O ensino possui a prova como fetiche de avaliação. A melhor
forma de saber o que aprendemos é respondendo algumas tantas questões que são
transformadas em nota. Um mundo sem prova seria um desastre: é preciso medir o conhecimento,
a qualidade do ensino, quanto o aluno aprende, se ele é dedicado, o trabalho
futuro depende da nota da prova. A prova não poderia deixar de existir sem
tocar no mito que ela cria na cabeça das pessoas.
A prova
tradicional consiste em 10 questões, o que facilita na hora de atribuir nota,
pois cada questão vale 1 ponto se considerasse apenas o acerto ou erro dela. O
número 10, por razões que somente os astros distantes poderiam nos explicar por
clarividência, parece uma quantidade razoável de questões, pois é possível
explorar o conteúdo previsto para a avaliação num tempo de 4h e que não
sobrecarregue a correção do professor com uma sala de 25 alunos. Como podemos
ver, em nenhum momento a qualidade do ensino e as condições de trabalho
adequadas se adequam ao esquema.
E a
pergunta que fica é: qual o problema nisso? Nenhum para quem acredita no mito
de que o conteúdo da prova a ser avaliado é essencial. O que faz as perguntas
daquela prova serem tão importantes a ponto de não haverem outras? Diante da
complexidade do mundo, como poderia ser aquelas perguntas as perguntas certas
para serem feitas? O que faz delas perguntas que precisam estar lá? Algumas
pessoas diriam todos sabemos que a prova não pode abordar tudo o que
gostaríamos, por isso escolhemos da melhor forma possível. A minha resposta é: quando
o profissional monta uma prova prefiro acreditar que ele a faz pensando que
aquilo possui serventia para o aluno num futuro próximo, sendo assim a formação
profissional do aluno está em jogo por algo que alguém considera o melhor
possível.
Minha perspectiva sobre a prova enquanto alguns olham
apenas sua frente.
Como constatamos, temos bons alunos que realizam com sucesso
seu trabalho, as habilidades e conhecimentos exigidos na prova (oral, escrita,
etc.) estão a ser utilizados. Da mesma forma, outros alunos realizam seu
trabalho de forma insuficiente e desastrosa. Realizar um bom ou mau trabalho
não teria a ver com sua prova, até porque, se formos sensatos, somos
contratados pelo diploma. Um estudante de física não precisa mostrar que tirou
esta ou aquela nota em sua disciplina mecânica geral para trabalhar na
Petrobras, por exemplo, é contratado por ter completado seu curso. A nota
serviria apenas para aprovar o aluno em uma disciplina, as aprovações nas
disciplinas para aprova-lo no curso e garantir seu diploma.
Se temos
pessoas diplomadas não sabendo realizar seu trabalho como espera-se de um
graduado, também temos pessoas não graduadas ou com uma graduação questionável
sabendo realizar a mesma função daquele bom graduado. Não ter graduação e saber
realizar o serviço um diplomado pode inflar seu ego por saber naturalmente ou
com algum esforço algo que outro precisou de mais ou menos 4 anos para
aprender; também pode ser, como na verdade é, sentir-se explorado, pois seu
salário, para desempenhar a mesma função, é menor apenas porque seu cargo é
menor na escala hierárquica do local de trabalho ou porque você tem pouca
escolaridade mesmo.
Em termos
de probabilidade, não chegamos à conclusão de que o diploma garantido pelas
situações de sucesso escolar mediante as avaliações (em que as provas são
ícones) são ótimos indicadores para concluir quem está apto ou não a
desempenhar uma função social no mundo do trabalho.
Para que
fazemos provas? Para sermos aprovados. Para que somos aprovados? Para poder
avançar na instituição de ensino e/ou no sistema escolar. Esta, por sua vez, de
que serve? Para qualificar nossos saberes. Mas para que qualificar? Para
saberem se somos bons ou maus trabalhadores. E eu não poderia mostrar
diretamente minhas habilidades e conhecimentos para o empregador ao invés de
fazer tudo isso? Não. Por quê? Porque é assim.
Quando algo
termina num raciocínio tautológico podemos entender que chegamos num mito. As
coisas são porque elas são. A prova existe porque é o único jeito.
Escola e
prova, no mito herdado de nossos antepassados, são indissociáveis. Escola nunca
significou qualificação, esta palavra é coisa do mundo do trabalho,
principalmente com o surgimento da indústria. A escola tem por função educar.
