Introdução
Atualmente está em voga
certificar o feminino e o masculino como construções sociais. Fazem-no baseado
nos estudos sobre gênero e sobre a condição da mulher nas sociedades e na história,
donde as ciências sociais constituem sua cornucópia. Evidencia-se, graças a
esses estudos, a existência do machismo, que privilegia os símbolos masculinos
frente aos femininos e pressupõe formas de atuação para os portadores desses
respectivos símbolos. Mais do que separar os símbolos em dois grupos, eles são
divididos em símbolos para homens e símbolos para mulheres; os símbolos são
vistos como naturais a determinado sexo, destinados a partir do nascimento: o
pênis se propõe herdar tudo o que faz referência ao masculino, enquanto o a
vagina é herdeira equivalente do universo feminino. Daí diz-se que esse ou
aquele brinquedo é para meninos, que
alguém cruza as pernas como uma mulher,
que rosa não é cor de homem. E
poderíamos muito bem concluir este texto nos dando conta deste processo de
naturalização se não fosse por interferência de argumentos visando a biologia
dos dois sexos: corpos diferentes,
formas de pensar diferentes, necessidades diferentes e uma série de diferenças
que justificam as desigualdades sociais. Estes últimos argumentos se
fundamentam numa visam arquetípica que procura dizer isto é da natureza do homem e isto
é da natureza da mulher, ou ainda, existe
uma divisão entre homem e mulher que é natural e que não pode ser igual. E
a pergunta que fica é: feminino e masculino são construções sociais ou são
condições inatas da espécie?
A construção social
Por construção social devemos
entender que as condições materiais, culturais, históricas, políticas,
econômicas e simbólicas participam das relações sociais, das interações entre
pessoas, do que se entende por sociedade e suas estratificações. A discussão
seria rasa se reduzíssemos o aspecto social do sexo pela ação em si (o homem
possui remuneração maior que a mulher pelo mesmo cargo, função e horas de
trabalho) e não ao que provoca a ação, que é, por acaso, uma das finalidades da
sociologia. Busca-se, portanto, encontrar as condições de existência que
respondem por que a sociedade trata
desigualmente os sexos?
É
necessário ter em mente que a sociedade não é apenas uma plataforma sob a qual
somos plenamente livres para decidir como agiremos ou um ambiente inócuo de
estímulos para o desenvolvimento de nossos corpos. As sociedades se organizam
por um controle inerente a sua formação: existem normas, regras, limites,
condutas. O desenvolvimento de um ser humano em sociedade prevê uma coerção de
certos impulsos e desejos, canalizando essas energias para fins sociais, ou
seja, para poder conviver com outras pessoas seguindo os pré-requisitos já
comentados. Por este motivo é que não vemos pessoas se masturbando
publicamente: é uma prática proibida pelo código social, que além de ser visto
como comportamento imoral pelos seres sociais que aqui vivem, é inadmissível
por um código de leis que chamando essa prática de atentado ao pudor tenta
preservar a integridade de todos. Viver em sociedade é, em parte, atuar e
manter a performance que esperam de você.
A educação
dos homens e mulheres imersos numa sociedade não deixa de estar sobre um
controle social; a sociedade tolhe os impulsos e desejos de homens e mulheres
baseados em seu sexo (no seu órgão genital). Negam ao menino brincar de boneca,
a menina não pode subir em árvores, o menino não pode ter um vestido, a menina
não deve brincar de lutinha, o menino não se maqueia, não tem como a menina não
gostar de princesas da Disney.
Esses são alguns costumes sociais
travestidos de naturais que são reproduzidos com frequência, e deles entende-se
que posteriormente: o homem não brincando com bonecas brinca com figuras de
ação (super-heróis, soldados, personagens com músculos desnecessariamente
grandes), desenvolvendo sua virilidade e o combate para defender sua honra;
suas roupas não poderiam ser um vestido para não lhe restringir os movimentos,
as roupas folgadas lhe permitem melhor movimentação e sente confiança nos
movimentos de seu corpo; a luta entre meninos é natural, em seu sentido social, para gerar a competição entre seus
semelhantes, é uma das formas que se encontra de decidir o alpha do grupo, portanto, pretende ser pública, para que todos
vejam, que depois passará de uma disputa física para uma disputa baseada no discurso,
o que faz da política o tema preferido entre homens decididamente masculinos.
