O que me alfinetava não era tanto
o desconhecimento que amigos meus possuíam sobre essa cultura acadêmica, que é
uma crítica que evidenciou minha tentativa de sobrepor campos culturais
distantes: a universidade e a pesquisa das conversas da vida cotidiana e extra
universitária. Parecia óbvio para mim que todo conhecimento e todo saber têm lá
sua referência não explícita. Andar de skate, empinar pipa, jogar xadrez, usar
um controle remoto, ligar um computador, abrir uma caixa de leite, descascar
uma cenoura, fazer um nó, dentre inúmeras outras habilidades, não constam na
nossa programação genética ou no inconsciente, aprendemos elas em uma dada
situação de nossa vida através de uma interação eu-objeto, culminando em conhecimento,
ou intermediados por alguém que já possui a habilidade que gostaríamos de
aprender, implicando numa interação eu-outro habilidoso-objeto, que segue como
esquema para a produção de conhecimento. Desta forma, aprendemos habilidades por
contato direto ou indireto com objetos; aprendemos por nós mesmos ou por
interações sociais.
É facilmente constatável que
podemos aprender sozinhos, o que faz a advertência do meu amigo ser
extremamente bem fundamentada, bastaria buscarmos nas nossas memórias por
situações em que interagimos com o ambiente e tiramos conclusões particulares
dele sem ninguém para nos dizer o que deveríamos ter aprendido daquela situação.
Seguindo o raciocínio, não
significa que somos parteiros de ideias e que nascemos com uma verdade para ser
descoberta e nisso consiste nossa jornada espiritual (uma visão bem socrática).
Se concebemos ideias ou se pensamos as coisas é porque há coisas que nos
despertam ideias ou coisas a serem pensadas, evanescendo o conceito de nada. Se
aprendemos é porque suportamos nosso aprendizado em coisas, imateriais ou não.
Novos conhecimentos são emergências de conhecimentos preexistentes. Novos
planetas são produtos da colisão de outros corpos celestes. Novas características
de uma espécie se devem a diferentes combinações do material genético.
Economias vigentes surgiram de economias decadentes.
Todo novo aprendizado tem como
base algo que foi aprendido.
Todo conhecimento aprendido
requisitou uma interação para que se constituísse como tal, sendo que a
interação eu-eu só é válida quando tentamos rever nosso aprendizado e suas
aplicações. Desta forma, entendemos que não existe aprendizado sem interação
com o mundo, com isto quero dizer que todo conhecimento se construiu por uma
relação entre o conhecedor e o outro – um lugar, um objeto, um discurso, uma
escrita, um ritual, uma ideia, etc. É importante reforçar que o conhecimento se
constrói e não se transmite, surge, aparece, acontece, esse tipo de coisas. A
construção diz respeito à disposição e conexão de nossas experiências, formando
no início da vida sensações de segurança e insegurança, culminando no uso das
experiências seguras para a escolha de experiências posteriores. Nossa sensação
do mundo é um conhecimento que temos e que diz respeito sobre a relação
eu-mundo, e é a partir dela que fundamos os demais conhecimentos. A construção
não precisa ser associada com a verticalização de edifícios, ela pode muito bem
ser tombada na horizontal, ser sinuosa, serem esferas encadeadas, ou uma
combinação de tudo: uma base horizontal de círculos que tecem linhas sinuosas
na vertical com quadrados na ponta que voltam a se conectar diretamente com a
base por mais linhas.
Andar de skate exige mais do que
se imaginar num skate, há que montar o skate, sentir seu peso, deslizar as
rodas no concreto, equilibrar-se, saber quais posições em cima do skate podem
causar um acidente. Qualquer pessoa pode aprender a andar de skate sozinha,
entretanto, existe um circuito cultural da vasta maioria dos aprendizados que
remete ao ensino de uma prática específica. Andar de skate está sujeito a uma
prática cultural do conhecimento, visto que existem muitos skatistas e acaba
sendo mais fácil aprender uma habilidade quando se dispõe de alguém para
ensinar essa habilidade.
