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segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Você não sabe pensar sozinho?

Diversas vezes em conversas com amigos me questionaram sobre o uso inadvertido de nomes de autores que eu utilizava em conversas. Várias vezes, e principalmente com um amigo que se identifica como de exatas, foi questionado minha originalidade, minha capacidade de pensar por mim mesmo, e muitos me perguntaram se eu não sabia pensar sozinho. Claro que o uso excessivo de nomes vinha da vontade de compartilhar o que eu aprendia no começo da graduação, embora a citação seja algo extremamente necessário e comum no campo acadêmico, um capital que quanto mais eu estudava mais eu me apropriava.
O que me alfinetava não era tanto o desconhecimento que amigos meus possuíam sobre essa cultura acadêmica, que é uma crítica que evidenciou minha tentativa de sobrepor campos culturais distantes: a universidade e a pesquisa das conversas da vida cotidiana e extra universitária. Parecia óbvio para mim que todo conhecimento e todo saber têm lá sua referência não explícita. Andar de skate, empinar pipa, jogar xadrez, usar um controle remoto, ligar um computador, abrir uma caixa de leite, descascar uma cenoura, fazer um nó, dentre inúmeras outras habilidades, não constam na nossa programação genética ou no inconsciente, aprendemos elas em uma dada situação de nossa vida através de uma interação eu-objeto, culminando em conhecimento, ou intermediados por alguém que já possui a habilidade que gostaríamos de aprender, implicando numa interação eu-outro habilidoso-objeto, que segue como esquema para a produção de conhecimento. Desta forma, aprendemos habilidades por contato direto ou indireto com objetos; aprendemos por nós mesmos ou por interações sociais.
É facilmente constatável que podemos aprender sozinhos, o que faz a advertência do meu amigo ser extremamente bem fundamentada, bastaria buscarmos nas nossas memórias por situações em que interagimos com o ambiente e tiramos conclusões particulares dele sem ninguém para nos dizer o que deveríamos ter aprendido daquela situação.
Seguindo o raciocínio, não significa que somos parteiros de ideias e que nascemos com uma verdade para ser descoberta e nisso consiste nossa jornada espiritual (uma visão bem socrática). Se concebemos ideias ou se pensamos as coisas é porque há coisas que nos despertam ideias ou coisas a serem pensadas, evanescendo o conceito de nada. Se aprendemos é porque suportamos nosso aprendizado em coisas, imateriais ou não. Novos conhecimentos são emergências de conhecimentos preexistentes. Novos planetas são produtos da colisão de outros corpos celestes. Novas características de uma espécie se devem a diferentes combinações do material genético. Economias vigentes surgiram de economias decadentes.
Todo novo aprendizado tem como base algo que foi aprendido.
Todo conhecimento aprendido requisitou uma interação para que se constituísse como tal, sendo que a interação eu-eu só é válida quando tentamos rever nosso aprendizado e suas aplicações. Desta forma, entendemos que não existe aprendizado sem interação com o mundo, com isto quero dizer que todo conhecimento se construiu por uma relação entre o conhecedor e o outro – um lugar, um objeto, um discurso, uma escrita, um ritual, uma ideia, etc. É importante reforçar que o conhecimento se constrói e não se transmite, surge, aparece, acontece, esse tipo de coisas. A construção diz respeito à disposição e conexão de nossas experiências, formando no início da vida sensações de segurança e insegurança, culminando no uso das experiências seguras para a escolha de experiências posteriores. Nossa sensação do mundo é um conhecimento que temos e que diz respeito sobre a relação eu-mundo, e é a partir dela que fundamos os demais conhecimentos. A construção não precisa ser associada com a verticalização de edifícios, ela pode muito bem ser tombada na horizontal, ser sinuosa, serem esferas encadeadas, ou uma combinação de tudo: uma base horizontal de círculos que tecem linhas sinuosas na vertical com quadrados na ponta que voltam a se conectar diretamente com a base por mais linhas.