A maquiagem e a identificação com
princesas de pouco servem para os homens numa sociedade machista (cujo termo
justifico a seguir). A maquiagem leva a menina a se preocupar com sua
aparência, é uma educação da estética disseminada socialmente; as princesas
estão aí para serem resgatadas por príncipes de suas madrastas ou mesmo de suas
famílias: o príncipe substituirá a figura do pai e a princesa se tornará mãe,
devendo engravidar e ter herdeiros. A gravidez possui significações diferentes
para o homem e para a mulher que vivem numa sociedade sexista: para a mulher
será doar sua carne para gerar um filho, devendo alimentá-lo, cuidar dele e
educá-lo minimamente; para o pai, o filho é o herdeiro de todas suas conquistas
em batalhas passadas, ensinará o que significa tornar-se homem e como continuar
disputando num mundo de lutas. A filha é a possibilidade de que algum homem a
possua para ter filhos que carregarão seu legado.
O filho não continuará sua
educação com a mãe por muito tempo, e por pressão social (conselhos, ritos
sociais, identificação com os símbolos masculinos, ser alvo de chacotas por
essa ou aquela ação) cederá ao universo masculino, se desvinculando dos
símbolos femininos por completo, vendo neles uma repulsa, e se o controle
social for eficiente, nojo. A filha seguirá sendo educada por sua mãe enquanto
o pai serve de parâmetro sobre os símbolos masculinos e o que esperar de seu
marido. Mais delicado ainda é confirmar que a figura amada do pai é
praticamente divina para a menina, pois é nele que reside os símbolos de poder.
O homem quando está no mundo
público, principalmente frente a outros homens, se porta confiante, com postura
firme, seu olhar é mais atento, incita virilidade próximo a outros homens.
Seria mentira dizer que todos os homens hoje em dia são assim, mas por uma
seleção social, os mais fracos, efeminados, inseguros, menos combativos,
tenderão a ser excluídos rapidamente dos grupos ou tratados por uma relação
dominantes-dominado.
A mãe, aos olhos da menina, é
frágil, histérica, está insatisfeita com a limpeza da casa, possui uma beleza
que nunca é suficiente, entre tantas outras características suas.
Sem contar que a mãe se preocupa demais com o
corpo, o que pode mostrar, o que deve cobrir, mas isso a menina também
descobrirá ao ser observada, ao primeiro comentário sobre seu corpo, com
assédios frequentes. A menina nunca terá um corpo de que se orgulhar, o estranhará. Seu corpo será transformado em carne pelos olhos dos outros, por
isso vive tão recolhida. Ela viverá uma vida difícil, pois deverá mostrar seu
corpo-carne o suficiente para ser bela sem ser alvo de olhares clandestinos,
daqueles que desejam pousar sua virilidade no corpo sensualizado da mulher como
se ele pertencesse a quem o olha. O desconforto com seu corpo não está somente
no ser observada, é nítido pelas
roupas que usou na infância e pela maquiagem que este é seu destino. Ser bela é
seu atributo maior; sua virtude é a beleza e sua temperança é feminilidade. A
boneca, a vassoura, os brinquedos que imitam os móveis da casa corroboram para
praticar os rituais que a esperam em sua vida adulta. Sua vida inteira está
confinada à casa, à vida privada. A menina sabe que deverá que se casar, se não
fosse para isso, de que serviria toda sua educação?
Os filhos tendem a imitar os pais
por serem figuras de respeito, no fundo o respeito está fundado na mãe ser o
troféu que o pai exibe aos amigos homens e o pai ser o Deus que a mãe exibe
para as amigas mulheres. Ambos os sexos jogam as naturalizações sociais
simplesmente porque o controle social contribuiu para a formação de uma visão
natural das coisas. Se algo é natural, está dado e pronto. E não é como se a
mulher não se sentisse valorizada nessa sociedade, as condições de existência
são suficientes para que elas sintam-se tão importantes quanto os homens. Parte
de suas angústias provocadas pelo tecido social nem poderiam ser expressas
pensando em condições naturais de existência, como dever dar prazer ao marido
ou ao cônjuge, satisfazer todas as vontades do companheiro, ser alvo de sua
brutalidade, sentir-se inferior, ter sua autoestima ferida por um olhar. Por serem naturalizações entende-se que a mulher vem ao mundo predestinada a sofrer dessa forma, o que a mantém é seu papel de Mãe.
