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sábado, 23 de julho de 2016

A Palavra de Deus

Introdução:

No caminho de volta para casa paro num book café da minha cidade. Sempre observei sua fachada, via as plantas que ornamentam o lugar, as mesas de madeira, as pessoas conversando ou trabalhando em seus computadores, os livros que pareciam atender uma diversidade. Ontem foi o primeiro dia que entrei no café para ver os livros. Todos sobre religião. Capas com cores convidativas, que agradam o espírito. Igualmente genéricos aos olhos de um leigo. Com toda a certeza continham a Palavra do Senhor. Curiosamente o nome Dong Yu Lan se repetia de incessantemente nos nomes dos livros. Foi impressionante ver como alguém consegue escrever tanto, se dedicar a produzir os caminhos para cristãos que buscam aprofundar seus conhecimentos sobre sua fé.
A balconista saiu de onde estava para me atender. Eu disse que só estava vendo os livros. Ela veio até mim, me apresentou os livros, perguntou se eu gostava desse tipo de literatura. Disse que não eram os livros que eu estou acostumado a ler, mas talvez eu resolvesse, algum dia, passar por ali, pedir um café e me debruçar sobre essa literatura. No fim das contas saí com uma amostra que deverei devolver na minha volta ao book café: Identificados pelo Invocar, de Dong Yu Lan, um livreto com 28 páginas, cuja primeira impressão data 1998 e a segunda, 2006, e recentemente reimpresso em 2010. Na contracapa encontramos as seguintes perguntas: Como Paulo identifica os cristãos a quem perseguia? Por que ele fazia coisas contra o nome de Jesus?
Ainda bem que não comecei lendo a contracapa, foi a última coisa que eu li, mas já sabia que encontraria uma doutrina semelhante.
No começo a leitura foi puramente informativa, ler o livro pelo livro, como se ele pudesse me ensinar algo, como se seu conteúdo tivesse algum valor para mim, como se ele abordasse algum tema que eu desconhecesse. Valorizei cada palavra inicial, cuidando para compreendê-lo integralmente.
Eram apenas 28 páginas com menos palavras numa página do que estou acostumado. Todas as palavras do livreto devem se aproximar a um artigo científico de 10 páginas, mais ou menos. O máximo que poderia acontecer é eu perder o interesse pelo livreto antes de chegar em casa.




Páginas iniciais:

