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sábado, 24 de dezembro de 2016

Instinto, reflexo e comportamento: bases biológicas da cultura

O seguinte texto está organizado em postulados e escólios, cuja base consiste nas considerações da psicologia comportamental (principalmente do beheaviorismo radical) acerca de uma diferenciação entre instinto, reflexo e comportamento, utilizando o exemplo de leões que devoram as crias que não pertencem à sua linhagem como analogia para casos de rejeição de bebês pelos pais quando descobrem que não são o pai biológico. Com efeito, busco demonstrar, sem esgotar o assunto, uma diferenciação entre instinto e cultura, além de mostrar como o instinto pode ser confundido com reflexo (uma confusão bem comum) e como um comportamento é tomado por esses dois.

Acerca do instinto em seres vivos não humanos:

1 – Instintos são comportamentos não modeláveis, comuns a uma espécie, não podem ser extintos e ocorre independentemente de estímulos externos.
1.1  – Ainda que os instintos preparem o organismo para um ambiente, ou seja, ele antecipa um possível cenário no qual o organismo pertencerá, eles são uma forma de garantir a perpetuação de uma espécie no ambiente em que seus progenitores viveram, não podendo antecipar qualquer cenário futuro em que o animal venha a viver.

2 – Os genes são informações compartimentadas que justificam formas, tamanhos, cores, materiais (células-tipo), organização celular, organização sistêmica e ações iniciais para garantir a sobrevivência de uma vida num ambiente.
2.1  – Os genes contém informações básicas que podem ser chamadas de instintos ou reflexos.
2.1.1 – O reflexo é uma resposta ao ambiente, existe uma série de informações armazenadas no código genético que podem ser ativadas em decorrência de estímulos do ambiente e está restrita ao código genético.

3 – A sobrevivência do animal no meio/ambiente depende de seus instintos e reflexos.

4 – O comportamento dos animais decorre de causas genéticas e sociais.
4.1 - Podem surgir novos comportamentos numa espécie, embora restritos ao seu material genético e à possibilidade de ativação desses genes.

5 – O animal aprende a viver no seu meio, regulando seu comportamento para os reforços gerados no ambiente (condicionamento operante) e não apenas reproduz seus instintos, herdados pelo código genético, o que significa que os comportamentos não são herdados geneticamente ou estão contidos no gene, porém, todo comportamento está em relação com um gene.
5.1 – Se um reforço positivo do meio aumenta a frequência da resposta esperada pelo animal, isto não é instinto, daí as leoas possuem um reflexo de proteção aos filhotes.
5.2 – Se as leoas não protegessem seus filhotes, outros leões os matariam, e se isto pode ser tomado como um instinto (embora esteja enviesado), também pode ser considerado um comportamento aprendido socialmente entre as leoas ou um reflexo, visto que a leoa só faz isso quando seu filhote está ameaçado.
5.2.1 – Se a leoa demonstra proteção ao filhote sem nunca ter visto este comportamento de outra leoa numa situação idêntica, a causa da proteção não é social, podendo ser instintiva ou um reflexo ao meio.
5.2.2 - Somente as leoas que protegiam seus filhotes tiveram os genes perdurados para a próxima geração de leões e leoas.

