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domingo, 3 de julho de 2016

Feminino e masculino: construções sociais ou arquétipos

Introdução

Atualmente está em voga certificar o feminino e o masculino como construções sociais. Fazem-no baseado nos estudos sobre gênero e sobre a condição da mulher nas sociedades e na história, donde as ciências sociais constituem sua cornucópia. Evidencia-se, graças a esses estudos, a existência do machismo, que privilegia os símbolos masculinos frente aos femininos e pressupõe formas de atuação para os portadores desses respectivos símbolos. Mais do que separar os símbolos em dois grupos, eles são divididos em símbolos para homens e símbolos para mulheres; os símbolos são vistos como naturais a determinado sexo, destinados a partir do nascimento: o pênis se propõe herdar tudo o que faz referência ao masculino, enquanto o a vagina é herdeira equivalente do universo feminino. Daí diz-se que esse ou aquele brinquedo é para meninos, que alguém cruza as pernas como uma mulher, que rosa não é cor de homem. E poderíamos muito bem concluir este texto nos dando conta deste processo de naturalização se não fosse por interferência de argumentos visando a biologia dos dois sexos:  corpos diferentes, formas de pensar diferentes, necessidades diferentes e uma série de diferenças que justificam as desigualdades sociais. Estes últimos argumentos se fundamentam numa visam arquetípica que procura dizer isto é da natureza do homem e isto é da natureza da mulher, ou ainda, existe uma divisão entre homem e mulher que é natural e que não pode ser igual. E a pergunta que fica é: feminino e masculino são construções sociais ou são condições inatas da espécie?