Identificados pelo Invocar é iniciado com um breve relato sobre Saulo como um perseguidor de cristãos. Para prendê-los, o fariseu identificava-os por invocarem o nome do Senhor. O que responde a primeira pergunta da contracapa. Saulo, indo à Damasco, é surpreendido por luz que o ilumina e se identifica como Jesus. “A intensa luz o deixou cego por três dias e durante esse tempo ele, certamente diante dos fatos ocorridos naqueles últimos dias, pesou cada acontecimento de sua vida de perseguidor” (YU LAN, 2010, p.4). Ananias cura sua cegueira e batiza Saulo, que passa a se chamar Paulo. Assim, “Paulo, ensinava as pessoas a invocar o nome do Senhor.” (YU LAN, 2010, p.5).
A segunda pergunta também foi respondida: faltava a Palavra a Paulo.
O próximo capítulo é A edificação pelo invocar, quando Jacó recebe uma visão de Deus, desperta de seu sonho, levanta a pedra que lhe servia de travesseiro e derrama azeite sobre ela, que “representa o derramamento do Espírito Santo sobre os cristãos. Portanto, para haja edificação da Igreja, é necessário derramar o espírito Santo” (YU LAN, 2010, p.6).
Nesse capítulo me interessou saber se era essa representação da oliveira que pairava no inconsciente coletivo, pelo menos no ocidente: a fonte de uma comunhão, o começo de uma vida abençoada, as certezas que estariam por vir, nosso inconsciente nos alertando sobre as possibilidades para guinar nossa vida. Chegando em casa encontrei que “As oliveiras são símbolos tradicionais de paz, pureza e vitória. Podem invocar o triunfo sobre as adversidades, conflitos familiares ou lutas internas. O sonhador talvez vislumbre um período de criatividade” (ALTMAN, 2003, p.295).
Mesmo sem ter certeza sobre o que poderia ser a oliveira, percebi que segurava um livreto que continha imagens que possivelmente residem no inconsciente coletivo; figuras que com certeza são despertadas por pessoas que são sensibilizadas por esse discurso. Mesmo que houvesse chances daquele ser um texto de segunda mão com intuição de doutrinação (e mesmo depois de lido me parece ser isso), seria interessante ver como que estavam organizadas as imagens primordiais que conduziam à individuação.
A esta altura começam reflexões interessantes no livreto: “Como os coríntios poderiam estar no espírito? será que o fato de se reunirem e terem comunhão garantiria que eles estavam no espírito? ou o serviço aos demais irmãos? Ou a participação em muitas atividades da igreja?”, e a resposta é “Não, nada disso, por si só, garante que estejamos no espírito. Tudo isso pode ser feito por meio de nossa vida natural, de acordo com o velho homem, sem nenhuma comunhão com Deus” (YU LAN, 2010, p.7).
Somente invocando o nome do Senhor seria possível alcançar Deus, pois antes de Cristo não conseguíamos falar com Deus, inclusive, páginas depois, teremos mais claro como a vida sem Jesus, ou seja, viver a vida natural, não é uma possibilidade de salvação, pois somos incapazes de nos expressar a Deus sem sermos banhados pelo Espírito Santo, daí nos comunicamos com Deus, mas é somente através de Jesus que somos tocados pelo Espírito e passamos a evocar a Palavra, que é o próprio Deus.
Este ponto da leitura me recordou de As Palavras e as Coisas (2000), em que Michel Foucault, no capítulo A prosa do mundo, escreve sobre o período do Renascimento e como as ciências humanas estão voltadas para o estudo da natureza para encontrar semelhanças entre as coisas partindo do princípio que a Palavra das escrituras sagradas não são representações das coisas, são as próprias coisas. Não há diferença entre a Palavra e as coisas, pelo contrário, as coisas possuem semelhanças entre si que devem ser interpretadas por uma adivinhação e uma erudição que conduziriam os homens mais facilmente à compreensão da Palavra.
A Palavra e as coisas estão próximas, uma não é representação da outra, são a mesma coisa, tanto que “O estudo da gramática repousa, no século XVI, na mesma disposição epistemológica em que repousam a ciência da natureza ou as disciplinas esotéricas” (FOUCAULT, 2000, p.48). Existem segredos a ser desvendados nas coisas, a serem revelados.
Em Yu Lan, seguindo as escrituras sagradas, a Palavra é a própria invocação do Senhor, e este é o uso que o autor faz de sua eruditio para interpretar os textos religiosos na forma do livreto. Existe uma diferença entre interpretar e analisar: a presença da representação. A interpretação dispensa a representação porque nunca chegaria numa Verdade se tomasse esse caminho; a análise, adotando a representação por princípio, separa palavras e coisas, ou seja, cumpre a intenção deste texto que escrevo.
Para Yu Lan, “éramos adoradores de símbolos mudos” (2010, p.7) antes da chegada de Jesus, por sua gramática renascentista. “Hoje cremos no Deus encarnado, que é Cristo, que é a Palavra; por isso, podemos declarar que Jesus é nosso Senhor, que Ele é nosso Senhor” (YU LAN, 2010, p.8). E é na igreja, a casa do Senhor, que a Palavra será enunciada; dizer a palavra é tocar um corpo. Pela Palavra não ser um signo, quando evocada, ela não faz referência a algo, ela é esse algo. Dizer o nome de Cristo é sentir Cristo justamente pela palavra Cristo não ser arbitrária. Pensa-se que a palavra, do ponto de vista analítico, é um signo que representa outro signo, ou ainda, uma representação de uma representação. Como menciona Yu Lan, as coisas são mais simples, sua interpretação nos conduz a pensar que a Palavra quebra a ideia de representação: ela não faz menção a nada que não seja ela mesma. A Palavra possui fim em si mesma, seus motivos de existir não foram definidos pelos homens, sequer pode ser considerado um acessório linguístico para se referir ao mundo objetivo ou à imaginação, ela perdeu essa função desde Babel, daí em diante as diferentes línguas são reflexos fragmentados dela.
A Palavra é uma consciência.