O circuito cultural tende a
adotar as práticas locais mais comuns, ou ainda, as experiências mais seguras
para iniciar a construção do aprendizado. Práticas culturais pode parecer um
termo muito rebuscado quando a maioria das pessoas entende o andar de skate
como ficar em cima do skate e fazer
manobras. É preciso lembrar que por mais que o skate tenha um formado de
prancha reconhecível nas culturas que participam da globalização da informação,
o tipo de chão, a arquitetura da cidade e a disposição e formato dos objetos e
bens públicos requerem diferentes habilidades dos skatistas para construir seus
saberes sobre o skate, o que muda a perspectiva cultural que possuem dele.
Julgo incomum que alguém precise
ler as regras de xadrez, já que existem tantas pessoas que conhecem e podem
ensiná-lo. De qualquer forma, existem livros de xadrez, mais especificamente de
jogadas possíveis de acontecer e suas resoluções; seriam livros que armam um
cenário de difícil vitória (naturalmente com diversos níveis de dificuldade)
que precisam dos movimentos certos para vencer.
Podemos
atribuir movimentos para as peças de xadrez, mas aí estamos criando outro jogo
com as peças xadrez. Utilizar as peças de xadrez não é sinônimo de jogar
xadrez. Nem é preciso utilizar as regras de xadrez, basta recortar pedaços de
papeis e escrever os respectivos nomes das peças, ordená-las no tabuleiro como
se faz em todo começo de jogo e movimentá-las pelas regras do jogo (movimento
da torre é em linha, do cavalo em L, o rei movimenta-se uma casa por em vez e
em qualquer direção, etc.). Para saber jogar xadrez deve-se saber suas regras,
e com as regras, naturalmente, sabe-se as peças do jogo, as casas do tabuleiro,
a preparação dele, divisão de turnos, etc.
Há uma prática canônica de se
jogar xadrez que difere da prática cultural do andar de skate, e não é que o
xadrez não seja uma prática cultural, mas ele é muito mais rigoroso na sua
execução do que o skate. Ambos possuem sua própria linguagem e
particularidades. O skate exige da prancha o que o xadrez exige do tabuleiro. O
ponto no qual quero chegar é como chegamos a adquirir essas habilidades ao
ponto de dizer eu sei/ eu conheço.
Quando nós aprendemos a abrir uma
caixa de leite não damos crédito a quem nos ensinou porque é banal demais
referenciar esse tipo de coisa a alguém. De certa forma, podemos aprender
qualquer coisa sozinhos, visto que a internet dispõe de muita informação sobre
muita coisa, inclusive banalidades: como abrir uma latas de metal, como fazer
café, como passar pano no chão, como lavar os pratos, como ler livros, como
falar com as pessoas, como abrir a caixa de leite sem derramar o leite!
Primeiro ponto crucial (do qual
estamos cientes): o conhecimento não brota da nossa mente, por mais que queiramos
acreditar nisto; estabelecemos interações que conectam nossos corpos e mentes
com uma situação que assegura uma experiência e a partir dela desenrolamos a
construção do nosso pensamento e da reflexão que fazemos sobre nós mesmos.
Segundo ponto: todo aprendizado possui uma história de como foi aprendido e
apreendido, faz parte da narrativa do eu, o que nos leva a formular referências
sobre nossa rede de relações com o mundo e encontrar suas congruências.
Entretanto, não sentimos a necessidade de referenciar nossos saberes o tempo
todo. Se aprendemos, aprendemos e ponto.
Fica subtendido que ao aprender o
skate precisei montá-lo, aprender a manobrá-lo, estive numa superfície
razoavelmente lisa. O crédito desse aprendizado é todo meu, pois a iniciativa
parte de mim. O eu se vangloria de ocultar qualquer intermediação, mesmo que os
próprios objetos sejam intermediários entre ele e o conhecimento ou habilidade
que desejou adquirir.