A construção social

            Por construção social devemos entender que as condições materiais, culturais, históricas, políticas, econômicas e simbólicas participam das relações sociais, das interações entre pessoas, do que se entende por sociedade e suas estratificações. A discussão seria rasa se reduzíssemos o aspecto social do sexo pela ação em si (o homem possui remuneração maior que a mulher pelo mesmo cargo, função e horas de trabalho) e não ao que provoca a ação, que é, por acaso, uma das finalidades da sociologia. Busca-se, portanto, encontrar as condições de existência que respondem por que a sociedade trata desigualmente os sexos?
            É necessário ter em mente que a sociedade não é apenas uma plataforma sob a qual somos plenamente livres para decidir como agiremos ou um ambiente inócuo de estímulos para o desenvolvimento de nossos corpos. As sociedades se organizam por um controle inerente a sua formação: existem normas, regras, limites, condutas. O desenvolvimento de um ser humano em sociedade prevê uma coerção de certos impulsos e desejos, canalizando essas energias para fins sociais, ou seja, para poder conviver com outras pessoas seguindo os pré-requisitos já comentados. Por este motivo é que não vemos pessoas se masturbando publicamente: é uma prática proibida pelo código social, que além de ser visto como comportamento imoral pelos seres sociais que aqui vivem, é inadmissível por um código de leis que chamando essa prática de atentado ao pudor tenta preservar a integridade de todos. Viver em sociedade é, em parte, atuar e manter a performance que esperam de você.
            A educação dos homens e mulheres imersos numa sociedade não deixa de estar sobre um controle social; a sociedade tolhe os impulsos e desejos de homens e mulheres baseados em seu sexo (no seu órgão genital). Negam ao menino brincar de boneca, a menina não pode subir em árvores, o menino não pode ter um vestido, a menina não deve brincar de lutinha, o menino não se maqueia, não tem como a menina não gostar de princesas da Disney.
Esses são alguns costumes sociais travestidos de naturais que são reproduzidos com frequência, e deles entende-se que posteriormente: o homem não brincando com bonecas brinca com figuras de ação (super-heróis, soldados, personagens com músculos desnecessariamente grandes), desenvolvendo sua virilidade e o combate para defender sua honra; suas roupas não poderiam ser um vestido para não lhe restringir os movimentos, as roupas folgadas lhe permitem melhor movimentação e sente confiança nos movimentos de seu corpo; a luta entre meninos é natural, em seu sentido social, para gerar a competição entre seus semelhantes, é uma das formas que se encontra de decidir o alpha do grupo, portanto, pretende ser pública, para que todos vejam, que depois passará de uma disputa física para uma disputa baseada no discurso, o que faz da política o tema preferido entre homens decididamente masculinos.
A maquiagem e a identificação com princesas de pouco servem para os homens numa sociedade machista (cujo termo justifico a seguir). A maquiagem leva a menina a se preocupar com sua aparência, é uma educação da estética disseminada socialmente; as princesas estão aí para serem resgatadas por príncipes de suas madrastas ou mesmo de suas famílias: o príncipe substituirá a figura do pai e a princesa se tornará mãe, devendo engravidar e ter herdeiros. A gravidez possui significações diferentes para o homem e para a mulher que vivem numa sociedade sexista: para a mulher será doar sua carne para gerar um filho, devendo alimentá-lo, cuidar dele e educá-lo minimamente; para o pai, o filho é o herdeiro de todas suas conquistas em batalhas passadas, ensinará o que significa tornar-se homem e como continuar disputando num mundo de lutas. A filha é a possibilidade de que algum homem a possua para ter filhos que carregarão seu legado.
O filho não continuará sua educação com a mãe por muito tempo, e por pressão social (conselhos, ritos sociais, identificação com os símbolos masculinos, ser alvo de chacotas por essa ou aquela ação) cederá ao universo masculino, se desvinculando dos símbolos femininos por completo, vendo neles uma repulsa, e se o controle social for eficiente, nojo. A filha seguirá sendo educada por sua mãe enquanto o pai serve de parâmetro sobre os símbolos masculinos e o que esperar de seu marido. Mais delicado ainda é confirmar que a figura amada do pai é praticamente divina para a menina, pois é nele que reside os símbolos de poder.
O homem quando está no mundo público, principalmente frente a outros homens, se porta confiante, com postura firme, seu olhar é mais atento, incita virilidade próximo a outros homens. Seria mentira dizer que todos os homens hoje em dia são assim, mas por uma seleção social, os mais fracos, efeminados, inseguros, menos combativos, tenderão a ser excluídos rapidamente dos grupos ou tratados por uma relação dominantes-dominado.