A Salvação como violência:

Se a Palavra conduz à transformação, ela pode ser considerada uma consciência de si, em termos hegelianos. Talvez ela não possa ser considerada dessa forma, pois pediria reconhecimento de uma outra consciência para ser como é, o que pressupõe um diálogo. No momento ela apenas reconhece e cumpre suas funções teleológicas, sem precisar ser reconhecida por ninguém por ser a Verdade, portanto, fim último. A teleologia aqui consiste, se é que podemos colocar nestes termos, numa espécie de individuação do fiel – a Salvação. O encontro com seu Self depende de um único arquétipo, que é aquele que dita a relação com a Palavra; e talvez o encontro com Deus não signifique encontrar o Self.
No capítulo O dispensar do Espírito, acontece um evento: “O Espírito Santo foi derramado exteriormente sobre eles [os discípulos], e começaram a falar em outras línguas. Eles passaram a falar em línguas genuínas, línguas que eram compreendidas por pessoas vindas de outras nações” (YU LAN, 2010, p.9). Seria apenas pela invocação do nome do Senhor que viria a salvação, não da manifestação do Espírito Santo. Aqui também é advertido sobre invocar o espírito para necessidades próprias e esquecê-lo. Preza-se por adquirir o hábito de invocar o nome do Senhor a todo momento, “pois a cada momento necessitamos ser salvos de nós mesmos, de nossa natureza caída” (p.11).
Com esta justificativa para invocar a Palavra podemos compreender que o Yu Lan, ao interpretar as escrituras, está nos advertindo sobre a natureza humana, uma condição da qual não podemos fugir. Podemos tratar igualmente por uma metafísica da espiritualidade humana: o corpo, enquanto carne, recebe os pecados; sair dessa condição é portar a Palavra regeneradora.
Ensinar a Palavra na igreja é tão semelhante quanto ensinar a palavra na escola. Ambas despertam a consciência. Salvos pelo invocar é o capítulo que nos mostra a importância de tal educação para a expansão do divino em nós, salientando que a Palavra possui um efeito interno dividido em três etapas: regeneração, transformação/salvação da alma, redenção do corpo. A primeira etapa acontece ao encontrarmos a Palavra; a segunda por seu uso constante; “Quando cremos no Senhor, o Espírito de Deus entrou em nosso  espírito, fomos salvos, nossos pecados foram perdoados e fomos justificados (...) Na segunda vinda de Cristo, ocorrerá o último estágio da salvação, que é a redenção do nosso corpo.” (YU LAN, 2010, p.14-15).
Para concluir a última etapa é preciso passar por um processo de negação da vida da alma para conceber a vida de Deus, introduzido no final de Salvos pelo invocar e explicado mais detalhadamente em Negar a si mesmo e seguir ao Senhor. Lendo nas entrelinhas dessa negação de si: fazer com que o ser do sujeito seja aniquilado para receber uma consciência divina; mutilar-se, sacrificar-se, afligir-se e escapar de tudo o que ele é ou foi para ser outra coisa, algo que talvez ele nem quisesse ser.
Se a regeneração da alma só existe como etapa para que um Eu desapareça e um Outro assuma os restos deste antigo Eu, temos um caso de catequização. A regeneração não é revitalização, é iniciação; a salvação da alma não é perdão, é um processo constante de violência e de autovigilância, é quando o fiel, acreditando no que dizem, pensa que pensa errado, e não querendo errar invoca o Espírito de seu próprio sofrimento: lhe foi ensinado que um masoquismo poderia sarar suas feridas; por fim, a redenção do corpo é a morte de qualquer possibilidade de existência, o fim de uma consciência por outra.
As exatas palavras do começo do novo capítulo são: “Uma vez que o mistério de Deus é Cristo (...) somente Deus poderia revelá-lo; e sendo a igreja o mistério de Cristo (...), somente Cristo poderia revelá-la” (p.16). O mistério não é nada mais que a chave para a Semelhança dos gramáticos renascentistas, como sugere Foucault (2000). Pelas articulações da semelhança basta encontrar as assinalações necessárias - as marcas misteriosas – para descobrir a igreja, a casa de Deus, donde Cristo aparecerá com a Palavra, permitindo sentir o Espírito Santo, e, assim, Deus.


“Para que a igreja fosse gerada, era necessário que o Senhor Jesus fosse crucificado, morresse e ressuscitasse” (YU LAN, 2010, p.17). E antes que houvesse a crucificação, Pedro não permite a crucificação de Jesus pelos, impedindo, consequentemente, a formação da igreja, uma vez que Jesus precisa passar pelo ritual de aniquilação de Si. Conclui-se que Pedro está dominado por Satanás e qualquer tentativa de impedir a vinda da igreja é uma profanação vinda diretamente do reino do inferno, “é pela igreja que Satanás é derrotado” (YU LAN, 2010, p.17).