Andar de skate exige mais do que se imaginar num skate, há que montar o skate, sentir seu peso, deslizar as rodas no concreto, equilibrar-se, saber quais posições em cima do skate podem causar um acidente. Qualquer pessoa pode aprender a andar de skate sozinha, entretanto, existe um circuito cultural da vasta maioria dos aprendizados que remete ao ensino de uma prática específica. Andar de skate está sujeito a uma prática cultural do conhecimento, visto que existem muitos skatistas e acaba sendo mais fácil aprender uma habilidade quando se dispõe de alguém para ensinar essa habilidade.
O circuito cultural tende a adotar as práticas locais mais comuns, ou ainda, as experiências mais seguras para iniciar a construção do aprendizado. Práticas culturais pode parecer um termo muito rebuscado quando a maioria das pessoas entende o andar de skate como ficar em cima do skate e fazer manobras. É preciso lembrar que por mais que o skate tenha um formado de prancha reconhecível nas culturas que participam da globalização da informação, o tipo de chão, a arquitetura da cidade e a disposição e formato dos objetos e bens públicos requerem diferentes habilidades dos skatistas para construir seus saberes sobre o skate, o que muda a perspectiva cultural que possuem dele.
Julgo incomum que alguém precise ler as regras de xadrez, já que existem tantas pessoas que conhecem e podem ensiná-lo. De qualquer forma, existem livros de xadrez, mais especificamente de jogadas possíveis de acontecer e suas resoluções; seriam livros que armam um cenário de difícil vitória (naturalmente com diversos níveis de dificuldade) que precisam dos movimentos certos para vencer.
            Podemos atribuir movimentos para as peças de xadrez, mas aí estamos criando outro jogo com as peças xadrez. Utilizar as peças de xadrez não é sinônimo de jogar xadrez. Nem é preciso utilizar as regras de xadrez, basta recortar pedaços de papeis e escrever os respectivos nomes das peças, ordená-las no tabuleiro como se faz em todo começo de jogo e movimentá-las pelas regras do jogo (movimento da torre é em linha, do cavalo em L, o rei movimenta-se uma casa por em vez e em qualquer direção, etc.). Para saber jogar xadrez deve-se saber suas regras, e com as regras, naturalmente, sabe-se as peças do jogo, as casas do tabuleiro, a preparação dele, divisão de turnos, etc.
Há uma prática canônica de se jogar xadrez que difere da prática cultural do andar de skate, e não é que o xadrez não seja uma prática cultural, mas ele é muito mais rigoroso na sua execução do que o skate. Ambos possuem sua própria linguagem e particularidades. O skate exige da prancha o que o xadrez exige do tabuleiro. O ponto no qual quero chegar é como chegamos a adquirir essas habilidades ao ponto de dizer eu sei/ eu conheço.
Quando nós aprendemos a abrir uma caixa de leite não damos crédito a quem nos ensinou porque é banal demais referenciar esse tipo de coisa a alguém. De certa forma, podemos aprender qualquer coisa sozinhos, visto que a internet dispõe de muita informação sobre muita coisa, inclusive banalidades: como abrir uma latas de metal, como fazer café, como passar pano no chão, como lavar os pratos, como ler livros, como falar com as pessoas, como abrir a caixa de leite sem derramar o leite!
Primeiro ponto crucial (do qual estamos cientes): o conhecimento não brota da nossa mente, por mais que queiramos acreditar nisto; estabelecemos interações que conectam nossos corpos e mentes com uma situação que assegura uma experiência e a partir dela desenrolamos a construção do nosso pensamento e da reflexão que fazemos sobre nós mesmos. Segundo ponto: todo aprendizado possui uma história de como foi aprendido e apreendido, faz parte da narrativa do eu, o que nos leva a formular referências sobre nossa rede de relações com o mundo e encontrar suas congruências. Entretanto, não sentimos a necessidade de referenciar nossos saberes o tempo todo. Se aprendemos, aprendemos e ponto.
