Páginas

segunda-feira, 27 de março de 2017

O mundo adulto e sua perseverança sobre a infância


Me proponho a expor minhas impressões sobre o texto de Melanie Klein, Nosso mundo adulto e suas raízes na infância (1959), e considero relevante relatar um caso vivido por mim que me ajuda a compreender a importância do trabalho dela e de outros psicanalistas.
            Um dia, conversava com um amigo, que de ignorante (no seu sentido geral) ou desinformado não possui nada, enquanto caminhávamos de volta para casa. Neste retorno ao lar, comentei sobre a aula de estágio que permitiu meu encontro com a Melanie Klein e de algo que viria a incomodar esse amigo meu: os sentimentos de amor-ódio sentidos pela criança em relação ao mundo.
            Talvez o maior incômodo foram as palavras com as quais descrevi o universo infantil, algumas com base na autora, por exemplo: voraz, destruidora, devoradora. O encontro de meu amigo com a nova perspectiva é a inflexão “Essa mulher deve ter tido uma péssima infância”, quase como se utilizasse os conceitos de introjeção/projeção da própria autora para tornar inconsistente sua teoria. Conceitos que ele desconhecia.
            O incômodo dele suscita meu incômodo para com sua atitude precipitada. Aparentemente a delicadeza, fragilidade e inocência da criança inviabilizam a força de vontade demonstrada pelo conceito de ódio, uma atitude de sobrevivência em relação ao mundo hostil, demonstrado por Melanie Klein.
            Como a própria autora sugere, existem bases sociais e inatas para compreendermos a psique, ou seja, existem construções dadas pela convivência e pela experiência que podem ser demonstrados pela construção da personalidade (e seria abominável pensar a personalidade como predeterminada, já que configura identidade) e outras com seu teor biológico, previamente definidos, cuja constatação pode ser observada pelo comportamento dos bebês, como o fez Melanie Klein. Em outras palavras, por um lado somos constituídos de aprendizados e ensinamentos (social/cultural), de outro, a biologia nos preparou para sobreviver a um dado ambiente (provavelmente o mesmo vivido por nossos pais).
            Partindo do conceito de ódio, leitores inadvertidos estranharão essa realidade psíquica da criança. Onde ela aprendeu isso? Por que odiaria gratuitamente as coisas? Aprendeu em lugar nenhum, o ódio é um a priori da pulsão de vida. Ele só não é gratuito por cumprir o propósito de reunir as forças da criança para sobreviver ao mundo que tentam destruí-la, aniquilá-la, desmembrá-la. Por isso ela precisa ser voraz contra o mundo (coisas e/ou pessoas)!
            Estas são considerações de Melanie Klein sobre a possibilidade de uma realidade psíquica da criança. Se a criança sente que o mundo pode matá-la, não há reação mais plausível que a luta pela defesa de sua integridade física. O corpo da criança é ameaçado pelo mundo, nada parece seguro. Se estas coisas são de fato ameaçadoras não importa, pois o real não é um fato, está mais para uma experiência, uma sensação de que algo existe.
            A psicanálise é um enorme movimento de representações, uma vez que o psicanalista pretende chegar à causa de uma neurose, psicose ou outra anormalidade psíquica pedindo ao seu paciente para refletir sobre esse material psíquico (o objetivo do analista), produzindo um novo pensamento, diferente do material psíquico em si. Este novo pensamento deve ser verbalizado, portanto, permitir ser transformado em signo; está à disposição da linguagem, a mais pura amostra da representação, sujeita à incessante formação da identidade e da diferença formada pelas palavras. Como se isto não bastasse, o psicanalista realizará o trabalho de interpretar a representação da representação; seu material é a tradução da tradução.
            Como se isto não fosse complicação suficiente, o analista está na condição de utilizar o sistema de representações aprendido para interpretar a representação da representação. Ou ainda, num momento de reflexão, o analista decompõe os signos que ouve em representações sustentadas pelos sentidos que ele atribui às palavras. Sua reflexão é exposta sob o domínio das palavras para o paciente, que obtém a representação (as palavras do analista) da representação (do pensamento do analista) da representação (das palavras do paciente) da representação (do pensamento do paciente sobre o material psíquico). Em resumo, a partir de uma dupla representação o analista interpreta a dupla representação do paciente.
            Como se não bastasse, o material psíquico, constituído por imagens, será mais uma representação, ao nível do não é; pertence ao campo do desconhecido, fora do alcance do paciente, que só possui acesso a um material psíquico que é modificado pelos mecanismos de defesa do ego. Paciente e analista devem, através de sucessivas representações, ter a tarefa impossível de alcançar o material psíquico que se traveste para o paciente. Retornando à representação fundamental: quando o paciente reflete sobre si mesmo (1ª representação apresentada), ele, na verdade, reflete sobre uma representação criada por sua psique: o consciente está a mercê do inconsciente.
