo estaríamos sempre à
disposição das pulsões de morte, da
figura de Thanatos. O Eros equilibra a vida e traz momentos de paz para nós,
por ele não precisamos enfrentar rupções contínuas, nos reconstituímos,
tendendo a manter esse estado de ordem. Freud denominou isto de pulsão de vida.
CANOVA, Antonio. Eros e Psique. Paris: Museu do Louvre.
Vangloriamo-nos
de sermos racionais, ao passo que exigimos o mesmo de outras pessoas, pois a
irracionalidade não é recompensada. A racionalidade é uma moralidade, significa
entre outras coisas: civilização e cultura. A racionalidade é o Eros, a união
dos fios que tecem a ordem. Enquanto a irracionalidade não passa dos impulsos
naturais e bárbaros contra os quais lutamos. Thanatos e Eros travam lutas
fervorosas em nossas mentes e corpos.
O acesso exclusivo ao consciente é uma estratégia mais do que perfeita da psique para manter o equilíbrio de si e evitar o suicídio do indivíduo, evita os niilismos. Lembrando que toda a energia psíquica do consciente é energia provinda do inconsciente. O inconsciente move a psique, inclusive nossas decisões, escolhas, ações, linguagem e memória. Então como pronunciar com tanta certeza “Eu sei o que estou fazendo”?
O
inconsciente se forma no contato com o mundo, em outras palavras, são as
relações exteriores, produtoras de sensações exteriores que são carregadas à
psique na forma de pulsões e formam-se símbolos, responsáveis pela criação do
significado, pois constrói uma linguagem (Lacan se aproveitou muito bem desta
linguagem para desvelar os sonhos), e dá curso às sensações internas. Os
sentimentos são formados nessas experiências.
Não temos pleno conhecimento de nós mesmos, pois nos falta acesso ao inconsciente. Mas temos acesso ao outro? Se somos seres conscientes, podemos deduzir nos limites da nossa consciência a inconsciência do outro?
Em A Natureza da Psique (1916), Jung fala que o consciente é uma adaptação ao agora, ao presente, pois só assim garante a sobrevivência do indivíduo. O inconsciente seria bem mais amplo, guardando em si o passado, o presente e o futuro. Estaria encarregado do que já aconteceu e do que está por acontecer, além de podermos entrelaçar a história e as expectativas nas ações presentes desse indivíduo.
Mesmo assim conseguimos nos desprender para outros tempos. Podemos nos lembrar da um acontecimento de nossa infância, da um ano atrás ou da semana passada; temos a capacidade de inventar situações que não aconteceram, fantasiar um futuro. E fazemos isto conscientemente, também. Mesmo a memória ou a fantasia do devir encontram barreiras conscientes, começando pela memória: não lembramos tudo o que queremos, nossa barreira é a atenção que temos ao agora. Quanto ao futuro, é tão nebuloso quanto o passado, é o próximo agora e devemos ter cuidado com as expectativas que criamos sobre os agoras que virão.
A final de contas, somos capazes de avaliar situações externas a nós? O inconsciente não permite que nos avaliemos com 100% de certeza, mas ele também nos impede de avaliar o outro? Acredito que não, principalmente pela atenção que temos ao agora desfocar a atenção que queremos no outro. Não temos atenção plena, por isso não entendemos totalmente o outro, mas não significa que não aprendemos nada sobre quem é externo a nós, até porque esse tipo de avaliação é importante para nossa própria segurança em alguns casos: estou em perigo? Posso confiar nessa pessoa? Me sinto bem aqui? Se eu disser isto, como esse outro responderá? Eu gostarei do que ouvirei? E isso passa a ser importante para regular o próprio comportamento numa dada situação.
Carl Gustav Jung (1875 - 1961). Retirado do Blog Sandra Psicóloga .
O trabalho dos psicólogos é charlatanismo? Não, primeiro porque as teorias psicológicas não levam em conta a constituição psíquica do psicólogo, mas de pacientes, grupos, terceiros, sempre pessoas externas ao psicólogo. As diferentes teorias são diferentes tipos de atenção ao momento e ao agora. Segundo porque ela funciona, não a partir de uma única teoria, mas pelo seu conjunto. Ouvi uma psicóloga dizer isto uma vez e achei sensacional: “Não existem psicologias melhores ou piores, existem pacientes com diferentes necessidades”. Para a histeria, a psicanálise encarrega-se muito bem do assunto, enquanto para a esquizofrenia a psicologia analítica tem uma desenvoltura melhor no tratamento. Da mesma forma, as escolas buscam na psicologia do desenvolvimento um olhar sobre o estudante/aluno para a composição do planejamento político pedagógico da escola e a melhor forma de distribuir os conteúdos curriculares nas séries mais adequadas, dispensando a psicanálise e a psicologia analítica.
Existe fundamento nas avaliações que fazemos das coisas, mesmo que parta de um material inconsciente; não estamos falando de uma instância que está lá para pregar peças e nos perturbar à toa, é uma fonte de energia e de defesa. Esta última colocação é muito bem analisada por Ana Freud, são os mecanismos de defesa do ego.