Fica subtendido que ao aprender o skate precisei montá-lo, aprender a manobrá-lo, estive numa superfície razoavelmente lisa. O crédito desse aprendizado é todo meu, pois a iniciativa parte de mim. O eu se vangloria de ocultar qualquer intermediação, mesmo que os próprios objetos sejam intermediários entre ele e o conhecimento ou habilidade que desejou adquirir.
A partir do momento que se aprende as regras básicas de xadrez, esquece-se da intermediação das peças, de um outro jogador, de jogadas específicas que marcam reflexões profundas sobre como organizar as peças no tabuleiro, a fama é reivindicada pelo jogador. O aspecto inanimado das peças parece não oferecer conhecimento algum, elas não dizem coisa alguma sobre como ganhar o jogo ou sugerem um movimento para o xeque-mate. É o sentido implícito que as peças possuem dentro do jogo que fazem a diferença, e é o sentido que a disposição das peças sugere ao jogador que cria a condição para o conhecimento. Não se agradece às peças pela vitória ou pela derrota (pelo aprendizado, trocando em miúdos), agradecemos ao outro jogador ou a nós mesmos.
Manipular um skate, peças de xadrez, tampas de leite, um controle remoto ou um computador não requer referência alguma, embora sejam frutos de uma cultura, portanto, de um saber coletivo. As práticas cotidianas adotam a intransitividade da aprendizagem: quem aprende, aprende. Seria mais sensato dizer que quem aprende apreende, e se apreende requer outra coisa para servir de base para construir seu conhecimento. Reformulando o verbo aprender: quem aprende se relaciona.
Aprender a partir de outras pessoas não é diferente, mas pelo menos aqui já podemos encontrar pessoas referenciando seus aprendizados. Minha mãe disse isso sobre os governantes do país, meu pai acredita que nossa religião possui valores importantes, meu amigo não acredita nessas histórias de conspirações, encontrei alguém que gostaria de um Estado liberal, vi na televisão um especialista desqualificando a internet.
Há a possibilidade de fazer coro com a informação obtida, mas em todo caso, a informação não é sua. Este é um péssimo hábito que adquirimos ao longo de nossa vida, presumir que os frutos de nossos pensamentos nos pertencem. Se eles são nossos, não são de mais ninguém. Se já foram de alguém, agora são nossos. Isto não implica apenas em omitir a relação e a interação, mas fere o princípio de construção do conhecimento. Não é porque o pensamento se encerra no cérebro (ou assim pensamos) que ele é nosso. Aí surge aquela velha discussão sobre quem criou as bases do cálculo: Newton ou Leibniz? Talvez os dois. Talvez nenhum: quais são as referências que ambos utilizaram na elaboração dessa ferramenta matemática valiosíssima? Os autores que eles leram não possuem referências bibliográficas também? Até Marx leu Aristóteles para elaborar suas concepções sobre valor; até Aristóteles bebeu de outros filósofos para tornar-se um clássico na literatura; até Pitágoras precisou de alguém que o ensinasse os códigos e signos matemáticos para formular seu triângulo; até pessoas não marcadas na histórias contribuíram para a história; até essas pessoas desconhecidas foram influenciadas por pessoas igualmente desconhecidas e pelas suas condições de existência para produzirem saber que viria a ser utilizado para a construção dum outro saber que seria a base para alguém ser marcado na história pela contribuição que um novo saber configurou.  
A discordância de um sujeito com as informações que ouve por aí e seu próprio posicionamento (que exige omissão da relação) pode significar originalidade, um pensamento profundo (mesmo que seja superficial), uma criticidade (mesmo que não haja), uma opinião que mostra uma identidade pessoal. Provavelmente é esta a preocupação que algumas pessoas tiveram ao me dizerem você não sabe pensar sozinho, sentiram uma doutrinação, uma percepção formal e pouco sensível da realidade, algo que somente os livros poderiam oferecer, o que não é verdade. A concordância e a discordância mostram-se aprendizados úteis; são relações que escolhemos estabelecer, no caso da discordância, optamos por não escolher a relação de concordância, e se não concordamos com A, então recorremos a B, a C, e assim incansavelmente, apenas para deixar claro que nada é tão polarizado a ponto de ser só A ou B.