Essa educação diferenciada entre
sexos é pesquisada cuidadosamente por Simone de Beauvoir em seu livro O Segundo Sexo: a experiência vivida,
fazendo de minhas palavras ecos de sua obra eminente. Em outro sentido não tão
distinto, Pierre Bourdieu nos apresenta essa situação desigual de educação
dentro do seu conceito de campo,
insinuando o combate entre os agentes por distinção.
Os dois sexos devem jogar
incansavelmente as partidas com as peças que lhes foram dadas. Nesse jogo, os símbolos-peças
não podem ser partilhados com o sexo ao qual eles não dizem respeito, um homem
feminino ou uma mulher masculina são punidos por não jogarem direito.
Em nenhum momento expressei como
participariam os homossexuais deste cenário. Eles também estariam no meio de
todos esses símbolos, imerso num mundo em que deve ser masculino ou feminino.
Os homossexuais tenderiam a escolher entre homens masculinos, mulheres
femininas, homens femininos ou mulheres masculinas. A homossexualidade não
significaria a vitória sobre esse jogo simbólico.
O sexo não define gênero, apenas
constata seu órgão sexual. O gênero é definido socialmente, e aqui caímos no
masculino e no feminino, também conhecido como papel social. A sexualidade
apontaria o objeto de desejo. O erro de atribuir símbolos às pessoas é supor
que o sexo define o gênero – ligar homens ao masculino e mulheres ao feminino -
ou que os gays e lésbicas são todos femininos segundo a seguinte lógica: a)
homens que não são viris são afeminados; b) homens que se relacionam
afetivamente com outros homens não são viris; c) todas as mulheres são
femininas. Mesmo os homossexuais, por reconhecerem no masculino o símbolo
dominante, optam por ele quando se identificam com esse símbolo de poder.
As regras do jogo para todos os
efeitos é bem simples: o masculino será dominante e o feminino será dominado, a
educação, em seu sentido mais amplo, cuidará de distribuir os jogadores em
cenários e situações sociais que (sem desconsiderar a biologia dos corpos)
cuidará de aproximá-los ou não do símbolo dominante, e a mulher sempre está em desvantagem neste jogo. Por definição, o feminino
seria tudo o que não é masculino, e o masculino representa a dominação dado as
circunstâncias em que nossa sociedade está embasada.
A herança arquetípica
Os arquétipos consistem em
imagens e símbolos universais que são a base da vida da espécie humana. Os
arquétipos, enquanto modelos primordiais, equivaleriam inclusive ao masculino e
ao feminino, conhecido na psicologia analítica por animus – o arquétipo masculino no inconsciente da mulher – e anima – o arquétipo feminino no
inconsciente do homem. Pelos arquétipos, compreendemos que nascemos com ambos (anima e animus), entretanto expressamos mais um arquétipo do que outro.
Como consta
no livro O Eu e o Inconsciente, de C.
G. Jung, animus e anima seriam arquétipos opostos ao
arquétipo da persona, que é como nos
apresentamos para os outros. Uma pessoa que demonstrasse ser mais masculina em
seus meios sociais por inferência dos já conhecidos controles sociais, teria uma anima
reprimida. Em contraposição, o animus reprimido
seria resultado de uma persona que
deve apresentar-se feminina.
Jung propõe
que no inconsciente coletivo residem os sedimentos simbólicos das vidas
passadas dos nossos ancestrais, sendo a humanidade herdeira de símbolos comuns
e universais, o que gera discordância entre aqueles que justificam a existência
do masculino e do feminino como socialmente construídas, pois para Jung,
aparentemente, não seriam. Minha defesa aos arquétipos vem mostrar que a
existência deles não prejudica em nada o que já foi exposto, mas vamos por
partes.