6 – A violência é uma situação social de confronto e implica num comportamento violento, embora sua base energética seja a agressividade, decorrente de causas genéticas, mais especificamente do funcionamento fisiológico do animal, mais conhecido por situações de luta e fuga do sistema nervoso simpático (ao menos em humanos), ou seja, o animal deve sentir-se ameaçado para demonstrar um comportamento violento, impulsionado pela agressividade instintiva desse animal; o comportamento violento mostra-se, portanto, um reflexo aos estímulos que ameaçam o animal.
6.1 – Afirmar que os leões devorarem os filhotes de outros leões é instintivo é afirmar que isto é uma necessidade, assim como o sexo, a alimentação e a respiração.
6.1.1    – Se comer os filhotes é um comportamento que pode ser extinto, então ele não é instintivo, podendo ser socialmente aprendido ou decorrente de seleção natural.
6.1.1.1 – A seleção natural não seleciona instintos, mas genes a ser repassados, portanto, informação genética, como exposto no postulado 2.
6.1.1.2 – A seleção natural depende do comportamento certo do animal no ambiente que permitirá a sobrevivência de um gene.
6.1.1.3 – Da mesma forma, podem ocorrer mutações no material genético dos animais, por causas variadas.
6.1.1.3.1 – As mutações genéticas podem extinguir uma espécie por ser desfavorável para a adaptação dela em seu meio ou facilitar a sobrevivência dessa espécie no meio, o que significa uma melhor adaptação, retornando o raciocínio para o escólio 6.1.1.2.

7 – Instinto é comumente e corretamente pensado como ações que os seres vivos desempenham desde o nascimento.
7.1 – As diferenças instintivas entre seres vivos decorrem de um material genético variado.
7.1.1 – O material genético variado decorre de condições ambientais, diferentes formas de adaptação das espécies ao seu ambiente e mutações preservadas por seleção natural.

1ª Conlusão:

1 – Não é instintivo devorar os filhotes, mas garantir a sobrevivência eliminando empecilhos que impeçam que o leão consiga se alimentar, sendo devorar os filhotes de uma prole estranha um comportamento possível e dificilmente um reflexo. Justificado pela seleção natural.

2 – Não é instintivo a leoa lutar contra as ameaças ao seu filhote, mas garantir a sobrevivência do filhote, sendo a luta e o confronto um comportamento possível justificado pela seleção natural. Por configurar um reflexo, visto que é um comportamento respondente, ou seja, acontece 100% das vezes em que o filhote encontra-se em perigo ou quando a leoa sente que existe uma ameaça; o ato de proteção pode configurar um comportamento operante, isto é, que opera sobre o ambiente de forma a prevenir as ameaças pelo combate físico.

Acerca do instinto em seres humanos:

Em seres humanos encontramos outras variáveis (análise psicanalítica da autoimagem e as ciências da cultura), permitindo-nos interpretar casos de rejeição de bebês por pais que descobrem uma traição na relação e desconfiam que o filho não seja de sua linhagem como:

1 – A traição e a descoberta da falsa paternidade são eventos diferentes, embora coextensivos.
1.1 – No caso da traição, o importante é a reciprocidade e a confiança que desaparece na relação do casal.
1.1.2 – A traição fragiliza a relação do casal, mas não necessariamente a relação pai-bebê.
1.2 – No caso da descoberta da falsa paternidade, o importante é a negação de algo que parecia verdade. O bebê é a mentira viva na relação do casal, mas torna-se objeto de projeção das angústias do homem que o criou imaginando ser seu pai ("pai").
1.2.1 – O bebê é mais do que genes herdados do pai para serem perpetuados, é um sentido de existência e de pertencimento para o "pai": quebra de expectativa e fragmentação da identidade.
1.2.1.1 – Este caso pode ser revisto como objeto de interesse da filosofia pelo uso da razão e dos atos conscientes, não sendo nem biológico nem psicanalítico.
1.2.2 – O instinto do "pai" é a preservação de si, refletido na preservação da autoimagem de “ser pai”, sentido existencial dado quando soube da gravidez da esposa.
1.2.2.1 – O então “pai” pode ver-se como pai a partir do momento em que recompõe sua autoimagem de pai do bebê, ignorando a genética.