Há anos conversava com um amigo sobre futebol e lhe explicava sobre como o esporte poderia ser um exemplo de barbárie, e naturalmente referenciei Theodor Adorno. Em outra conversa sobre discurso de autoridade, referenciei Michel Foucault. Numa discussão sobre desigualdades sociais, Pierre Bourdieu. Sobre juízo de valor e imparcialidade, Max Weber. Recentemente em posts sobre o projeto Escola Sem Partido, Paulo Freire. Inclusive, é meio complicado dizer qual conhecimento é inteiramente meu. Não é porque eu li Paulo Freire que eu o reproduzo fielmente, minha leitura e compreensão de suas obras passam primeiramente pela leitura que eu faço de mim mesmo e de minhas experiências e como eu relaciono as palavras às coisas.
Não preciso mencionar que minha escrita se deve a alguém, eu poderia acreditar que ela é inteiramente minha, por mais que leitores próximos façam inferências constantes a como eu encadeio minhas ideias, sugerem, apontam críticas, é mais coerente pensar que eu tenho um estilo de escrita porque eu li o suficiente para adotar este ou aquele estilo, ou ainda, tentar uma escrita experimental a partir de conhecimentos anteriores.
Mesmo na forma em como eu regulo meu comportamento nos ambientes, estou sujeito aos olhares, a um comentário indelicado sobre como estou, tudo isto servindo de reforços disciplinares do meu corpo, de modo que minhas relações com o ambiente acabam sendo mais um controle em como eu devo me portar do que permite minha liberdade para me posicionar no espaço. Já aprendi que devo comer com talhares e são raras as comidas que como com as mãos, parece improvável alguém pensar que é uma boa ideia comer com os pés, diga-se de passagem. O que paira aqui não é se somos livres ou não, mas se somos originais e se temos a liberdade de criar identidades num mundo que parece tão bem regulado, com seus limites bem traçados, regras asseguradas e punições legítimas para os corpos indisciplinados.
Da mesma forma, como poderíamos ser donos de nossos pensamentos e de nossas ideias se partirmos da suposição que nossas escolhas pessoais são um habitus com influência severa das práticas sociais?
Sou levado a desacreditar que o habitus age imperiosamente pelas estruturas sociais, embora devamos levar em conta que as estruturas estruturadas possam agir como estruturas estruturantes, mas algo fundamental para a escolha do estilo de vida é o ambiente da vida privada, onde ninguém escolhe pelo sujeito, onde sua identidade não é voltada para a sociedade, mas sim para uma expressão fiel da sua subjetividade, um estar consigo mesmo. O fundamento continua sendo o da escolha a partir da ideia de segurança e da experiência ser ou não agradável, do saber como prazer e do cuidado de si.
Se a aprendizagem continua como interação, deveríamos realocar as estruturas nesta concepção e antever um funcionamento simultâneo das estruturas a nível eu-sociedade, em que as estruturas formadoras da sociedade possuem efeitos sobre o eu, ainda que o eu possua suas próprias estruturas formadoras da sociedade, sendo até transformadora. Este duplo movimento dinamiza a relação e complexifica o entendimento sobre a aprendizagem, visto que um aprendizado que é base decorre de um outro aprendizado: os meios e os fins se confundem, sendo algo tão fluido quanto a dialética hegeliana.
Talvez seja por pensar de forma tão hegeliana que as pessoas se confundem sobre a aprendizagem. A dialética hegeliana funda-se numa negação entre a tese e a antítese, daí vem a síntese. A referência aqui é de negação, de algo que não existe mais, sendo notável apenas o fato que a ideia foi sintetizada pelo confronto de outras, um choque das partes para acontecer uma espécie de nucleossíntese geradora de inovação. Sendo mais deleuzianos, podemos deixar de considerar a identidade como exclusão das diferenças, lógica comum da formação da identidade, e dizer que a identidade é precisamente o convívio com as diferenças. A exclusão nos devolve à rigidez de uma modernidade que não tolera o outro, aquilo que Bauman chamou de modernidade sólida, retirando de nós a escolha e trabalhando pela imposição, pela sistematização e pelo controle do Ser.