A partir do momento que se
aprende as regras básicas de xadrez, esquece-se da intermediação das peças, de
um outro jogador, de jogadas específicas que marcam reflexões profundas sobre
como organizar as peças no tabuleiro, a fama é reivindicada pelo jogador. O
aspecto inanimado das peças parece não oferecer conhecimento algum, elas não
dizem coisa alguma sobre como ganhar o jogo ou sugerem um movimento para o
xeque-mate. É o sentido implícito que as peças possuem dentro do jogo que fazem
a diferença, e é o sentido que a disposição das peças sugere ao jogador que
cria a condição para o conhecimento. Não se agradece às peças pela vitória ou
pela derrota (pelo aprendizado, trocando em miúdos), agradecemos ao outro
jogador ou a nós mesmos.
Manipular um skate, peças de
xadrez, tampas de leite, um controle remoto ou um computador não requer
referência alguma, embora sejam frutos de uma cultura, portanto, de um saber
coletivo. As práticas cotidianas adotam a intransitividade da aprendizagem:
quem aprende, aprende. Seria mais sensato dizer que quem aprende apreende, e se
apreende requer outra coisa para servir de base para construir seu
conhecimento. Reformulando o verbo aprender: quem aprende se relaciona.
Aprender a partir de outras
pessoas não é diferente, mas pelo menos aqui já podemos encontrar pessoas
referenciando seus aprendizados. Minha
mãe disse isso sobre os governantes do país, meu pai acredita que nossa religião possui valores importantes, meu amigo não acredita nessas histórias de
conspirações, encontrei alguém que
gostaria de um Estado liberal, vi na televisão
um especialista desqualificando a internet.
Há a possibilidade de fazer coro
com a informação obtida, mas em todo caso, a informação não é sua. Este é um péssimo hábito que
adquirimos ao longo de nossa vida, presumir que os frutos de nossos pensamentos
nos pertencem. Se eles são nossos,
não são de mais ninguém. Se já foram de alguém, agora são nossos. Isto não
implica apenas em omitir a relação e a interação, mas fere o princípio de construção do conhecimento.
Não é porque o pensamento se encerra no cérebro (ou assim pensamos) que ele é
nosso. Aí surge aquela velha discussão sobre quem criou as bases do cálculo: Newton
ou Leibniz? Talvez os dois. Talvez nenhum: quais são as referências que ambos
utilizaram na elaboração dessa ferramenta matemática valiosíssima? Os autores
que eles leram não possuem referências bibliográficas também? Até Marx leu
Aristóteles para elaborar suas concepções sobre valor; até Aristóteles bebeu de
outros filósofos para tornar-se um clássico na literatura; até Pitágoras
precisou de alguém que o ensinasse os códigos e signos matemáticos para
formular seu triângulo; até pessoas não marcadas na histórias contribuíram para
a história; até essas pessoas desconhecidas foram influenciadas por pessoas igualmente
desconhecidas e pelas suas condições de existência para produzirem saber que
viria a ser utilizado para a construção dum outro saber que seria a base para
alguém ser marcado na história pela contribuição que um novo saber configurou.
A discordância de um sujeito com
as informações que ouve por aí e seu próprio posicionamento (que exige omissão
da relação) pode significar originalidade, um pensamento profundo (mesmo que
seja superficial), uma criticidade (mesmo que não haja), uma opinião que mostra
uma identidade pessoal. Provavelmente é esta a preocupação que algumas pessoas
tiveram ao me dizerem você não sabe
pensar sozinho, sentiram uma doutrinação, uma percepção formal e pouco
sensível da realidade, algo que somente os livros poderiam oferecer, o que não
é verdade. A concordância e a discordância mostram-se aprendizados úteis; são
relações que escolhemos estabelecer, no caso da discordância, optamos por não
escolher a relação de concordância, e se não concordamos com A, então
recorremos a B, a C, e assim incansavelmente, apenas para deixar claro que nada
é tão polarizado a ponto de ser só A ou B.