Este percurso sinuoso e confuso derivado do Foucault de As Palavras e as Coisas, ao problematizar o uso da linguagem para descrever a natureza em si, foi a forma que encontrei de expandir outra proposição de Melanie Klein: mundo interno/mundo externo. A criança introjeta o mundo externo, recriando-o dentro de si a partir de suas percepções; de forma contrária, ela também projeta suas próprias sensações sobre suas vivências e experiências no mundo externo.
            O corpo é o limite entre o mundo de dentro (interno) e o mundo de fora (externo). Este demorado intercurso permite um retorno à questão inicial: o olhar obtido sobre a infância. Qualquer discurso deve ser interpretado como aquilo que eu penso sobre o mundo fora de mim. Não interessa mais saber quantas representações existem, poderiam ser centenas ou uma, o ponto é que a objetividade do mundo, determinada sob o discurso do isto é, é ressignificada como uma visão subjetiva de mundo, o discurso desta vez é isto é para mim.
            Tudo o que se diz sobre a criança e a infância encontra o isto é para mim, ainda mais quando a criança não produz discurso sobre si mesma. O psicanalista, assim como o pedagogo, são produtores de discursos sem excluir a possibilidade de objetividade, ao contrário de um olhar mahayano sobre um mundo que não existe fora de nós, pura ilusão.
            O psicanalista, o pedagogo e os demais adultos tentam inferir como é o mundo interno da criança a partir do que introjetam dela enquanto mundo externo, produzindo novos sentidos ou reafirmando aqueles já consolidados em seu mundo interno, projetando-os novamente como material sujeito à interpretação ao mundo externo.
            O que Melanie Klein fez, assim como Freud, foi construir uma teoria psíquica consistente que não fosse apenas projeções internas, mas recursos interpretativos sobre um mundo que, de forma geral, não se mostra sempre acolhedor ou receptivo para denotar como o mundo interno da criança não é constituído apenas de coisas bonitas, felizes, prazerosas, reconfortantes ou aconchegantes como seria um mundo de pôneis, pirulitos, arco-íris, fadas, duendes e amor. A criança pode viver sensações desagradáveis, sentir-se ansiosa, ter raiva, querer que as coisas que a atormentam simplesmente desapareçam, que os infortúnios sejam destruídos para que ela possa ficar bem novamente, tudo isto sob a explicação de que a criança possui a capacidade inata de odiar.
            Isto está distante da proposição “O homem é o lobo do homem”, de Hobbes. Se fosse verdade, indicaria que não somos capazes de amar, outra capacidade inata da criança descrita por Melanie Klein, sentida nos momentos em que a criança sente-se segura nos braços da mãe, quando ela não se sente despedaçada pelo mundo de fora. Quando ela sente segurança, prazer, conforto, ela é capaz de amar.
            A agressividade, movida pelo ódio, é produto e resposta a um mundo percebido como hostil pela criança. Um psicanalista uma vez me disse que a psicologia da Melanie Klein é sangrenta, que a pulsão de morte é a primeira experiência psíquica da criança. O mundo é ameaçador, ele pode me destruir; preciso de um lugar seguro, senão posso morrer. E me parece verdadeiro, ainda que não conheça tão bem a psicanálise dela.
            O ódio, entretanto, não impede a criança de amar, de ser carinhosa, confiante ou grata. O que importa é não achar que a inveja ou a ansiedade são anormais na criança, ou mesmo sua força de vontade para tomar e destruir as coisas e as pessoas, ela participa do desenvolvimento psíquico da criança, como investigou Melanie Klein.
            A (in)capacidade das crianças ou mesmo dos adultos de serem generosos e gratos possui raízes na perseverança do universo adulto sobre a infância pelo discurso. A meu ver, os adultos, sem os instrumentos ou meios para questionar ou compreender o universo infantil, permitem-se regular o comportamento infantil segundo o que eles consideram ser o desenvolvimento adequado, as experiências apropriadas e corretas, os desvios de conduta ou atitudes antinaturais.
            A masturbação infantil, bem como grande parte das ações infantis, são significadas pelos adultos a partir de suas próprias experiências, como se os fins masturbatórios da criança e do adulto fossem os mesmos ou pudessem ser generalizados sob uma mesmo tipo de prazer, quando, em realidade, encontra diferentes nuances antes da fase genital e a partir dela, a ver com o direcionamento da libido. No caso da criança (fases oral e anal) sua energia pulsional é direcionada para si mesma, enquanto na fase genital a libido começa a ser conduzida para um objeto externo, reconhecido como objeto de desejo.