A mãe, aos olhos da menina, é frágil, histérica, está insatisfeita com a limpeza da casa, possui uma beleza que nunca é suficiente, entre tantas outras características suas.
 Sem contar que a mãe se preocupa demais com o corpo, o que pode mostrar, o que deve cobrir, mas isso a menina também descobrirá ao ser observada, ao primeiro comentário sobre seu corpo, com assédios frequentes. A menina nunca terá um corpo de que se orgulhar, o estranhará. Seu corpo será transformado em carne pelos olhos dos outros, por isso vive tão recolhida. Ela viverá uma vida difícil, pois deverá mostrar seu corpo-carne o suficiente para ser bela sem ser alvo de olhares clandestinos, daqueles que desejam pousar sua virilidade no corpo sensualizado da mulher como se ele pertencesse a quem o olha. O desconforto com seu corpo não está somente no ser observada, é nítido pelas roupas que usou na infância e pela maquiagem que este é seu destino. Ser bela é seu atributo maior; sua virtude é a beleza e sua temperança é feminilidade. A boneca, a vassoura, os brinquedos que imitam os móveis da casa corroboram para praticar os rituais que a esperam em sua vida adulta. Sua vida inteira está confinada à casa, à vida privada. A menina sabe que deverá que se casar, se não fosse para isso, de que serviria toda sua educação?
Os filhos tendem a imitar os pais por serem figuras de respeito, no fundo o respeito está fundado na mãe ser o troféu que o pai exibe aos amigos homens e o pai ser o Deus que a mãe exibe para as amigas mulheres. Ambos os sexos jogam as naturalizações sociais simplesmente porque o controle social contribuiu para a formação de uma visão natural das coisas. Se algo é natural, está dado e pronto. E não é como se a mulher não se sentisse valorizada nessa sociedade, as condições de existência são suficientes para que elas sintam-se tão importantes quanto os homens. Parte de suas angústias provocadas pelo tecido social nem poderiam ser expressas pensando em condições naturais de existência, como dever dar prazer ao marido ou ao cônjuge, satisfazer todas as vontades do companheiro, ser alvo de sua brutalidade, sentir-se inferior, ter sua autoestima ferida por um olhar. Por serem naturalizações entende-se que a mulher vem ao mundo predestinada a sofrer dessa forma, o que a mantém é seu papel de Mãe.
Essa educação diferenciada entre sexos é pesquisada cuidadosamente por Simone de Beauvoir em seu livro O Segundo Sexo: a experiência vivida, fazendo de minhas palavras ecos de sua obra eminente. Em outro sentido não tão distinto, Pierre Bourdieu nos apresenta essa situação desigual de educação dentro do seu conceito de campo, insinuando o combate entre os agentes por distinção.
Os dois sexos devem jogar incansavelmente as partidas com as peças que lhes foram dadas. Nesse jogo, os símbolos-peças não podem ser partilhados com o sexo ao qual eles não dizem respeito, um homem feminino ou uma mulher masculina são punidos por não jogarem direito.
Em nenhum momento expressei como participariam os homossexuais deste cenário. Eles também estariam no meio de todos esses símbolos, imerso num mundo em que deve ser masculino ou feminino. Os homossexuais tenderiam a escolher entre homens masculinos, mulheres femininas, homens femininos ou mulheres masculinas. A homossexualidade não significaria a vitória sobre esse jogo simbólico.
O sexo não define gênero, apenas constata seu órgão sexual. O gênero é definido socialmente, e aqui caímos no masculino e no feminino, também conhecido como papel social. A sexualidade apontaria o objeto de desejo. O erro de atribuir símbolos às pessoas é supor que o sexo define o gênero – ligar homens ao masculino e mulheres ao feminino - ou que os gays e lésbicas são todos femininos segundo a seguinte lógica: a) homens que não são viris são afeminados; b) homens que se relacionam afetivamente com outros homens não são viris; c) todas as mulheres são femininas. Mesmo os homossexuais, por reconhecerem no masculino o símbolo dominante, optam por ele quando se identificam com esse símbolo de poder.
As regras do jogo para todos os efeitos é bem simples: o masculino será dominante e o feminino será dominado, a educação, em seu sentido mais amplo, cuidará de distribuir os jogadores em cenários e situações sociais que (sem desconsiderar a biologia dos corpos) cuidará de aproximá-los ou não do símbolo dominante, e a mulher sempre está em desvantagem neste jogo. Por definição, o feminino seria tudo o que não é masculino, e o masculino representa a dominação dado as circunstâncias em que nossa sociedade está embasada.