Primeiramente,
Jung sempre buscou refutar o cunho místico de seus trabalhos, considerava-os
ciência e várias vezes em seus livros precisava explicar que se tratava de
ciência e não de misticismo, alquimia ou religião (pode parecer difícil de
acreditar vindo de alguém que acreditava no poder curativo das mandalas e
buscou comprovar a sincronicidade preparando o mapa astral de seus convidados).
Seria minimamente justo que considerássemos o caráter científico de seus
trabalhos e de seus arquétipos apenas para nos livrarmos de preconceito.
Segundo, o
inconsciente coletivo de Jung nunca está num plano místico. O inconsciente
coletivo é herdado da mesma forma que se herdam genes, e quando ele aborda o
tema, é comum referir-se à espécie: a psique do organismo de todos os seres
humanos porta uma série de imagens que podem vir a manifestar-se de acordo com
as experiências vividas pelo inconsciente pessoal.
Terceiro,
os estudos de Jung acontecem com base na psicanálise, filosofia, religião, alquimia e
sempre sustentado pela probabilidade. Existem
tantos traços comuns nas culturas e seus símbolos, como poderia isso ser acaso?
(como seu estudo sobre sincronicidade).
Voltando ao
segundo ponto, que é o que nos interessa aqui. É consenso que todos possuímos
uma psique que faz parte do organismo humano e não seria separada dele.
Pensando no inconsciente sendo formado a partir de uma programação básica a
todos os indivíduos, que é o que acontece quando pensamos na genética, estamos
aptos a pensar o inconsciente em termos de evolução, mais precisamente de
adaptação e ativação dos arquétipos do mesmo jeito que acontece a ativação de
genes. Os arquétipos representam modelos básicos do comportamento instintivo,
como consta Jung no livro Os Arquétipos e
o Inconsciente Coletivo, ou seja, são anteriores à consciência e auxiliam
seu lento desenvolvimento. Os comportamentos advindos dos arquétipos preveem tipos
emocionais.
As emoções
também estão sujeitas ao aspecto adaptativo e evolutivo do ambiente, inclusive,
Paul Ekman afirma em A Linguagem das
Emoções que as emoções estão sujeitas a seleção natural e que existem
expressões faciais universais e que poderiam ser reconhecidas em qualquer
cultura do mundo (felicidade, tristeza, raiva, aversão). Uma de suas várias
pesquisas envolveu o estudo das expressões de pessoas cegas para verificar se
elas apresentavam o movimento muscular da face semelhante ao de pessoas dotadas
de visão. Se as expressões fossem aprendidas, cada cultura definiria um
conjunto de expressões faciais diferentes para as emoções. O que ele relata é
que pessoas cegas, que não poderiam ter aprendido as expressões, movem os
músculos que tornam reconhecível aquela emoção, como em expressões que indicam
felicidade as pessoas curvarem a boca para cima e contraírem os músculos
orbiculares do olho, nas expressões de nojo o músculo levantador do lábio ser
acionado ou as sobrancelhas se abaixarem, ou ainda, as pálpebras ficarem semicerradas e
os músculos da boca ficarem tensionados quando estamos com raiva. “Estas constatações me conduziram à conclusão
de que nossa herança evolucionista contribui definitivamente para modelar
nossas respostas emocionais” (EKMAN, 2011, p.43).
Os instintos do esquecido mundo
selvagem viria a ter sua energia deslocada para o mundo social e da
civilização, onde a sobrevivência acontece num ambiente diferente e a atenção
para caçar uma presa e o medo para fugir do predador continuam a existir,
embora sob novos contornos.