Há anos conversava com um amigo
sobre futebol e lhe explicava sobre como o esporte poderia ser um exemplo de
barbárie, e naturalmente referenciei Theodor Adorno. Em outra conversa sobre
discurso de autoridade, referenciei Michel Foucault. Numa discussão sobre desigualdades
sociais, Pierre Bourdieu. Sobre juízo de valor e imparcialidade, Max Weber. Recentemente
em posts sobre o projeto Escola Sem Partido, Paulo Freire. Inclusive, é meio
complicado dizer qual conhecimento é inteiramente meu. Não é porque eu li Paulo
Freire que eu o reproduzo fielmente, minha leitura e compreensão de suas obras
passam primeiramente pela leitura que eu faço de mim mesmo e de minhas
experiências e como eu relaciono as palavras às coisas.
Não preciso mencionar que minha
escrita se deve a alguém, eu poderia acreditar que ela é inteiramente minha,
por mais que leitores próximos façam inferências constantes a como eu encadeio
minhas ideias, sugerem, apontam críticas, é mais coerente pensar que eu tenho
um estilo de escrita porque eu li o suficiente para adotar este ou aquele
estilo, ou ainda, tentar uma escrita experimental a partir de conhecimentos
anteriores.
Mesmo na forma em como eu regulo
meu comportamento nos ambientes, estou sujeito aos olhares, a um comentário
indelicado sobre como estou, tudo isto servindo de reforços disciplinares do
meu corpo, de modo que minhas relações com o ambiente acabam sendo mais um
controle em como eu devo me portar do que permite minha liberdade para me
posicionar no espaço. Já aprendi que devo comer com talhares e são raras as
comidas que como com as mãos, parece improvável alguém pensar que é uma boa
ideia comer com os pés, diga-se de passagem. O que paira aqui não é se somos
livres ou não, mas se somos originais e se temos a liberdade de criar
identidades num mundo que parece tão bem regulado, com seus limites bem
traçados, regras asseguradas e punições legítimas para os corpos
indisciplinados.
Da mesma forma, como poderíamos ser
donos de nossos pensamentos e de nossas ideias se partirmos da suposição que
nossas escolhas pessoais são um habitus com
influência severa das práticas sociais?
Sou levado a desacreditar que o habitus age imperiosamente pelas
estruturas sociais, embora devamos levar em conta que as estruturas estruturadas
possam agir como estruturas estruturantes, mas algo fundamental para a escolha
do estilo de vida é o ambiente da vida privada, onde ninguém escolhe pelo
sujeito, onde sua identidade não é voltada para a sociedade, mas sim para uma
expressão fiel da sua subjetividade, um estar consigo mesmo. O fundamento
continua sendo o da escolha a partir da ideia de segurança e da experiência ser
ou não agradável, do saber como prazer e do cuidado de si.
Se a aprendizagem continua como
interação, deveríamos realocar as estruturas nesta concepção e antever um
funcionamento simultâneo das estruturas a nível eu-sociedade, em que as
estruturas formadoras da sociedade possuem efeitos sobre o eu, ainda que o eu
possua suas próprias estruturas formadoras da sociedade, sendo até
transformadora. Este duplo movimento dinamiza a relação e complexifica o
entendimento sobre a aprendizagem, visto que um aprendizado que é base decorre
de um outro aprendizado: os meios e os fins se confundem, sendo algo tão fluido
quanto a dialética hegeliana.
Talvez seja por pensar de forma
tão hegeliana que as pessoas se confundem sobre a aprendizagem. A dialética
hegeliana funda-se numa negação entre a tese e a antítese, daí vem a síntese. A
referência aqui é de negação, de algo que não existe mais, sendo notável apenas
o fato que a ideia foi sintetizada pelo confronto de outras, um choque das
partes para acontecer uma espécie de nucleossíntese geradora de inovação. Sendo
mais deleuzianos, podemos deixar de considerar a identidade como exclusão das
diferenças, lógica comum da formação da identidade, e dizer que a identidade é
precisamente o convívio com as diferenças. A exclusão nos devolve à rigidez de
uma modernidade que não tolera o outro, aquilo que Bauman chamou de modernidade
sólida, retirando de nós a escolha e trabalhando pela imposição, pela
sistematização e pelo controle do Ser.
É uma fatalidade para a
modernidade líquida encontrar livros grossos de acadêmicos regrados que dizem o
que se pode ou não fazer, tecendo críticas ferrenhas aos estilos de vida, dando
a entender que a forma como vivemos está repleta de vícios ou de manipulação ideológica.