2 – O darwinismo, quando muito mal interpretado, sugere que a evolução acontece sob um princípio de exclusão, justificada pela famigerada competição natural entre os seres vivos.
2.1 – A evolução dos seres vivos tende para a homeostase, por isso, para organismos cada vez mais complexos, inter-relacionados, retroativos e socialmente funcionais. Se o ser humano representa o auge da evolução seu organismo pode ser tomado como exemplo dos processos históricos de evolução.
2.2 – A psicanálise, mesmo superando a visão freudiana da psique, preserva o conceito de ego e a descentração do ego para a sociedade – sacrifício dos prazeres individuais devido a princípios morais.
2.2.1 – A eficácia dos sistemas culturais humanos encontra-se baseada num sistema de valores que submete o indivíduo à vida coletiva.
2.2.2 – O surgimento de um sistema simbólico comum à vida social permite que os indivíduos se comuniquem e criem linguagem, recurso que só é desenvolvido na presença do outro.
2.2.2.1 – A linguagem existe para comunicar algo, ela é criada a partir das necessidades dos indivíduos e se complexifica a medida que as necessidades do indivíduos se complexificam.

3 – A consciência permite uma adaptação melhor do indivíduo ao ambiente por estar dotada de reflexão, possibilidade de mudança de comportamentos.
3.1 – A complexificação da consciência permite que o indivíduo viva um momento e não um instante.
3.2 – A complexificação da consciência permite que o indivíduo perceba-se como um objeto entre objetos.
3.3 – Acompanhada da possibilidade de memorização, a consciência permite resgatar diferentes disposições dos objetos no espaço num instante específico e contribui para a diferenciação de instantes.
3.3.1 – Os instantes memorizados permitem a formação de uma narrativa pessoal: permitem que o indivíduo conte sua história.
3.4 – A consciência permite o desenvolvimento da autorregulação na medida em que as memórias resgatadas oferecem uma percepção contínua do indivíduo no espaço.
3.5 – As emoções são a complexificação das percepções sensoriais, com um funcionamento mais profundo, alcançando a psique.
3.5.1 – As emoções ajustadas à consciência podem ser consideradas processos evolutivos decorrentes da superação do ego: originam os conflitos internos, solucionados na maioria das vezes com encontros externos (no ambiente).


2ª Conclusão:

1 - As atitudes violentas são comportamentos-reflexos com bases genéticas no temperamento agressivo, não instintos. O instinto é a autopreservação.
1.1 – Ainda que existam genes para justificar a agressividade, e por isso a violência, a carência de estímulos ambientais não ativa esses genes e a violência não é uma necessidade biológica senão um comportamento genético que sofreu seleção natural para permitir uma adaptação, mas que pode ser suprimido pelo aparecimento de um comportamento mais vantajoso para a sobrevivência dessa espécie sem alterar sua identidade genética num curto período de tempo.
1.1.2 – A mudança de comportamento não altera o material genético, como gostaria o lamarckismo, embora mudanças no material genético signifiquem mudanças diretas nas possibilidades de comportamento, como consta no darwinismo.

2 – As emoções também estão sujeitas a processos evolutivos pela fisiologia do corpo e sugerem, por darwinismo, um funcionamento emocional do cérebro que propicia a adaptação da espécie humana.
2.1 – As emoções costumam ser justificadas pelo funcionamento neurofisiológico do corpo, tendo um sentido material muito bem construído e estudado pelas ciências biológicas ou ciências da vida, por outro lado, as ciências humanas aventuram-se a procurar sentidos imateriais nas relações humanas, como é a ideia, a moral, a linguagem, a cultura, o pensamento, a transcendência.

3     – O conflito interno gerado no "pai" pela descoberta da traição e de que seu filho não é necessariamente seu, gera uma emoção desagradável que pode ser ajustada por um ato de consciência para viver em convivência.
3.1 – A convivência é saudável na medida em que ela permite relacionar-se.  O "pai" pode separar-se da esposa e do bebê, este será o recurso homeostásico que permitirá ao "pai" dirigir seus desejos e sonhos para outras relações (outras mulheres/outros bebês). 
3.1.1 – Pensar a homeostase das relações como a conciliação entre marido e esposa e marido e bebê, é um valor moral sobre as relações, que também significa enfrentar os perigos que fragmentam a autoimagem.
3.1.1.1 A reconciliação pode ser uma solução consciente e/ou emocional, mas não necessariamente, visto que a identidade de pai pode ser reconstruída em outras relações.