Qual a maneira de seguir ao Senhor? Vivendo a vida da igreja e ouvindo Sua Palavra. Quando fazemos isso, espontaneamente negamos a nós mesmos, a nossos interesses, opiniões, desejos, gostos e pensamentos e tomamos nossa cruz.” (YU LAN, 2010, p.17-18). E para segui-Lo precisamos viver no espírito, exercitando-o pelo invocar do nome do Senhor. Precisamos aprender a, em tudo, depender do Senhor, em tudo invocar Seu nome buscando comunhão, consultando-O sempre e permitindo-Lhe tudo decidir sobre nós. A todo o momento precisamos invocar Seu nome, pois somente assim nossa alma será salva. (YU LAN, 2010, p.18)

Para haver vida, perde-se vida. A recompensa de negar sua própria vida está em se tornar-se Deus. O processo de individuação, funcionando por uma teleologia, garante o equilíbrio do Self. Corpo caído, velho homem e vida da alma são assinalações de um complexo humano que deverá ser superado. Em nenhum momento as experiências parecem ter alguma significação para a ida ao reino dos céus, a não ser pela descoberta da Palavra, aí sim o mistério é revelado e começa o sentido da vida; qualquer outra expressão diferente desta é tida pela manifestação da vontade de Satanás. Hegel, portanto, está tomado por Satanás, assim como Foucault, Paulo Freire, e até mesmo Jung!
Hegel (1992) é sinalizado por pensar que duas consciências devem reconhecer-se como outro, que pressupõe reciprocidade, também pressupõe perigosamente que dois errantes se reconheçam como um Ser. Foucault (2000) utiliza seu domínio histórico para conceber tempo a algo intemporal, quando não percebe que a Palavra só vem sendo esquecida com o avanço dos estudos sobre linguagem, implicando na condenação de muitas almas. Como se não bastasse Paulo Freire (2012) ensinar a palavra que não é Palavra, insiste num aprendizado sobre a materialidade da vida, logo, aceita uma vida mundana como forma de desenvolver uma consciência que não é a de Deus. Finalmente, o processo de individuação de Jung (2014) recorre a elementos atemporais para aproximar o homem do divino, de senti-lo plenamente em sua alma, e isto estaria muito bem se as respostas para a transcendência não estivessem no homem que sofre a transformação, mas numa entidade externa a ele. Por estas razões, Yu Lan poderia, a partir da Palavra, reconhecer Satanás em todos esses pensadores.
Entretanto, tudo isto não passa de metafísica. Usar a Palavra para explicar os corpos, as almas e as verdades sobre Deus recusam instantaneamente qualquer argumento que não reproduza o Mesmo. Entre Hegel e Yu Lan é compreensível que seja um simples embate de posições metafísicas, nenhum deles cedendo por encontrarem em suas posições lógicas infalíveis; o cenário muda quando acrescentamos pensadores modernos. Continuo defendendo o uso de uma visão analítica sobre uma visão interpretativa, dessa forma a Verdade apenas converte-se em verdade, mas não significa que seja mentira, não totalmente.
Como exemplo, e podemos até tomar a título de experimento, se um bebê, seja na língua que for, pronuncia a Palavra de Deus não sentirá o Espírito Santo – esta é minha tese. Como verificar? Simples, é só acompanhar o desenvolvimento do bebê. Não fiz este experimento, e nem considero necessário. Se sentimos Deus pela Palavra, a nova sensação pode uma mudança de comportamento, mínima que seja, poderia ser visível, envolvendo os músculos, gestos e expressões faciais ou oculta pela endocrinologia, neurologia, processos inconscientes que se tornam conscientes.
A Palavra é antes de tudo uma palavra, por isso mesmo já está contida numa representação, daí faz-se necessário compreender a conjunção da Palavra com o que ela designa, criando sentido. Pedir que alguém se desligue de sua língua e fale uma outra que ela não compreende nada, chegando a pronunciar a Palavra, sem saber que pronuncia sua própria salvação, não a fará mais próxima de Deus, provavelmente não lhe fará diferença alguma. Mas tenho certeza absoluta que seu corpo reagirá com o retorno a língua materna, cuja significação permite uma intimidade com a Palavra e o Espírito Santo.
Quando Pedro chora por ter negado Jesus, ele não estava fazendo mais que promover seu próprio espírito, seu velho homem ser vil e caído é uma artimanha discursiva que sustenta-se no desconforto do outro sobre si mesmo, provocado por um encontro com uma consciência que não reconheceu a primeira consciência. Em A Fenomenologia do Espírito (1992) encontramos a dialética do Senhor e do Escravo para descrever este mesmo fenômeno. De forma dramática, Deus é o senhor de escravos, Pedro, o escravo.