Devem ser ressaltados os filósofos existencialistas que mencionam ações de
má-fé encontradas nas relações cotidianas: a liberdade depende de nossas
escolhas, mas é mais fácil permitir que outras pessoas escolham por nós, nos
desresponsabilizamos pela nossa própria existência.
A menção a autores pode ser
confundida com argumento de autoridade, mas só é confundida com esse recurso
retórico porque ele é muito utilizado. Quando não se tem conhecimento sobre a
área da qual o interlocutor fala podemos pressupor quatro acontecimentos: a)
utilizar o senso comum, e normalmente as pesquisas científicas já verificaram
esse senso comum, como acreditar que homossexualidade é doença, expor esse
pensamento e (i) em seguida ser bombardeado com argumentos históricos,
filosóficos, psiquiátricos, antropológicos, sociológicos, e é capaz que acabe
num explanação psicanalítica freudiana sobre a homofobia ser um desejo
homossexual reprimido ou (ii) se satisfazer com a explicação por reconhecer prestígio
no argumento de autoridade, podendo ir contra ou a favor de sua crença e
experiências; b) utilizar outro argumento de autoridade e vencer no cansaço ou
pela falta de argumentos do interlocutor, algo bem típico da retórica; c) ouvir
e questionar com ou sem argumentos de autoridade, buscando estabelecer uma relação
de compreensão entre os interlocutores. Aqui, inclusive, é onde os
interlocutores conseguem tomar a liberdade de dizer você está recorrendo a um argumento de autoridade e o outro
interlocutor compreenderá que ele está cedendo a falácias e buscará reformular
seu argumento.
Em a) e b) encontramos fortes
ações autoritárias ou dóceis imanências, e somente em c) encontramos uma
conversa e não uma digladiação ou uma disciplinarização. Mas é pelo uso da
autoridade de um interlocutor que se reafirma uma posição existencialista no
outro com a interpelação você não
consegue pensar sozinho? Num mundo de liquidez a autoridade torna difícil a
movimentação, é preferível pensar em autoridades, num mundo de especializações,
em que não existe um único profissional sobre o assunto ou uma única solução:
são diversas instituições, cada uma com suas especializações, e mesmo com
propostas contraditórias sobre um mesmo tema podem ser escolhidas pelos
sujeitos que fazem usos de seus serviços, sendo a escolha baseada no estilo de
vida do utilizador daquele serviço.
Em resumo, pensar por si mesmo
diminui as intermediações e agiliza a tomada de decisões, nos posicionamos mais
rapidamente no mundo e aproveitamos melhor as oportunidades que se mostram. A
rede de informação compartilhada e globalizada permite que possamos buscar os
saberes que queremos, mesmo conhecendo os riscos que eles nos oferecem. Ainda
que a modernidade líquida não signifique estar de braços abertos para todo tipo
de situação, ela continua fundamentada nas escolhas e no aumento da quantidade
de opções que temos em comparação com a modernidade sólida; o princípio é fazer
escolhas de acordo com a nossa identidade, ou como nos vemos e nos posicionamos
no campo. O mundo líquido permite mudanças recorrentes.
A aprendizagem numa era líquida é
guiada por aprendizados descartáveis. Daí a recusa por autores “ultrapassados”.
Os escritos de Marx sobre economia são descartados pelos mais leigos por ser “velho
demais”, por não atender as necessidades atuais: a economia do mundo atual é
outra comparada com a de 150 anos atrás. E quando questionados de porque pensam
o que pensam dirão que ouviram comentários de outras pessoas, leram algo sobre
Marx em algum lugar, viram algo num canal de TV. Ler os escrito de Marx diminui
as intermediações e ruídos nas relações de conhecimento. Os ruídos se dissipam quanto mais próximos da tradução original
estamos ou de edições lançadas com o autor vivo, já que se espera que eles
revisem seus próprios trabalhos.