Partindo de tudo o que foi dito anteriormente: nossas avaliações podem ter alguma utilidade para o outro?
Estamos
distantes do outro, como já disse, prestaremos atenção no que percebermos, não
em como o outro sente, pois isso seria dizer que temos acesso ao interior de
quem avalio. É por não sermos o outro que podemos avaliar muito bem quem somos
e significar uma identidade, ao mesmo tempo, o saber que eu não sou o outro me
permite algum tipo de avaliação sobre o que o outro é. Podem-se criar
afinidades, descompassos ou complementos dessa percepção entre o Eu e o Outro,
residindo nesta identificação a precisão entre as semelhanças do Eu contidas no
Outro e as disparidades entre os indivíduos que se percebem. Acabo de entrar no
campo da alteridade, e saliento como é necessário este processo para que haja a
avaliação do outro.
Exercitando a alteridade e a rede de conhecimentos a qual ela está atrelada, podemos comunicar ao outro nossas percepções. Desde detalhes públicos, como o que é visível (a vestimenta, a morfologia do corpo, a beleza), até algo mais privado, que são as coisas mais particulares sobre a pessoa ou mesmo invisíveis (estado emocional, humor, disposições). O comportamento também é visível, aliás, é pela negação da existência do inconsciente, por invalidade científica, que a Psicologia Comportamentalista se propõe a estudar esses aspectos visíveis, que são facilmente demonstráveis, como fez Skinner. Jung, em A Natureza da Psique, defende a validade científica do objeto de estudo da psicanálise e da psicologia analítica, afirmando que seu objeto de estudo (o inconsciente) possui sim validade científica, porém, não pertence às Ciências Naturais. Acrescenta também que:
Se o sistema psíquico — que certos pontos de vista
modernos pretendem também possuir — se identifica e coincide com a consciência,
então, em princípio, estamos em condição de conhecer tudo o que é capaz de ser
conhecido, isto é, tudo aquilo que se situa dentro dos limites da teoria do
conhecimento. Neste caso, não há motivo para uma inquietação que iria mais
longe do que aquela sentida pelos anatomistas e fisiólogos diante da função do
olho ou do órgão da audição. Se, porém, se comprova que a psique não coincide
com a consciência, mas — o que é muito mais — funciona inconscientemente à
semelhança ou diversamente da parte capaz de se tornar consciente, então nossa inquietação
deveria crescer, pois, neste caso, não se trata de limites gerais da teoria do
conhecimento, mas de um mero limiar da consciência que nos separa dos conteúdos
inconscientes da psique. (JUNG, 2000, p.56)
O reconhecimento do outro pode dar-se tanto conscientemente quanto inconscientemente, nesses últimos casos ficamos apreensivos, confortáveis, descontraídos, aflitos, incomodados, satisfeitos sem saber explicar o por quê; a identidade que vemos ou percebemos no outro nos afeta, e a partir desse afeto que avaliamos as qualidades do outro, inclusive, nomeamos ações, valores, temperamentos e características do outro que somos capazes de perceber e reagimos ao que se apresenta a nós.
Fica sempre mais claro avaliar conscientemente o Outro quando as identidades são semelhantes, possuem pontos que se desenvolvem ou desenvolveram-se de forma parecida, podendo traçar um paralelo entre o seu Eu e o Outro que chega ao seu Eu. Graças ao conhecimento e a memória, pelas avaliações contínuas que realizamos todo momento, já que o inconsciente não descansa e o consciente baixa suas barreiras apenas durante o sono, permitindo a passagem dos conteúdos inconscientes aos sonhos, conhecidos também por imagens oníricas, podemos resgatar avaliações prévias para serem arquétipos, aos quais Jung se refere como “formas de apreensão, e todas as vezes que nos deparamos com formas de apreensão que se repetem de maneira uniforme e regular, temos diante de nós um arquétipo, quer reconheçamos ou não o seu caráter mitológico.” (2000, p.38).
Podemos, por correspondência ou
intuição, selecionar arquétipos para designar o outro. Cada vez que nos
deparamos com estranhezas no outro, trabalhamos a formação de um novo
arquétipo. A cultura e a moral são aliadas a construção dos arquétipos, e não
defendo aqui, neste momento, arquétipos naturais em todos, mas aproveito os
estudos de Jung para perceber na individualidade de cada um a capacidade de, a
partir do seu Inconsciente Pessoal, a criação de arquétipos que nos ajudam na tarefa
de avaliar o outro e nossas relações, e dessa capacidade não interdito, anulo
ou renego a existência dos arquétipos mitológicos contidos no Inconsciente
Coletivo. Os arquétipos que provém do acervo simbólico do indivíduo entre seu
Eu e o mundo podem ser denominados microarquétipos, são especificações e
ramificações dos arquétipos mitológicos com um requinte pessoal do Eu.