A herança arquetípica

            Os arquétipos consistem em imagens e símbolos universais que são a base da vida da espécie humana. Os arquétipos, enquanto modelos primordiais, equivaleriam inclusive ao masculino e ao feminino, conhecido na psicologia analítica por animus – o arquétipo masculino no inconsciente da mulher – e anima – o arquétipo feminino no inconsciente do homem. Pelos arquétipos, compreendemos que nascemos com ambos (anima e animus), entretanto expressamos mais um arquétipo do que outro.
            Como consta no livro O Eu e o Inconsciente, de C. G. Jung, animus e anima seriam arquétipos opostos ao arquétipo da persona, que é como nos apresentamos para os outros. Uma pessoa que demonstrasse ser mais masculina em seus meios sociais por inferência dos já conhecidos controles sociais, teria uma anima reprimida. Em contraposição, o animus reprimido seria resultado de uma persona que deve apresentar-se feminina.
            Jung propõe que no inconsciente coletivo residem os sedimentos simbólicos das vidas passadas dos nossos ancestrais, sendo a humanidade herdeira de símbolos comuns e universais, o que gera discordância entre aqueles que justificam a existência do masculino e do feminino como socialmente construídas, pois para Jung, aparentemente, não seriam. Minha defesa aos arquétipos vem mostrar que a existência deles não prejudica em nada o que já foi exposto, mas vamos por partes.
            Primeiramente, Jung sempre buscou refutar o cunho místico de seus trabalhos, considerava-os ciência e várias vezes em seus livros precisava explicar que se tratava de ciência e não de misticismo, alquimia ou religião (pode parecer difícil de acreditar vindo de alguém que acreditava no poder curativo das mandalas e buscou comprovar a sincronicidade preparando o mapa astral de seus convidados). Seria minimamente justo que considerássemos o caráter científico de seus trabalhos e de seus arquétipos apenas para nos livrarmos de preconceito.
            Segundo, o inconsciente coletivo de Jung nunca está num plano místico. O inconsciente coletivo é herdado da mesma forma que se herdam genes, e quando ele aborda o tema, é comum referir-se à espécie: a psique do organismo de todos os seres humanos porta uma série de imagens que podem vir a manifestar-se de acordo com as experiências vividas pelo inconsciente pessoal.
            Terceiro, os estudos de Jung acontecem com base na psicanálise, filosofia, religião, alquimia e sempre sustentado pela probabilidade. Existem tantos traços comuns nas culturas e seus símbolos, como poderia isso ser acaso? (como seu estudo sobre sincronicidade).
            Voltando ao segundo ponto, que é o que nos interessa aqui. É consenso que todos possuímos uma psique que faz parte do organismo humano e não seria separada dele. Pensando no inconsciente sendo formado a partir de uma programação básica a todos os indivíduos, que é o que acontece quando pensamos na genética, estamos aptos a pensar o inconsciente em termos de evolução, mais precisamente de adaptação e ativação dos arquétipos do mesmo jeito que acontece a ativação de genes. Os arquétipos representam modelos básicos do comportamento instintivo, como consta Jung no livro Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo, ou seja, são anteriores à consciência e auxiliam seu lento desenvolvimento. Os comportamentos advindos dos arquétipos preveem tipos emocionais.
            As emoções também estão sujeitas ao aspecto adaptativo e evolutivo do ambiente, inclusive, Paul Ekman afirma em A Linguagem das Emoções que as emoções estão sujeitas a seleção natural e que existem expressões faciais universais e que poderiam ser reconhecidas em qualquer cultura do mundo (felicidade, tristeza, raiva, aversão). Uma de suas várias pesquisas envolveu o estudo das expressões de pessoas cegas para verificar se elas apresentavam o movimento muscular da face semelhante ao de pessoas dotadas de visão. Se as expressões fossem aprendidas, cada cultura definiria um conjunto de expressões faciais diferentes para as emoções. O que ele relata é que pessoas cegas, que não poderiam ter aprendido as expressões, movem os músculos que tornam reconhecível aquela emoção, como em expressões que indicam felicidade as pessoas curvarem a boca para cima e contraírem os músculos orbiculares do olho, nas expressões de nojo o músculo levantador do lábio ser acionado ou as sobrancelhas se abaixarem, ou ainda, as pálpebras ficarem semicerradas e os músculos da boca ficarem tensionados quando estamos com raiva. “Estas constatações me conduziram à conclusão de que nossa herança evolucionista contribui definitivamente para modelar nossas respostas emocionais” (EKMAN, 2011, p.43).