Ler Marx hoje em dia acontece em
dois tempos: ler, obrigatoriamente e não unicamente, O Capital, e ler estudiosos do Marx comentando e/ou explicando O Capital e autores que utilizaram Marx
nas sua análises econômicas e sociológicas, em teorias da comunicação, da
história e da educação, nos escritos e ensaios filosóficos. É tão amplo os
estudos e pesquisas destinadas a Marx e marxistas que “ultrapassado” ou “velho
demais” acabam sempre como usos preconceituosos do pensamento marxista. E
deveria dizer que Freud leva a mesma fama de “ultrapassado” de Marx, isto
quando não é apenas taxado de idiota e utilizam seu próprio complexo de édipo
num teor cômico-agressivo contra o próprio Freud. E se as pessoas
compreendessem um ruído como tal e não como uma bela canção, abandonariam o rótulo
pessimista que destinam a Nietzsche,
mas para o bem (ou mal) (ou para além) quase nunca está ao lado de Freud ou Marx,
exceto quando se compreende que todos se tratam de filósofos da suspeita.
Os ruídos não existem em
contraposição a uma verdade, eles existem dependendo dos agentes para os quais
se fala e suas posições no campo. Naturalmente, é uma questão de capital
acadêmico que diferencia os leitores e conhecedores, bem como a metodologia por
traz dos estudos sobre estes autores, da informação rápida, da fama, da difusão
e impacto global que um autor possui num nível superficial. Num campo onde é
reconhecido o uso da informação rápida e carecida de fontes, não será incomum o
uso descontrolado da opinião, imagino que por não serem rigorosos não são
pesquisadores e não estão interessados em compreender profundamente aquilo que
leem, mas se informarem de modo que consigam se posicionar numa conversa, para
ter sua própria opinião, para ajudar a refletir, para ter suas próprias ideias.
Um encontro entre um estudante de
graduação que leva a sério suas leituras e alguém que possui uma informação de
fontes arriscadas só pode acabar em figuras
de autoridade na conversa. Francamente ninguém precisa dedicar horas para
compreender algo porque outra pessoa diz “está
faltando estudar mais”, entretanto, há um custo em não dedicar algum tempo
em pesquisas com fontes confiáveis: não poder reivindicar autoridade sobre o
assunto. Como as pessoas conversam sobre temas diversos (e muitas vezes existe
um script para a conversa acontecer),
então alguma hora você acaba aprendendo alguns termos, inventa outros e assim
sucessivamente. O maior problema surge quando pensar por si mesmo torna-se ancorar
os saberes.
O pensamento até então socrático
e existencialista mostra-se incompleto e inconsistente. Não é socrático porque
não admite a ignorância (Só sei que nada
sei), e só parimos ideias porque nunca temos certeza, aliás, estamos certos
de nossa incerteza, talvez nem isso, a incerteza da incerteza possa ser um
caminho mais tortuoso e mais ideal. A incerteza da incerteza não tornaria a
incerteza certa, apenas uma pedra no caminho que deveríamos aceitar que esta
sempre lá e preferimos pensar que não. Aproveitando a deixa da filosofia existencialista:
ao fazer escolhas nos responsabilizamos por nossas liberdades, e ser livres
implica em dividir liberdades e agir moralmente sobre nossos aprendizados,
conhecimentos, saberes e informações, sempre se atentando para a reciprocidade
e a solidariedade que envolve uma relação livre. Mesmo a liberdade não acontece
por capricho ou vontade de quem desfruta da liberdade, até ela é uma relação
com alguém, provavelmente, com outro ser livre.
Às vezes parece que a incerteza
desestabiliza a liberdade por duvidar constantemente sobre ser livre. Pelo
contrário, a incerteza é a vigilância constante de uma liberdade que se renova
e não se permite definir como liberdade. Uma liberdade estabelecida
milimetricamente acaba com limites, questionando seu próprio princípio. Mas a
revisão constante de seus limites entende que não pode haver imposição, mas
discussão e diálogo, por isso ser livre. A liberdade que se repensa é liberdade
reformadora e é reforma livre da certeza sobre si mesma, pois a identidade de
ser livre está menos numa definição exata da liberdade a uma imprecisão da
expressão da liberdade reformada e reformadora.