Atualmente o ensino preza a reflexão, a criticidade, a moralidade, o respeito
mútuo, a boa convivência, abertura à multiculturalidade, procura fazer seu
usuário entender a complexidade e a diversidade do mundo. Apenas este último possui
devida coerência para ser avaliado em prova (ou assim é entendido), pois seria
no mínimo estranho fazer uma prova para saber se alguém desenvolveu ou não a
moralidade, que pode ser vista nas relações, ou que a reflexão e a criticidade,
que deveriam pressupor a forma correta de aplicar sua criticidade ou a melhor
maneira de refletir, possam ser transformadas em questões.
Seria mentira dizer que a escola não
possui obrigatoriedade com a formação para o trabalho, pois consta no Art. 1º §2º
e Art. 2º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394),
respectivamente, “A educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e
à prática social” e “A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos
princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por
finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da
cidadania e sua qualificação para o trabalho”. E não percebemos outra coisa
senão a educação para o trabalho sendo privilegiada pelas provas, com todas as
demais dimensões do desenvolvimento humano sendo ignoradas por um bem maior e
primordial.
E ainda assim essa compulsão pelo
trabalho não justificaria esquecer-se da ética, a orientação sexual,
pluralidade cultural, meio ambiente e os temas locais: tópicos pertencentes aos
Temas Transversais dos Parâmetros Curriculares Nacionais. Alguém tomado pelo
arquétipo do velho sábio diria: os temas transversais fazem parte do currículo
que pressupõe conteúdo. Então porque a mulher continua sendo ridicularizada, a
homossexualidade rechaçada, a imagem do negro associada ao pobre, a
desconfiança latente no convívio com desconhecidos, a disputa tão crescente
entre grupos? A resposta é bem simples: porque o foco na prova privilegia
conteúdos importantes: os temas transversais pouco ajudam a conseguir trabalho.
E digamos que exista alguém que insista que os temas transversais são bem
valorizados em sala de aula, seu próximo argumento pode ser “o professor possui
uma péssima formação”.
O problema não está no instrumento
de avaliação, mas na eficiência do trabalho do professor. É uma estratégia que
descarta a infalibilidade do mito, ele é certo, direito, infalível. É no que as
pessoas acreditam, como descarta-lo por paganismos que falam por aí?
Vestibular: a chance angustiante de se graduar para
ter um bom emprego. Mas vale a pena, temos
chances iguais – disse o bom fiel.
Mas sem perder a linha, como
aquele professor adentrou uma sala de aula? Por provas sucessivas que o
qualificaram para sua função. Alguns se impressionariam com isto, eu apenas
comprovo o que já disse. A prova defendida para verificar as habilidades do profissional
falha nestas horas, e o mais preocupante, não falha como exceção, falha como
regra. É da natureza da prova, por constar uma nota, falhar miseravelmente em
transparecer o conhecimento que alguém domina. Se a prova é tão lacunada para
qualificar, por que insistem nela?
Diz-se que
é aprovado numa disciplina por alcançar média 5 nos exames, ao menos na maioria
dos cursos. Se um curso tivesse média 7 ao invés de média 5, isso faria do
curso média 7 melhor qualificado em relação ao último? A representação dos
números é clara: 7 é maior do que 5, não haveria porque pensar que aqueles
alunos, se aprovados, não estão bem preparados; foram bem sucedidas em suas
avaliações.
Se quanto maior melhor, que se
institua de uma vez a média 10! São todos cegos ou o que? A média 10
solucionaria todos os problemas. Todos nós concordamos que a média é uma forma
de colocar o aluno para estudar, uma vez que ele não estudaria se não fosse
impulsionado por uma motivação extrínseca. Por esse tipo de pensamento que não
possuímos média 1 nos cursos, porque a motivação é baixa demais para precisar
estudar muito. Quanto maior a média maior o tempo de estudo.
Ao invés de se limitar com a média 5 que, por culpa dos
profissionais mal formados ou dos alunos, põe em risco toda a comunidade com
pessoas que não estão minimamente qualificadas e dizem portar um diploma, que
seja feito o que deve ser feito: a média 10 - a absoluta, a incontestável, a
divisora, a indubitável.