É uma fatalidade para a modernidade líquida encontrar livros grossos de acadêmicos regrados que dizem o que se pode ou não fazer, tecendo críticas ferrenhas aos estilos de vida, dando a entender que a forma como vivemos está repleta de vícios ou de manipulação ideológica. Devem ser ressaltados os filósofos existencialistas que mencionam ações de má-fé encontradas nas relações cotidianas: a liberdade depende de nossas escolhas, mas é mais fácil permitir que outras pessoas escolham por nós, nos desresponsabilizamos pela nossa própria existência.
A menção a autores pode ser confundida com argumento de autoridade, mas só é confundida com esse recurso retórico porque ele é muito utilizado. Quando não se tem conhecimento sobre a área da qual o interlocutor fala podemos pressupor quatro acontecimentos: a) utilizar o senso comum, e normalmente as pesquisas científicas já verificaram esse senso comum, como acreditar que homossexualidade é doença, expor esse pensamento e (i) em seguida ser bombardeado com argumentos históricos, filosóficos, psiquiátricos, antropológicos, sociológicos, e é capaz que acabe num explanação psicanalítica freudiana sobre a homofobia ser um desejo homossexual reprimido ou (ii) se satisfazer com a explicação por reconhecer prestígio no argumento de autoridade, podendo ir contra ou a favor de sua crença e experiências; b) utilizar outro argumento de autoridade e vencer no cansaço ou pela falta de argumentos do interlocutor, algo bem típico da retórica; c) ouvir e questionar com ou sem argumentos de autoridade, buscando estabelecer uma relação de compreensão entre os interlocutores. Aqui, inclusive, é onde os interlocutores conseguem tomar a liberdade de dizer você está recorrendo a um argumento de autoridade e o outro interlocutor compreenderá que ele está cedendo a falácias e buscará reformular seu argumento.
Em a) e b) encontramos fortes ações autoritárias ou dóceis imanências, e somente em c) encontramos uma conversa e não uma digladiação ou uma disciplinarização. Mas é pelo uso da autoridade de um interlocutor que se reafirma uma posição existencialista no outro com a interpelação você não consegue pensar sozinho? Num mundo de liquidez a autoridade torna difícil a movimentação, é preferível pensar em autoridades, num mundo de especializações, em que não existe um único profissional sobre o assunto ou uma única solução: são diversas instituições, cada uma com suas especializações, e mesmo com propostas contraditórias sobre um mesmo tema podem ser escolhidas pelos sujeitos que fazem usos de seus serviços, sendo a escolha baseada no estilo de vida do utilizador daquele serviço.
Em resumo, pensar por si mesmo diminui as intermediações e agiliza a tomada de decisões, nos posicionamos mais rapidamente no mundo e aproveitamos melhor as oportunidades que se mostram. A rede de informação compartilhada e globalizada permite que possamos buscar os saberes que queremos, mesmo conhecendo os riscos que eles nos oferecem. Ainda que a modernidade líquida não signifique estar de braços abertos para todo tipo de situação, ela continua fundamentada nas escolhas e no aumento da quantidade de opções que temos em comparação com a modernidade sólida; o princípio é fazer escolhas de acordo com a nossa identidade, ou como nos vemos e nos posicionamos no campo. O mundo líquido permite mudanças recorrentes.
A aprendizagem numa era líquida é guiada por aprendizados descartáveis. Daí a recusa por autores “ultrapassados”. Os escritos de Marx sobre economia são descartados pelos mais leigos por ser “velho demais”, por não atender as necessidades atuais: a economia do mundo atual é outra comparada com a de 150 anos atrás. E quando questionados de porque pensam o que pensam dirão que ouviram comentários de outras pessoas, leram algo sobre Marx em algum lugar, viram algo num canal de TV. Ler os escrito de Marx diminui as intermediações e ruídos nas relações de conhecimento. Os ruídos se dissipam quanto mais próximos da tradução original estamos ou de edições lançadas com o autor vivo, já que se espera que eles revisem seus próprios trabalhos.