Os instintos do esquecido mundo selvagem viria a ter sua energia deslocada para o mundo social e da civilização, onde a sobrevivência acontece num ambiente diferente e a atenção para caçar uma presa e o medo para fugir do predador continuam a existir, embora sob novos contornos.
Richard J. Davidson, em O Estilo Emocional do Cérebro, escreve: “As propensões genéticas podem fazer com que uma criança seja direcionada a determinado estilo emocional, mas certas experiências e ambientes podem desviá-la de um caminho para outro.” (2013, p.98). O estilo emocional do cérebro é constituído por seis dimensões, segundo Davidson: resiliência, atitude, intuição social, autopercepção, sensibilidade ao contexto e atenção; essas dimensões estão intimamente ligadas com a ativação dos genes humanos que são herdados dos pais. O ambiente possui participação na ativação e desativação dos genes e consequentemente na fisiologia do corpo, o que afeta diretamente as emoções. Os comportamentos herdados não seriam aleatórios, mas decorrente do estilo emocional dos pais e poderiam ser modificados pelo ambiente, o que sugere a adaptação do cérebro as possíveis condições ambientais, onde o social está incluso.
Sob estas condições, parece tão improvável herdar imagens? No que consistiria a informação genética que desperta o estado de alerta ao vermos uma cobra ou uma aranha? Como seria possível identificar tais animais se não herdássemos imagens deles associadas ao hipotálamo e a consequente produção de adrenalina e cortisol?
O inconsciente coletivo, entretanto, não possui a capacidade de atribuir sentido às vivências, apenas geraria uma forma simbólica inicial que prepararia o indivíduo para o mundo esperado, onde reside aquele símbolo. Conforme este indivíduo vivenciasse situações e as culturas ele preencheria a forma do símbolo com um conteúdo que formaria seu inconsciente pessoal. Pode-se dizer, em analogia, que o arquétipo, sempre atuando no inconsciente, é desativado ou ativado pelo ambiente. Segundo Jung, “O processo simbólico é uma vivência na imagem e da imagem” (p.48, 2014).
A cultura não mudaria os símbolos no inconsciente, ressignificaria um conteúdo latente no inconsciente coletivo, e é por isso que a teoria dos arquétipos não interfere nas teorias da construção social dos sujeitos. A cultura participa da formação do sujeito (re)significando constante os símbolos herdados pelo inconsciente.
Lendo atentamente como Jung se refere ao animus e a anima em O Eu e o Inconsciente, parece menos uma descrição arquetípica e imutável a uma excelente analise psicológica da divisão sexual de seu tempo social. A começar por animus e anima não serem opostos, mas um mesmo arquétipo que é representado de forma dual numa sociedade em que a persona é impelida a mostrar-se heterossexual e que reconhece que existem símbolos para homens e para mulheres, independente de sua identidade de gênero (não se reconhece gênero nesse momento, as primeiras pesquisas com utilização do termo gênero surgem anos depois da primeira publicação de O Segundo Sexo, em 1949).
Jung provavelmente prepara os psicólogos de seu tempo para os complexos que irão encontrar no homem e na mulher pela sociedade exigir do primeiro uma persona autenticamente masculina, logo, impulsionada pelo animus, e na mulher uma representação feminina da persona, que possuiria laços de identidade com a anima. Apenas longe de observadores que induzem um comportamento neste homem e nesta mulher, é que estes indivíduos poderiam retirar a persona sufocante para sentirem-se mais a vontade, nos recônditos do lar, a entrarem em contato com a oposição de sua persona: a anima para os homens e o animus para as mulheres.
O casamento, que a essa altura do século XX possui poucos casamentos arranjados, é nada mais do que a identificação de seu animus/anima no(a) parceiro(a). Homens, por expressarem o animus a maior parte do tempo, procurariam numa esposa uma anima parecida com a sua, e a mulher identificaria seu animus reprimido num marido. A psique, nestes moldes sociais, reprime determinados símbolos em virtude de uma correspondência natural que supostamente possuem com o sexo em questão. O inconsciente pessoal se adequa ao social, mas o inconsciente sempre busca a reconciliação da anima e do animus por se tratarem de um mesmo arquétipo cindido por controle social, por isso gera tantos complexos nas culturas em que a divisão sexual acaba em desigualdade.
Jung comenta que os homens não apenas identificam sua parte feminina na mulher, como também projetam os complexos de sua anima na anima da perceira. E as mulheres projetariam as inibições de seu animus no animus do parceiro. Essas projeções acontecem principalmente porque homens e mulheres são ensinados socialmente a recusar alguns símbolos com os quais se identificam e a viverem apresentando apenas o que diz respeito à anima ou ao animus
A anima está para o capricho assim como o animus está para a opinião:

“Se eu tivesse que caracterizar, resumindo em poucas palavras, a diferença entre homem e mulher no tocante ao problema que nos ocupa, isto é, como se confrontam anima e animus, eu diria: assim como os caprichos do homem brotam de um fundo obscuro, do mesmo modo as opiniões  da mulher provêm de pressupostos apriorísticos inconscientes” (JUNG, p.97, 2014a).

Os arquétipos que representam o masculino e feminino, por se tratarem de um mesmo arquétipo, são representações precisas do yin yang: são os princípios que denotam a dualidade do mundo, forças opostas e complementares, princípios de todas as coisas. O inconsciente requer a anima e o animus, assim como yin requer yang, pois o movimento não acontece a partir de uma separação entre eles, como se um precisasse se libertar do outro, suas existências são duradouras porque eles possuem seu princípio oposto. Se o yin representa a Lua, a água, a noite e a passividade, o yang é o Sol, o fogo, o dia e a atividade. Yin está para anima assim como yang está para animus.
Se vemos no feminino uma inferioridade, isso mostra apenas uma incapacidade de lidar com os próprios arquétipos e evidencia uma enorme dificuldade da humanidade de reconciliar os símbolos. Se há inferioridade, há superioridade, e é esta dualidade que fere a dinâmica do inconsciente, pois a inferioridade não é significada como uma noção espacial, é precisamente a diferença de forças que existem entre os opostos e que incentivam a tensão constante. O mundo exacerba demais as qualidades do animus: a atividade, o estar por cima, o ser duro, a extroversão, gerando, portanto, tensão. É reconhecendo a anima como um igual e permitindo movimento à ela que devemos pensar em viver mais baixos, mais moles, mais introvertidamente, porque somente assim podemos encontrar o relaxamento. 




Hermafrodita com águia. Ilustração do livro Aurora Consurgens. Séc. XV.

Conclusão

Em momento nenhum é levado em conta a identidade de gênero de homens e mulheres, sendo coibidos e amedrontados por expressarem sua identidade e suas afinidades. A construção social do masculino e do feminino prejudicam os ambientes sociais por edificarem as experiências na violência simbólica.
O problema nunca foi existir masculino e feminino (que são dois lados da mesma moeda), pois seus símbolos participam de forma significativa para a formação do Self. A tensão reside na tentativa do masculino imobilizar, invalidar, desqualificar, negar, subsumir, suprimir e dominar o feminino. Pensando que vivemos numa época que se apoia no princípio de visão e divisão (termo bourdiesiano), o homem ao distanciar-se do feminino distancia-se de uma parte de si, nesse mesmo processo, convence a mulher que a melhor coisa a fazer seria distanciar-se dos símbolos masculinos, pois o homem não aceita um igual, precisa da diferença para subjugá-la.
Quando a visão vertical entre sexos e gêneros for substituída pela relaxante horizontalidade que abrange a diversidade, a diferença e as possibilidades como semelhantes de si, teremos cumprido um crepúsculo do homem e estaremos mais próximos dos raios lunares de uma humanidade; quando o mundo de lutas e disputas passe a ser um mundo de boa convivência e respeito, podemos dizer que a identidade poderá ser experimentada com sinceridade e solidariedade entre os sujeitos, que sendo simultaneamente masculinos e femininos, não precisarão identificar-se como isto ou aquilo. Apenas serão e todos compreenderão sua identidade manifesta na liberdade de aproximar-se de qualquer símbolo que expresse seu Eu.

Referências

BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo II: a experiência vivida. São Paulo:Difusão Europeia do Livro, 1967.

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

DAVIDSON, Richard J. O Estilo Emocional do Cérebro. Rio de Janeiro: Sextante, 2013.

EKMAN, Paul. A Linguagem das Emoções. São Paulo: Lua de Papel. 2011.

JUNG, C. G. O Eu e o Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2014a.


JUNG, C. G. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Vozes, 2014b.

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