Nem a média 10 seria solução.
Nunca seria.
Permitir a média 10 é semelhante
a dizer: deve-se tirar nota máxima em todas as provas. A performance esperada
do aluno é atingir todos os objetivos propostos no planejamento educacional, ao
menos em relação às questões. A média 10 torna a ideia de média desnecessária:
se para ser aprovado é preciso fazer tudo o que for exigido, o primeiro erro
desqualifica o avaliado imediatamente. Os erros não são permitidos, a perfeição
é a regra. Bastaria perceber um ato falho e não se preocupar mais com quem faz
a prova. Porém, a escola não poderia deixar de se preocupar com a educação do
estudante a ponto de excluí-lo. Qualquer forma do estudante recuperar a nota
perdida por um erro mínimo não poderia conceder-lhe nota máxima (ou a única
nota permitida) sem alguém, em algum momento, se perguntar como que se apaga um
erro. Para possibilitar a inclusão e garantir o direito à educação a média
poderia ser 9, que por razões semelhantes, seria reduzida para 8, senão para 7,
podendo ser 6 ou 5 e nunca menos que isto. A média consiste numa arbitrariedade
negociada. A média é como é por discussões puramente retóricas, poderia ser
qualquer uma maior ou igual a 5 e menor que 10 (e nenhum outro valor é possível
por uma ordem divina que jaz nos corações de seus fiéis).
Se o plano de ensino possui um
objetivo, por que não observar se o objetivo foi cumprido? Como a nota ajuda a
perceber o cumprimento desse objetivo? Se as questões da prova são questões que
reapareceram novamente pela vida dos estudantes faz sentido, mas as provas são
tão ideais quanto o mundo comunista. Novamente: uma prova sobre História da
América Latina com dez questões prevê que aquelas questões seriam tão fundamentais
que se repetiriam intensamente no trabalho desse historiador. Se numa prova
dessa disciplina o estudante de História obtém um 4, o que significa exatamente
este número? Significa nada mais nada menos que o estudante acertou 4 perguntas
ou que errou 6 perguntas. A nota constitui em si um feedback alertando para
esse estudante que faltam 6 pontos para atingir nota máxima. Ela não aponta o
que há de errado, apenas que faltam pontos. Quando anuncia o erro, continua
visando pontos, como se eles traduzissem a globalidade do tema História da
América Latina. Tirar um 10 numa prova dessas não significa que você sabe
História da América Latina, indica que você soube fazer uma prova sobre o tema
referido e que as questões arbitrárias colocadas pelo professor coincidiram com
o conteúdo estudado.
A grande verdade é que a prova
possui a finalidade clara de classificar os alunos. Somos um 5, um 7, um 10.
Quando somos 3 não somos apenas quem estudou pouco, somos quem estudou menos
que quem tirou 4, até o aluno nota 4 estudou mais que o aluno nota 3. Não
bastasse classificar os alunos em 11 tipos diferentes, sujeitamo-los a mais
classificações por incorporar as dizimas à nota.
8 pode ser bom. 8,5 é melhor.
8,551 é apenas escandaloso! Como alguém seria capaz de apontar milésimos? De
onde vem tanta precisão?
Classificar é bom para o mundo do
trabalho, significa qualificar o trabalho, separar saberes, dividir o mundo do
trabalho de forma que sempre haja alguém que não é um 10. A preocupação com a
nota mostra situações em que a prova instiga a competição natural pelas
condições ambientais promovidas pelo sistema educacional alimentarem a
concorrência. A escola é mais um filtro que marca os alunos e suas
possibilidades de experiência a uma instituição que pensa a educação.
A prova só possui seu sentido
preservado porque a intuição faz parecer que a existência das pessoas consiste
em não se esforçarem para estudar, por serem desinteressadas pelas discussões
em vigor, por serem preguiçosas, enganadoras, mentirosas, corruptas, de alma
destinada ao repouso pleno, sem precisar fazer esforço algum, que se contentam
com o mínimo, que precisam ser vigiadas e punidas para demonstrarem atividade.
Por essa impressão mística do espírito, a prova é o melhor instrumento de
avaliação. E mesmo que fosse verdade, o que é a nota senão a pior forma de
expressar a impressão do professor sobre a prova?
- Por que ei de queimar?
- Para que a marca do espírito possa ser vista na
carne.
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