Ler Marx hoje em dia acontece em dois tempos: ler, obrigatoriamente e não unicamente, O Capital, e ler estudiosos do Marx comentando e/ou explicando O Capital e autores que utilizaram Marx nas sua análises econômicas e sociológicas, em teorias da comunicação, da história e da educação, nos escritos e ensaios filosóficos. É tão amplo os estudos e pesquisas destinadas a Marx e marxistas que “ultrapassado” ou “velho demais” acabam sempre como usos preconceituosos do pensamento marxista. E deveria dizer que Freud leva a mesma fama de “ultrapassado” de Marx, isto quando não é apenas taxado de idiota e utilizam seu próprio complexo de édipo num teor cômico-agressivo contra o próprio Freud. E se as pessoas compreendessem um ruído como tal e não como uma bela canção, abandonariam o rótulo pessimista que destinam a Nietzsche, mas para o bem (ou mal) (ou para além) quase nunca está ao lado de Freud ou Marx, exceto quando se compreende que todos se tratam de filósofos da suspeita.  
Os ruídos não existem em contraposição a uma verdade, eles existem dependendo dos agentes para os quais se fala e suas posições no campo. Naturalmente, é uma questão de capital acadêmico que diferencia os leitores e conhecedores, bem como a metodologia por traz dos estudos sobre estes autores, da informação rápida, da fama, da difusão e impacto global que um autor possui num nível superficial. Num campo onde é reconhecido o uso da informação rápida e carecida de fontes, não será incomum o uso descontrolado da opinião, imagino que por não serem rigorosos não são pesquisadores e não estão interessados em compreender profundamente aquilo que leem, mas se informarem de modo que consigam se posicionar numa conversa, para ter sua própria opinião, para ajudar a refletir, para ter suas próprias ideias.
Um encontro entre um estudante de graduação que leva a sério suas leituras e alguém que possui uma informação de fontes arriscadas só pode acabar em figuras de autoridade na conversa. Francamente ninguém precisa dedicar horas para compreender algo porque outra pessoa diz “está faltando estudar mais”, entretanto, há um custo em não dedicar algum tempo em pesquisas com fontes confiáveis: não poder reivindicar autoridade sobre o assunto. Como as pessoas conversam sobre temas diversos (e muitas vezes existe um script para a conversa acontecer), então alguma hora você acaba aprendendo alguns termos, inventa outros e assim sucessivamente. O maior problema surge quando pensar por si mesmo torna-se ancorar os saberes.
O pensamento até então socrático e existencialista mostra-se incompleto e inconsistente. Não é socrático porque não admite a ignorância (Só sei que nada sei), e só parimos ideias porque nunca temos certeza, aliás, estamos certos de nossa incerteza, talvez nem isso, a incerteza da incerteza possa ser um caminho mais tortuoso e mais ideal. A incerteza da incerteza não tornaria a incerteza certa, apenas uma pedra no caminho que deveríamos aceitar que esta sempre lá e preferimos pensar que não. Aproveitando a deixa da filosofia existencialista: ao fazer escolhas nos responsabilizamos por nossas liberdades, e ser livres implica em dividir liberdades e agir moralmente sobre nossos aprendizados, conhecimentos, saberes e informações, sempre se atentando para a reciprocidade e a solidariedade que envolve uma relação livre. Mesmo a liberdade não acontece por capricho ou vontade de quem desfruta da liberdade, até ela é uma relação com alguém, provavelmente, com outro ser livre.
Às vezes parece que a incerteza desestabiliza a liberdade por duvidar constantemente sobre ser livre. Pelo contrário, a incerteza é a vigilância constante de uma liberdade que se renova e não se permite definir como liberdade. Uma liberdade estabelecida milimetricamente acaba com limites, questionando seu próprio princípio. Mas a revisão constante de seus limites entende que não pode haver imposição, mas discussão e diálogo, por isso ser livre. A liberdade que se repensa é liberdade reformadora e é reforma livre da certeza sobre si mesma, pois a identidade de ser livre está menos numa definição exata da liberdade a uma imprecisão da expressão da liberdade reformada e reformadora.