            Os adultos são influentes na formação das crianças, que por sua vez tiveram sua formação influenciada por outros adultos e assim sucessivamente até remontar as origens das sociedades. Existem posturas educativas, entretanto, que não são desejáveis para nossas crianças. A infância, apesar de ser constituídas por práticas culturais significadas pelas crianças e comunicadas entre elas, sofre uma invasão do mundo adulto-regulador/condenador/normatizador/moralista ao projetar no mundo infantil suas próprias vivências como se fossem verdadeiras ou corrigir as ações das crianças a partir das falhas.
            O mundo infantil requer empatia, possibilidades de ser introjetado pelos adultos. A educação e a psicanálise encontram uma tarefa difícil de produzir conhecimento a partir de relações que não podem ser classificadas como verdadeiras ou falsas/certas ou erradas. É inevitável que utilizemos palavras e outros recursos representativos para criar discursos sobre a infância, as práticas infantis e sua psique, embora seja importante estender esta rasura a qualquer sistema linguístico dotado de signos.
            O paraíso infantil é um discurso normal que distancia o entendimento dos adultos sobre a realidade psíquica das crianças, cuja ambiguidade amor/ódio encontra sua força produtiva nos encontros agradáveis e desagradáveis com o mundo. O que importa, segundo Melanie Klein não é que a criança sinta algo ou que esta sensação (como comportamentos depressivos, esquizo-paranoides, neuróticos) aconteçam,  satisfação e frustração acompanham todas as etapas do desenvolvimento humano (também as relações de amor e ódio), o preocupante é quando alguma sensação ou comportamento impede outros tipos de relações.
            O amor não significa plena construção nem o ódio pura destruição, eles são necessários em diferentes contextos e ambos alavancam a vivacidade dos indivíduos biopsicossociais que somos (similar à dicotomia amor/medo em nosso artigo Donnie Darko e a juventude aqui). A infância é geralmente reconhecida a partir de um sentimento de proteção e cuidado, por outro lado, isto não significa um a priori, os valores atrelados a ela são decorrentes do olhar e do discurso dos adultos, circulando entre si imagens de uma infância que carece de poder responder à altura utilizando as mesmas representações dos mais velhos.
            Assim, conversei um bom tempo com meu amigo mostrando a importância de descontruir um imaginário perigoso à infância que a associa a um ser mal, cruel e com instintos assassinos, pois tem nada a ver com isso. Nem tudo o que pensa o adulto sobre a criança é verdade e nem tudo o que a criança faz diante do adulto pode ser apreendido por sua razão. E livrar-se da psicanálise ou de teorias do desenvolvimento por sua finitude ou limitação investigativa é assumir que todo conhecimento criado e produzido sobre as crianças é capaz de alcançar a realidade psíquica delas tal como ela é, como se o mundo interno pudesse igualar-se ao mundo externo, impossível de ser alcançado sem ferir qualquer processo de diferenciação, identificação e subjetivação.     
            Se o lado de dentro e o lado de fora fossem equivalentes, acredito que não haveria alteridade, pois não existiria o outro, seria tudo idêntico, repetição incessante do Mesmo. Não haveria nada para conhecer ou para ser vivido, já que a vida, na compreensão humana, requer situações de estabilidade e instabilidade provocadas pelas relações de amor e ódio que a criança estabelece com o mundo. O dito paraíso infantil estabiliza a infância numa eternidade de paz. E quando a criança não sente paz, que fazem esses adultos que creem no paraíso infantil? Ficam assustados? Ficam surpresos? Têm seu sistema de crenças abalado? Fogem?
            A psicanálise contribui, nesse sentido, para o trabalho dos educadores ao representar outra face da realidade infantil. Expõe que a criança não sente o que sentimos, não pensa o que pensamos e não vive as mesmas experiências que nós, adultos. Seu mundo é só seu e de seus pares, com seu próprio sentido, suas próprias vivências, suas ações compartilhadas, suas brincadeiras e aprendizagens. Aos poucos se converte na monstruosa vida adulta regulada, sistematizada e indiferente, com ameaças tão iminentes quanto na infância.

Referências bibliográficas:
FOUCAULT, Michel. I – Capítulo III. Representar. In: As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1999. P. 63-107.

FREUD, Sigmund. II – A sexualidade infantil. In: Um caso de histeria, três ensaios sobre a teoria da sexualidade e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1905. P. 163-195.

KLEIN, Melanie. Nosso mundo adulto e suas raízes na infância (1959). In: Inveja e gratidão e outros trabalhos (1946-1963). Rio de Janeiro: Imago, 1991. P. 280-297. 

Para mais textos sobre produção de discurso ver: Considerações sobre trainspotting, drogas, liberdade e absurdos (aqui)

Para mais textos sobre mundo interno/mundo externo ver: Avaliação do Outro (aqui) e O Eu e a escrita (aqui)

Nenhum comentário:

Postar um comentário