O senhor do mundo tem a consciência efetiva do que ele é - [a saber] a potência universal da efetividade - na violência destruidora que exerce contra o Si de seus súditos, que se lhe contrapõe. Com efeito, sua potência não é a união do espírito na qual as pessoas reconheçam sua própria consciência-de-si; enquanto pessoas, são antes para si, e excluem a continuidade com outras, da absoluta rigidez de sua atomicidade. Estão assim em uma relação unicamente negativa, seja umas com as outras, seja para com o senhor do mundo, o qual é seu [nexo de] relacionamento, ou sua continuidade. Enquanto tal continuidade, o senhor do mundo é a essência e o conteúdo do formalismo das pessoas; conteúdo, porém, que lhes é estranho, e essência que lhes é hostil; pois, antes, suprime o que para elas tem valor como essência: o ser-para-si vazio de conteúdo, - e enquanto continuidade de suas personalidades, precisamente as destrói. (HEGEL, 1992, p.34)

            Jesus só é senhor porque não precisa que sua consciência de si seja um outro para Pedro, é negando reconhecer a consciência de si de Pedro, que seria o outro de Jesus, que o discípulo buscará reconhecimento na alienação de sua própria consciência. Tomando-se como medida das coisas, e poderá sê-lo apenas enquanto assinalação de semelhança da Palavra, Jesus não faz mais que aproximar seu discípulo da morte. A ordem das coisas consiste, assim, na igualdade pela aniquilação da diferença. Deus, como nos apresenta Yu Lan, não é uma diferença, pois não há nada que se oponha a ele. Havendo apenas o sentido de unidade-Deus, a diferença vive negativamente a partir do momento em que, em condições de se propor uma física relativista, o tempo é absoluto.
            Jung possui posição complementar a de Hegel:

A verdadeira ampliação da personalidade é a conscientização de um alargamento que emana de fontes internas. Sem amplitude anímica jamais será possível referir-se à magnitude do objeto. Por isso diz-se com razão que o homem cresce com a grandeza de sua tarefa. Mas ele deve ter dentro de si a capacidade de crescer, se não nem a mais árdua tarefa servir-lhe-á de alguma coisa. No máximo, ela o destruirá. (2014, p.124).

Entretanto, podemos ver que Yu Lan insiste nas provações:

Normalmente encaramos as provações como motivo de tristeza; quando chegam, murmuramos, dizendo que não as podemos suportar. Mas a Palavra diz que tais provações são por breve tempo, apenas o tempo necessário para alcançarmos a salvação de nossa alma. Por isso, ao sermos afligidos por diversas provações, lembremo-nos de que a aflição de hoje nos levará à salvação completa. A tristeza de hoje é leve e momentânea, em comparação com o peso de glória por vir (2010, p.23-24).

            Ainda pela interpretação de Yu Lan no capítulo final: Os escritos de Pedro, pensando que Jesus é o dominante na relação, ele aplica sua palavra por violência à consciência na promessa da salvação que se revelará num tempo último. Inscreve-se na consciência um poder disciplinar que faz Pedro pensar que agiu de forma errada, que podendo destruir Pedro, é reprimida e passa a vigorar no inconsciente. A meditação que Pedro faz dos seus erros não o levaria a solucionar seus complexos, pois ele foi levado a pensar que possui um complexo e que ele deve ser resolvido adotando a salvação, e este sim é o único complexo que Pedro desenvolverá por se tratar de uma relação baseada na negação de Pedro por Jesus, ou ainda, das projeções dos conflitos de Jesus em seu discípulo.
            Posso dizer de forma mais cômica: Pedro deverá suportar as provações porque no final de tudo não restará nenhum Pedro para sentir. E se todos compreendemos a situação, não há nada de cômico nisto. Como se não fosse suficiente, Yu Lan nos traz a possibilidade da diferença e da comunhão, mesmo em meio a essa carnificina mental:

O julgamento de Deus começará por Sua casa, a igreja; assim, todos os cristãos terão de comparecer perante esse tribunal. Se aproveitarmos as várias provações para que a vida divina cresça em nosso interior, por meio de invocar o nome do Senhor a todo o tempo, ao comparecermos perante o tribunal de Cristo, estaremos aprovados, e seremos não somente louvados, mas também receberemos glória, a glória do reino milenar, como co-reis juntamente com Cristo. (YU LAN, 2010, p.25-26).