Pensar por si mesmo é um enganoso artifício da certeza, uma
perigosa armadilha que delimita as linhas e os azulejos do chão de uma prisão
que viverei. Perceberei o mundo além das grades, mas hei de compreender que
minha maior liberdade é tirar minhas próprias conclusões dela e não apelar para
outros tipos de relação. Devo acreditar inteiramente em mim mesmo, o mundo
externo é uma ameaça aos meus sentidos, mas é por eles que preciso apreender o
mundo.
Se os sentidos são uma ameaça é
somente porque são incertos. Eles não possuem a finalidade de achar as certezas
ou as verdades, eles nos auxiliam a aprender, a nos sentirmos seguros num meio,
a continuar construindo nosso incansável e incerto aprender. Não temos problema
algum com utilizarmos as incertezas do nosso aprendizado, e só serão incertezas
se existir uma certeza, como a certeza é incerta a própria incerteza carece de
sentido para existir se tratada como uma dicotomia. Não deveríamos temer a
incerteza, esta é uma virtude de questionar-se e aprimorar-se, devemos duvidar
da certeza que nos traz autoridade e que delimita como aprender e como se
relacionar, perdendo a liberdade para ser.
A modernidade líquida não é um
empecilho por não fixar uma autoridade, faço um elogio a ela por levantar a
multiplicidade das diferenças e assegurar a diversidade de identidades. O
deslocamento do espaço e tempo na modernidade são um empecilho por trazer não
precisar criar conexões entre eles. Os saberes e conhecimentos acabam por serem
tolerados e as mudanças são tão rápidas que a própria educação deve repensar
suas relações com o conhecimento e à produção de conhecimento.
O pensar sozinho possui destaque neste cenário por desconsiderar as
relações, não estabelecer conexões, demanda o aprender a surfar na liquidez da vida cotidiana que se atemoriza
com as autoridades críticas dos estilos de vida; desestabilizam a segurança e
confiança que o sujeito possuía no seu conhecimento, requerindo novos conhecimentos
e um novo estilo de vida, o que implica em recalcular os riscos do novo estilo
de vida. Na outra face da moeda, há a especificação do capital cultural da
academia somente à academia, sem sobreposição à vida cotidiana, que requer
referências mais brandas e de conhecimento geral. A mudança do campo provoca
uma mudança do habitus destinado ao
campo, a vida cotidiana pede um habitus
mais brando e com maior apelo da vida pessoal para a tomada de decisões do que
a academia, que requer uma rigorosa disciplina sobre o uso dos saberes.
Saber pensar sozinho é artimanha de um mundo líquido que não se
interessa pelas estruturas estruturadas, mas que busca na identidade pessoal e
no pensamento original uma estrutura estruturante, que acaba por funcionar como
uma forma de distinção entre os menos prestigiados. “Se alguém já disse isso você não precisa repetir, você pode fazer
diferente”. Mesmo que seja a leitura dos clássicos e o mundo das citações e
do conhecimento sobre uma vasta bibliografia de acadêmicos que proporcione a
ascensão numa instituição responsável pela promoção e difusão do conhecimento
tal como é a universidade, será o pensar
sozinho a forma de subversão da autoridade acadêmica, mesmo que só funcione
como forma de distinção entre aqueles que desqualificam as citações.
Imagino que uma possível
conclusão dada por esses meus amigos possa ser: não é nada disso, só é chato mesmo! Neste caso o melhor a fazer é
ocultar os nomes que dão sentido as ideias, que muitas vezes é um ato de
contextualizar e historicizar o saber, de dizer um conceito ou um termo que não
está no dicionário e dá um ar mais coerente à discussão. Se referenciamos
nossos contemporâneos e mesmo falas mainstreams
de pessoas mundialmente e historicamente conhecidas, qual o mal que mais
uma citação traz?
Há claramente um capital
simbólico implícito nas relações que permite saber quando e com quem podemos
fazer uso de um conhecimento que não é
nosso e quando devemos fingir que é
nosso conhecimento. Mais uma vez aparecem as dicotomias: ou somos papagaios
ou somos virtuosos.