4 – Dificilmente a agressividade deixará de fazer parte dos reflexos emocionais que permitem a autopreservação do ser (instintivo), mas a consciência, nascida da socialização, decorrente de bases evolutivas da cognição e da abstração humanas, tendem a punir comportamentos que impedem a convivência moral dos indivíduos sociais.
4.1 – Diferente do reforço negativo, que aumenta a frequência da resposta indesejada ao observador devido a estímulos condicionantes, toda punição diminui a frequência de uma resposta indesejada por estímulos aversivos. A punição, desta forma, procura extinguir uma resposta inadequada às expectativas dos condicionantes.
4.2 – A divisão que se faz no comportamentalismo entre reforço positivo e reforço negativo leva em consideração uma resposta comportamental escolhida arbitrariamente para ser o objetivo do condicionamento.
4.2.1 – Toda punição, não é nada mais que um arbitrário que regula o comportamento de um indivíduo ou grupo de indivíduos, portanto, não é natural ou instintivo, é sempre um comportamento violento.
4.3 – Cada cultura encontra sua própria forma de homeostasiar-se, de aplicar reforços positivos ou punições para garantir a sobrevivência de grupos que partilham de um circuito simbólico parecido. Assim, a cultura tende a preservar sua forma adequando o comportamento de seus indivíduos à própria cultura, evitando heresias, sendo as punições uma forma de extinguir comportamentos que impeçam a convivência entre os seres.
4.3.1 – As culturas encontram divergências entre seus valores, costumes e tradições, diante de culturas estranhas.
4.3.1.1 – Qualquer fundamentalismo é uma forma de extinguir o que é estranho, tendendo a perpetuar sempre o Mesmo, seus próprios valores, o que fere um princípio de variabilidade essencial nas teorias da evolução, além de não ser homeostático.
4.4 – As culturas que incentivam comportamentos violentos, a liberação dos impulsos agressivos através da punição, provavelmente sofrerão negativamente as consequências da seleção natural, visto que a evolução prioriza conjunções.

5     – Temas como ética, política, filosofia e educação permitem profundas reflexões da vida sobre a vida, das continuidades possíveis e desejáveis. Permitem rever comportamentos, recompensas e punições no cotidiano, na cultura e na história e ajustá-las para realizar seu instinto e todos os outros instintos.
5.1 – A negociação, o diálogo, a conversa e a fala são meios que diferenciam as possibilidades comportamentais de leões e esposos que achavam que eram pais, permitindo realizar as necessidades do instinto ajustando seu comportamento, tendendo cada vez mais à autorregulação e menos à punição externa, sendo a surpresa e raiva reflexos para lidar com um ambiente ameaçador à autoimagem, mas que podem ser evitados sob condicionamentos.
5.1.1 – É difícil imaginar que uma autorregulação permita que o indivíduo conheça 100% de si mesmo e de suas possibilidades comportamentais, o ego não permite que o indivíduo realize autopunições constantes que evitariam a realização do seu prazer, sendo considerado patológico ou mesmo uma mutação desfavorável para sua sobrevivência. O que justifica a existência de instituições externas ao indivíduo para regular a vida social.


6 – Nem o leão nem o ser humano possuem instintos agressivos, a seleção natural utiliza a agressividade como um reflexo para a sobrevivência em casos de ameaça apresentadas pelo ambiente, podendo a agressividade ser externalizada nos mais variados comportamentos e combinações entre eles, possíveis pela existência dessa informação no material genético ou por uma informação aprendida, o que fornece meios para pensar a vida como uma homeostase entre uma informação genética (interior) e uma informação social (exterior). 

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