Pensar por si mesmo é um enganoso artifício da certeza, uma perigosa armadilha que delimita as linhas e os azulejos do chão de uma prisão que viverei. Perceberei o mundo além das grades, mas hei de compreender que minha maior liberdade é tirar minhas próprias conclusões dela e não apelar para outros tipos de relação. Devo acreditar inteiramente em mim mesmo, o mundo externo é uma ameaça aos meus sentidos, mas é por eles que preciso apreender o mundo.
Se os sentidos são uma ameaça é somente porque são incertos. Eles não possuem a finalidade de achar as certezas ou as verdades, eles nos auxiliam a aprender, a nos sentirmos seguros num meio, a continuar construindo nosso incansável e incerto aprender. Não temos problema algum com utilizarmos as incertezas do nosso aprendizado, e só serão incertezas se existir uma certeza, como a certeza é incerta a própria incerteza carece de sentido para existir se tratada como uma dicotomia. Não deveríamos temer a incerteza, esta é uma virtude de questionar-se e aprimorar-se, devemos duvidar da certeza que nos traz autoridade e que delimita como aprender e como se relacionar, perdendo a liberdade para ser.
A modernidade líquida não é um empecilho por não fixar uma autoridade, faço um elogio a ela por levantar a multiplicidade das diferenças e assegurar a diversidade de identidades. O deslocamento do espaço e tempo na modernidade são um empecilho por trazer não precisar criar conexões entre eles. Os saberes e conhecimentos acabam por serem tolerados e as mudanças são tão rápidas que a própria educação deve repensar suas relações com o conhecimento e à produção de conhecimento.
O pensar sozinho possui destaque neste cenário por desconsiderar as relações, não estabelecer conexões, demanda o aprender a surfar na liquidez da vida cotidiana que se atemoriza com as autoridades críticas dos estilos de vida; desestabilizam a segurança e confiança que o sujeito possuía no seu conhecimento, requerindo novos conhecimentos e um novo estilo de vida, o que implica em recalcular os riscos do novo estilo de vida. Na outra face da moeda, há a especificação do capital cultural da academia somente à academia, sem sobreposição à vida cotidiana, que requer referências mais brandas e de conhecimento geral. A mudança do campo provoca uma mudança do habitus destinado ao campo, a vida cotidiana pede um habitus mais brando e com maior apelo da vida pessoal para a tomada de decisões do que a academia, que requer uma rigorosa disciplina sobre o uso dos saberes.
Saber pensar sozinho é artimanha de um mundo líquido que não se interessa pelas estruturas estruturadas, mas que busca na identidade pessoal e no pensamento original uma estrutura estruturante, que acaba por funcionar como uma forma de distinção entre os menos prestigiados. “Se alguém já disse isso você não precisa repetir, você pode fazer diferente”. Mesmo que seja a leitura dos clássicos e o mundo das citações e do conhecimento sobre uma vasta bibliografia de acadêmicos que proporcione a ascensão numa instituição responsável pela promoção e difusão do conhecimento tal como é a universidade, será o pensar sozinho a forma de subversão da autoridade acadêmica, mesmo que só funcione como forma de distinção entre aqueles que desqualificam as citações.
Imagino que uma possível conclusão dada por esses meus amigos possa ser: não é nada disso, só é chato mesmo! Neste caso o melhor a fazer é ocultar os nomes que dão sentido as ideias, que muitas vezes é um ato de contextualizar e historicizar o saber, de dizer um conceito ou um termo que não está no dicionário e dá um ar mais coerente à discussão. Se referenciamos nossos contemporâneos e mesmo falas mainstreams de pessoas mundialmente e historicamente conhecidas, qual o mal que mais uma citação traz?