Quando lemos da internet nem
precisamos nos preocupar com a fonte, a não ser que o autor seja bem conhecido
ou esteja em voga (youtubers em geral, um blog conhecido). Ninguém presta
atenção aos escritores das notícias de jornal, o nome do jornal arrecada os créditos;
se quero fazer um bolo busco uma receita, não seu autor; vídeos-tutoriais no
youtube e sites afins podem constar com a identificação pessoal e real do
indivíduo, porém, nicknames são o habitual, e costumamos atentar a canais
específicos (“viu aquele vídeo do Porta
dos Fundos? O que você achou da crítica deles?”, “Pirula tava falando até de mapa astral dessa vez!”, “Não sei se eu
gostei do que a Jout Jout disse hoje”, “Não
gostei muito do Nerdologia de hoje”).
Mesmo a música não é um mero
acontecimento, seus autores podem justificar a arte pela arte, mas a música como
expressão de um estilo próprio é também expressão de conhecimentos técnicos
sobre o instrumentos, sobre composição, sobre o equipamento de gravação, sobre
as experiências vividas, sobre um filme, sobre um evento histórico, sobre um
acontecimento atual, sobre um livro, sobre uma rede de relações. Da mesma forma
a literatura, seguindo o mesmo esquema da música: há um estilo de escrita, um
gênero, outros livros lidos, construção de personagens, e assim por diante.
A música e a literatura talvez
sejam os locais onde encontramos a omissão das referências como um fator
positivo. Nestes dois exemplos buscamos ou acontece de encontrarmos uma mensagem
subliminar ou uma referência direta a outro autor, outros livros, outras músicas,
outros acontecimentos. Na música é mais perceptível que nem sempre a entendemos
completamente, mesmo as letras mais simples do mundo pop são diretas ou
indiretas a romances, amizades ou situações que dizem respeito ao artista, empoderamento
das minorias, etc.
Desta forma só posso concluir que
o uso de referências possui limites que respeitam o campo, a posição social e o
capital cultural envolvido na relação. A modernidade líquida contribui para que
as citações, referências ou fontes sejam flexibilizadas, bem como a menção às
relações de conhecimento, podendo parecer que aprendemos sozinhos, quando na
verdade é um recurso do período atual para privilegiar as identidades pessoais
e a pluralidade de opiniões, formadas com a separação entre espaços e tempos
que a globalização proporciona, distinguindo-a as modernidades líquida (vida
cotidiana) e sólida (academia). A aprendizagem é um aprender em conjunto,
interconectado, multidimensional, afetivo, biopsicossocial, incerto e livre,
cujas referências são numerosas e complexas, de complicada enunciação.
Referenciar os aprendizados são
possíveis com uma condição: excluir as referências que tornariam impossível a
citação (descrições precisas do local em que se aprendeu uma habilidade como temperatura,
dimensões físicas, umidade, sons, o que pensava enquanto aprendia, o que sentia
enquanto aprendia) e continuar a discutir um tema . Selecionamos o que nosso
interlocutor deve saber sobre o que falamos por não poder proporcionar um
revisão tão ampla das bases que sustentam esse aprendizado, e às vezes o
simples fato do que é falado não vir de um terceiro, mas de quem pronuncia o
discurso, é mais importante. Aí estão as declarações de amor, agradecimentos e
parabenizações. De uma forma parecida, a vida cotidiana parece pedir mais
relações que prezam o que nós achamos,
mesmo que seja consequência da relação complexa da aprendizagem, já implícito a
ideia de que não aprendemos sozinho.
Se estou a conversar sobre
educação com amigos, com (in)certeza podem pensar que eu já li algo a respeito,
mas com igual (in)certeza penso que primeiramente lhes ocorre que eu faço
pedagogia, e esta informação é suficiente. E se mostra mais raro uma vida
cotidiana imersa em referências explícitas e praticamente uma extensão da
academia.
O capital simbólico parece
justificar bem as preferências pessoais.
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Nem todo texto precisa de legenda. Ou precisa? |
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