Richard J. Davidson, em O Estilo Emocional do Cérebro, escreve:
“As propensões genéticas podem fazer com
que uma criança seja direcionada a determinado estilo emocional, mas certas
experiências e ambientes podem desviá-la de um caminho para outro.” (2013,
p.98). O estilo emocional do cérebro é constituído por seis dimensões, segundo Davidson: resiliência, atitude, intuição social,
autopercepção, sensibilidade ao contexto e atenção;
essas dimensões estão intimamente ligadas com a ativação dos genes humanos que
são herdados dos pais. O ambiente possui participação na ativação e desativação
dos genes e consequentemente na fisiologia do corpo, o que afeta diretamente as
emoções. Os comportamentos herdados não seriam aleatórios, mas decorrente do
estilo emocional dos pais e poderiam ser modificados pelo ambiente, o que
sugere a adaptação do cérebro as possíveis condições ambientais, onde o social
está incluso.
Sob estas condições, parece tão
improvável herdar imagens? No que consistiria a informação genética que
desperta o estado de alerta ao vermos uma cobra ou uma aranha? Como seria
possível identificar tais animais se não herdássemos imagens deles associadas
ao hipotálamo e a consequente produção de adrenalina e cortisol?
O inconsciente coletivo,
entretanto, não possui a capacidade de atribuir sentido às vivências, apenas
geraria uma forma simbólica inicial que prepararia o indivíduo para o mundo
esperado, onde reside aquele símbolo. Conforme este indivíduo vivenciasse
situações e as culturas ele preencheria a forma do símbolo com um conteúdo que
formaria seu inconsciente pessoal. Pode-se dizer, em analogia, que o arquétipo,
sempre atuando no inconsciente, é desativado ou ativado pelo ambiente. Segundo
Jung, “O processo simbólico é uma vivência
na imagem e da imagem” (p.48,
2014).
A cultura não mudaria os símbolos
no inconsciente, ressignificaria um conteúdo latente no inconsciente coletivo,
e é por isso que a teoria dos arquétipos não interfere nas teorias da construção
social dos sujeitos. A cultura participa da formação do sujeito
(re)significando constante os símbolos herdados pelo inconsciente.
Lendo atentamente como Jung se
refere ao animus e a anima em O Eu e o Inconsciente, parece menos uma descrição
arquetípica e imutável a uma excelente analise psicológica da divisão sexual de
seu tempo social. A começar por animus e anima não serem opostos, mas um mesmo
arquétipo que é representado de forma dual numa sociedade em que a persona é impelida a mostrar-se
heterossexual e que reconhece que existem símbolos para homens e para mulheres,
independente de sua identidade de gênero (não se reconhece gênero nesse momento,
as primeiras pesquisas com utilização do termo gênero surgem anos depois da primeira publicação
de O Segundo Sexo, em 1949).
Jung provavelmente prepara os
psicólogos de seu tempo para os complexos que irão encontrar no homem e na mulher
pela sociedade exigir do primeiro uma persona
autenticamente masculina, logo, impulsionada pelo animus, e na mulher uma representação feminina da persona, que possuiria laços de
identidade com a anima. Apenas longe
de observadores que induzem um comportamento neste homem e nesta mulher, é que estes
indivíduos poderiam retirar a persona sufocante
para sentirem-se mais a vontade, nos recônditos do lar, a entrarem em contato
com a oposição de sua persona: a anima para os homens e o animus para as mulheres.
O casamento, que a essa altura do
século XX possui poucos casamentos arranjados, é nada mais do que a
identificação de seu animus/anima no(a) parceiro(a). Homens, por
expressarem o animus a maior parte do
tempo, procurariam numa esposa uma anima
parecida com a sua, e a mulher identificaria seu animus reprimido num marido. A psique, nestes moldes sociais,
reprime determinados símbolos em virtude de uma correspondência natural que
supostamente possuem com o sexo em questão. O inconsciente pessoal se adequa ao
social, mas o inconsciente sempre busca a reconciliação da anima e do animus por se
tratarem de um mesmo arquétipo cindido por controle social, por isso gera tantos
complexos nas culturas em que a divisão sexual acaba em desigualdade.
Jung comenta que os homens não
apenas identificam sua parte feminina na mulher, como também projetam os
complexos de sua anima na anima da perceira. E as mulheres
projetariam as inibições de seu animus
no animus do parceiro. Essas
projeções acontecem principalmente porque homens e mulheres são ensinados
socialmente a recusar alguns símbolos com os quais se identificam e a viverem
apresentando apenas o que diz respeito à anima
ou ao animus.