Após afirmar a negação de si pela qual todos que pronunciam a Palavra devem passar obrigatoriamente, parece estranho que todos continuem a existir em comunhão, a não ser que residam na memória de Deus. E de que serve a memória num mundo atemporal? As coisas passam a existir em si mesmas conjuntamente, sem desenvolver uma consciência. Ela surge do encontro com o outro.
Pedro segue errante até o fim do livro. bastava invocar o nome do Senhor para salvá-lo. “Devemos invocar esse nome em qualquer situação, principalmente ao ler a Bíblia, para que extraiamos dela Espírito e vida.” (YU LAN, 2010, p.26).
E tudo se encerra com:

Em Romeno 8:26 vemos que a melhor oração não é aquela que não sabemos o que dizer, não sabemos como orar. Então começamos a invocar e pedir ao Senhor: “Ó Senhor, não sei como orar, não sei sobre o que orar; não sei como louvar-Te nem como agradecer-Te. Só sei invocar Teu maravilhoso nome: “Ó Senhor Jesus, quero estar em Tua presença”. Então o Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis, e já não somos nós que oramos, mas o Espírito ora em nosso lugar. Cristo como incenso deve ser acrescentado à nossa oração, para que, assim suba um aroma agradável a Deus quando orarmos.
Portanto, do início ao fim de nossas vida cristã, do início ao fim de nossa caminhada com o Senhor, devemos invocar Seu nome! (YU LAN, 2010, p.28).

            Se nos restavam quaisquer dúvidas se o espírito do fiel tinha validade alguma durante todo o processo de transformação, acabamos de confirmar que ele nada sabe, precisa ser guiado por um Mestre, que é Jesus, faz do Espírito sua voz e de Deus seu desejo. Só pode ser compreendido por Deus enquanto doe ao Espírito, sua linguagem com Deus, que só encontrará na Palavra, a linguagem com Jesus, que será julgado na casa de Deus, a igreja.

A Salvação como individuação:

            De uma forma menos dramática, em que Jesus é realmente o salvador e não um mal caráter, como o descrevi no conflito com Hegel, principalmente, não faz diferença ser aniquilado, deixar de existir, ser ou não ser consciência se no último tempo Deus corresponderá a todas as vontades e não há como fugir disso. Pensar desta forma seria cair num niilismo porque nascemos seres pensantes e gostaríamos de viver como as plantas. Nascer destinado a Deus é tão provável e certo quanto nascer com potencial de desenvolver funções do pensamento.


A trindade: elemento constante na Psicologia das Religiões, segundo Jung (2014).


            Partindo deste último princípio, a religião, como propõe Jung, nos direciona para o pertencimento com o todo. Neste caso, Deus será tudo e nós teremos participado desta formação, uma vez que nos oferecemos como receptáculos divinos. Não haveria como dizer que não é de livre e espontânea vontade, por mais que aquele velho poder disciplinar da Palavra mantenha-se como argumento pertinente.
            Pensando nos personagens bíblicos como símbolos do inconsciente, Pedro atende ao arquétipo do Cuidador: se preocupa com Jesus e não quer vê-lo crucificado, o que o faz parecer invejoso e ingrato, além de satânico, como menciona Yu Lan.
             Jesus está sempre ligado à Criança Divina: o prodígio, nascida de uma situação extraordinária, podendo fazer referência a um duplo nascimento: nascido da água batismal e do espírito, ao mesmo tempo humano e divino. Altman acrescenta que

Sua imagem na cruz é um símbolo múltiplo de vida, morte, ressurreição e salvação. Esse tipo de sonho ocorre em momentos críticos da vida: talvez próximos à morte ou quando a busca de um caminho pessoal ou espiritual seja uma preocupação essencial.
(...) Jesus também pode exprimir o desejo de alcançar a paz interior e servir aos outros (...). (2003, p.58).