Para esses padrões, podemos colori-los com as individualidades do outro, a ponto de não conhecer apenas o que se vê, o que é visível, mas nos arriscarmos em hipóteses de como é seu cotidiano, seus desejos, suas vontades, suas defesas, sendo base para mais hipóteses como: a vida familiar, as relações amorosas, a inteligência interpessoal.
Para esses padrões, podemos colori-los com as individualidades do outro, a ponto de não conhecer apenas o que se vê, o que é visível, mas nos arriscarmos em hipóteses de como é seu cotidiano, seus desejos, suas vontades, suas defesas, sendo base para mais hipóteses como: a vida familiar, as relações amorosas, a inteligência interpessoal.
A partir do que é visível ou possível ser investigado, pode-se tentar saber o invisível ou o que ainda não foi investigado, colocando sempre em dúvidas a veracidade do fato, as várias enumerações que podem estar erradas, a possibilidade de que não seja exatamente como descrito. Deve-se estar sempre disposto a rever as interpretações que fazemos do outro, por exemplo: quando não conversarmos com alguém por parecer muito bravo, ou ainda, julgar uma pessoa superficial demais pela roupa ou tom de voz.
As avaliações quando pronunciadas tem pouco efeito de mudança, a não ser que haja o que Freud denomina de transferência. Trabalhamos o tempo todo para proteger nosso ego da sombra, arquétipo que situa aquela porção inconsciente que escondemos dos outros e de nós mesmos; é difícil admitir que temos sombras, que somos sombrios de alguma forma. Aconteceu-me isto ultimamente: enunciar a sombra de outrem. Houve aceitação por um lado, nos pontos que percebo diretamente e que são visíveis para mim, ainda que de forma oculta no discurso, enquanto as hipóteses, que eram apenas suposições de valor secundário e sujeitas a qualquer tipo de erro pela impossibilidade de comprovação de algum resquício de fala, comportamento, gesto etc., foram invalidadas e serviram de base para a desvalorização da avaliação, por desconhecimento do outro, por tentar adentrar um campo invisível, mais profundo; foi interpretada por esse outro como conhecimentos superficiais.
Imagem retirada do Blog Curiosidade Estranha, em <http://curiosidadeestranha.com/2015/08/pessoas-das-sombras/>.
A avaliação, ainda mais com um
propósito de mudança que se encontra com Thanatos, como tentei, encontra sérias
complicações e deve ser evitada, pois é brusca, levanta mecanismos de defesa,
irrompe a percepção do Eu que o outro possui sobre si mesmo, carrega um
niilismo latente. As hipóteses foram refutadas por superficialidade, estavam,
segundo esse outro, erradas e foram repudiadas com hostilidade, como quem diz Fique
longe do meu Eu.
É incomodo ser exposto, as pessoas estão acostumadas com perguntas sendo dirigidas a elas, não afirmações nuas; é preferível sermos completos desconhecidos para o outro; quem é você para dizer algo sobre mim? Você nem me conhece. As relações de conhecimento, como muitos entendem, supõem primordialmente relações diretas de conhecimento, ou seja, se conheço algo sobre alguém é porque esse alguém se comunicou comigo ou porque o conheci indiretamente por terceiros que têm relações diretas com esse outro. E a comunicação direta consiste sempre na figura da fala, quando na verdade os sentidos são também vias diretas de comunicação. Se percebemos as coisas, podemos conhecê-las.
A avaliação do outro tem sentido para quem avalia e até para outros que participam da avaliação do outro, embora a avaliação do outro para esse mesmo outro possa ser uma complicação para seu ego e contribuir como dificuldade para a solução de sua sombra. Quando a avaliação apresenta problemas que não dizem respeito à sombra, possui uma chance de sucesso maior na sua resolução. Mas as avaliações conscientes devem permanecer com os avaliadores para usufruto próprio, as agressões ao ego do outro são menores desta forma.
Se não sabemos conduzir alternativas a péssimos hábitos, melhor um hábito ruim que vários. A péssima condução é muito comum em momentos de instabilidade emocional do avaliador ou do avaliado. Por isso existem os psicólogos, eles são habilitados e conhecem melhor as técnicas de avaliação e como conduzir a recepção da avaliação, bem como a promover a autoavaliação, em alguns casos. O autoconhecimento, na verdade, é a melhor chave para a mudança, pois é um momento que o Eu está exposto apenas para a pessoa que o tem; não deve satisfação para segundos ou terceiros, apenas para si mesmo. Repensa sua própria consciência em seus domínios mentais, não corre o risco de humilhação pública, constrangimento ou depreciação.
Ainda convém intervir no Outro do outro? Haverá todo tipo de situações, cada uma com seu sim ou com o não. Encerro em cores negras e atento para nossas sombras, para as tentativas de se descobrir, autoconhecer-se, equilibrar o Si Mesmo. Mas não sejamos tão neuróticos a ponto de pensar que somos completas sombras.
VAN GOGH, Vicent. A Noite Estrelada (1889).
Referência:
JUNG, C. G. A
Natureza da Psique. 5ª edição. Editora Vozes, Petrópolis, 2000.
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