A anima está para o capricho
assim como o animus está para a opinião:
“Se eu tivesse que caracterizar, resumindo em poucas palavras, a diferença entre homem e mulher no tocante ao problema que nos ocupa, isto é, como se confrontam anima e animus, eu diria: assim como os caprichos do homem brotam de um fundo obscuro, do mesmo modo as opiniões da mulher provêm de pressupostos apriorísticos inconscientes” (JUNG, p.97, 2014a).
Os arquétipos que representam o
masculino e feminino, por se tratarem de um mesmo arquétipo, são representações
precisas do yin yang: são os
princípios que denotam a dualidade do mundo, forças opostas e complementares,
princípios de todas as coisas. O inconsciente requer a anima e o animus, assim
como yin requer yang, pois o movimento não acontece a partir de uma separação entre
eles, como se um precisasse se libertar do outro, suas existências são
duradouras porque eles possuem seu princípio oposto. Se o yin representa a Lua, a água, a noite e a passividade, o yang é o Sol, o fogo, o dia e a
atividade. Yin está para anima assim como yang está para animus.
Se vemos no feminino uma
inferioridade, isso mostra apenas uma incapacidade de lidar com os próprios
arquétipos e evidencia uma enorme dificuldade da humanidade de reconciliar os
símbolos. Se há inferioridade, há superioridade, e é esta dualidade que fere a
dinâmica do inconsciente, pois a inferioridade não é significada como uma noção
espacial, é precisamente a diferença de forças que existem entre os opostos e
que incentivam a tensão constante. O mundo exacerba demais as qualidades do animus: a atividade, o estar por cima, o
ser duro, a extroversão, gerando, portanto, tensão. É reconhecendo a anima como um igual e permitindo
movimento à ela que devemos pensar em viver mais baixos, mais moles, mais
introvertidamente, porque somente assim podemos encontrar o relaxamento.
Conclusão
Em momento nenhum é levado em
conta a identidade de gênero de homens e mulheres, sendo coibidos e
amedrontados por expressarem sua identidade e suas afinidades. A construção
social do masculino e do feminino prejudicam os ambientes sociais por
edificarem as experiências na violência simbólica.
O problema nunca foi existir
masculino e feminino (que são dois lados da mesma moeda), pois seus símbolos
participam de forma significativa para a formação do Self. A tensão reside na tentativa do masculino imobilizar,
invalidar, desqualificar, negar, subsumir, suprimir e dominar o feminino.
Pensando que vivemos numa época que se apoia no princípio de visão e divisão (termo bourdiesiano), o homem ao
distanciar-se do feminino distancia-se de uma parte de si, nesse mesmo
processo, convence a mulher que a melhor coisa a fazer seria distanciar-se dos
símbolos masculinos, pois o homem não aceita um igual, precisa da diferença para subjugá-la.
Quando a visão vertical entre
sexos e gêneros for substituída pela relaxante horizontalidade que abrange a
diversidade, a diferença e as possibilidades como semelhantes de si, teremos
cumprido um crepúsculo do homem e estaremos mais próximos dos raios lunares de
uma humanidade; quando o mundo de lutas e disputas passe a ser um mundo de boa
convivência e respeito, podemos dizer que a identidade poderá ser experimentada
com sinceridade e solidariedade entre os sujeitos, que sendo simultaneamente
masculinos e femininos, não precisarão identificar-se como isto ou aquilo. Apenas
serão e todos compreenderão sua identidade manifesta na liberdade de
aproximar-se de qualquer símbolo que expresse seu Eu.
Referências
BEAUVOIR, Simone. O
Segundo Sexo II: a experiência vivida. São Paulo:Difusão Europeia do Livro,
1967.
BOURDIEU, Pierre. O
Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.
DAVIDSON, Richard J. O
Estilo Emocional do Cérebro. Rio de Janeiro: Sextante, 2013.
EKMAN, Paul. A
Linguagem das Emoções. São Paulo: Lua de Papel. 2011.
JUNG, C. G. O Eu e o
Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2014a.
JUNG, C. G. Os
Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Vozes, 2014b.
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