Há claramente um capital simbólico implícito nas relações que permite saber quando e com quem podemos fazer uso de um conhecimento que não é nosso e quando devemos fingir que é nosso conhecimento. Mais uma vez aparecem as dicotomias: ou somos papagaios ou somos virtuosos.
Quando lemos da internet nem precisamos nos preocupar com a fonte, a não ser que o autor seja bem conhecido ou esteja em voga (youtubers em geral, um blog conhecido). Ninguém presta atenção aos escritores das notícias de jornal, o nome do jornal arrecada os créditos; se quero fazer um bolo busco uma receita, não seu autor; vídeos-tutoriais no youtube e sites afins podem constar com a identificação pessoal e real do indivíduo, porém, nicknames são o habitual, e costumamos atentar a canais específicos (“viu aquele vídeo do Porta dos Fundos? O que você achou da crítica deles?”, “Pirula tava falando até de mapa astral dessa vez!”, “Não sei se eu gostei do que a Jout Jout disse hoje”, “Não gostei muito do Nerdologia de hoje”).
Mesmo a música não é um mero acontecimento, seus autores podem justificar a arte pela arte, mas a música como expressão de um estilo próprio é também expressão de conhecimentos técnicos sobre o instrumentos, sobre composição, sobre o equipamento de gravação, sobre as experiências vividas, sobre um filme, sobre um evento histórico, sobre um acontecimento atual, sobre um livro, sobre uma rede de relações. Da mesma forma a literatura, seguindo o mesmo esquema da música: há um estilo de escrita, um gênero, outros livros lidos, construção de personagens, e assim por diante.
A música e a literatura talvez sejam os locais onde encontramos a omissão das referências como um fator positivo. Nestes dois exemplos buscamos ou acontece de encontrarmos uma mensagem subliminar ou uma referência direta a outro autor, outros livros, outras músicas, outros acontecimentos. Na música é mais perceptível que nem sempre a entendemos completamente, mesmo as letras mais simples do mundo pop são diretas ou indiretas a romances, amizades ou situações que dizem respeito ao artista, empoderamento das minorias, etc.
Desta forma só posso concluir que o uso de referências possui limites que respeitam o campo, a posição social e o capital cultural envolvido na relação. A modernidade líquida contribui para que as citações, referências ou fontes sejam flexibilizadas, bem como a menção às relações de conhecimento, podendo parecer que aprendemos sozinhos, quando na verdade é um recurso do período atual para privilegiar as identidades pessoais e a pluralidade de opiniões, formadas com a separação entre espaços e tempos que a globalização proporciona, distinguindo-a as modernidades líquida (vida cotidiana) e sólida (academia). A aprendizagem é um aprender em conjunto, interconectado, multidimensional, afetivo, biopsicossocial, incerto e livre, cujas referências são numerosas e complexas, de complicada enunciação.
Referenciar os aprendizados são possíveis com uma condição: excluir as referências que tornariam impossível a citação (descrições precisas do local em que se aprendeu uma habilidade como temperatura, dimensões físicas, umidade, sons, o que pensava enquanto aprendia, o que sentia enquanto aprendia) e continuar a discutir um tema . Selecionamos o que nosso interlocutor deve saber sobre o que falamos por não poder proporcionar um revisão tão ampla das bases que sustentam esse aprendizado, e às vezes o simples fato do que é falado não vir de um terceiro, mas de quem pronuncia o discurso, é mais importante. Aí estão as declarações de amor, agradecimentos e parabenizações. De uma forma parecida, a vida cotidiana parece pedir mais relações que prezam o que nós achamos, mesmo que seja consequência da relação complexa da aprendizagem, já implícito a ideia de que não aprendemos sozinho.
Se estou a conversar sobre educação com amigos, com (in)certeza podem pensar que eu já li algo a respeito, mas com igual (in)certeza penso que primeiramente lhes ocorre que eu faço pedagogia, e esta informação é suficiente. E se mostra mais raro uma vida cotidiana imersa em referências explícitas e praticamente uma extensão da academia.
O capital simbólico parece justificar bem as preferências pessoais.

Nem todo texto precisa de legenda. Ou precisa?

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