“O próprio Cristo é o símbolo supremo do imortal que está oculto no homem mortal” (JUNG, 2014, p.125). Sendo Cristo o Espírito Santo em Jesus, que será compartilhado com os demais homens.
Jung reserva uma situação interessante para Paulo: “o aparecimento de Cristo a Paulo não proveio do Jesus histórico, mas sim do seu inconsciente” (p.124). Paulo teria sido acometido por uma função transcendente, derivada de uma imagem primordial, cujo propósito será o de receber a luz forte do Espírito Santo, um choque provocado pelo símbolo inconsciente que emerge e aos poucos torna-se consciente com o auxílio da Ananias, representante do arquétipo d’O Mágico, que cura Paulo de sua cegueira inconsciente.
Jacó “pode simbolizar as altas aspirações” (ALTMAN, 2003, p.368) pela sua ambição em edificar a igreja para disseminar o Espírito, e somente assim, permitir que todos alcancem Deus se estiverem dispostos a se sacrificar para isso.
            De uma forma geral, “Figuras sagradas representam altas aspirações religiosas, podendo oferecer um estímulo à busca pessoal da realização espiritual." (ALTMAN, 2003, p.59).
O Espírito Santo, na simbologia junguiana, admite ser o inconsciente que desperta a função transcendente, enquanto Jesus é o consciente sempre em diálogo com o inconsciente, numa atitude reconciliadora, e Deus, a individuação completa, representação do Self.


Conclusão:

No fim das contas, como podemos ver, Identificar pelo invocar não foi uma perda de tempo. Foi uma leitura bem agradável, por mais que eu tenha insistido em refutar a ideia original do livro: negar a si mesmo como promessa de algo maior. Vemos na sociologia das culturas de massa, na filosofia existencialista, na psicologia analítica e na educação corporal que negar nossa identidade ou encontrar dificuldades, e até impossibilidade, de expressá-la não deveria acontecer de forma tão natural. Afirmar a natureza humana é muito tendencioso, partimos para especulações imaturas, como achar que somos desde o berço gananciosos, preguiçosos, inconsequentes, profanos, e tantas outras qualidades que dizem ser inerentes. Dong Yu Lan não me convenceu que esta é a forma pela qual eu deveria invocar o nome do Senhor, Jung é muito mais atrativo neste aspecto, e ele nem pede que eu ouça a Palavra.
Podemos atribuir o insucesso de Yu Lan não ao cristianismo em si, mas ao próprio Yu Lan por se deter em linhas que fazem referência direta ao século XVI e ao período do Renascimento, quando começavam a surgir as ciências humanas, muito diferentes de como as conhecemos hoje: foram necessárias condições epistemológicas para deixar as regras da Semelhança serem sinônimo de Ordem; abandonada a divinatio, passou-se o período clássico a vigorar sob a identidade e a diferença das coisas para constituir um ordem classificatória com vista ao sentido comum, que só poderia acontecer com uma linguagem que se dispusesse a analisar ao invés de buscar o mistério escondido das coisas. É somente no período moderno, segundo Foucault, que passa a existir o homem enquanto sujeito e objeto das ciências humanas; enquanto fundamento de suas pesquisas e objeto de seu próprio saber, por essa mesma razão, entende-se o homem como o duplo empírico-transcendental. A própria natureza humana, como se pretendia explicar em épocas anteriores, principalmente com uma filosofia ou teologia, será agora compreendida como condições estruturais que permitem o surgimento de determinados saberes, inclusive, o homem enquanto saber. Seguindo a lógica, o homem torna-se necessário para se pensar e produzir saber, daí vem seu surgimento.
É pensando o homem dentro de sua finitude que encontramos posturas humanistas como a de Jung e Paulo Freire, em que não precisamos negar as consciências. O surgimento do homem nas ciências sociais traz a possibilidade de pensar condições em que o homem produz saber; de épocas que o homem produz saber sobre si mesmo sem questionar sob condições ele produz seu saber, visto que a natureza parece o reflexo de Deus – a Verdade.

Referências:

ALTMAN, Jack. 1001 Sonhos: Guia ilustrado de sonhos e seus significados. São Paulo, SP: Publifolha, 2003.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Ed. Especial. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira 2012.

FOUCALT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Ed. 8. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2000.

HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito: parte II. Petrópolis, RJ: Vozes, 1992.

JUNG, Carl Gustav. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Ed. 11.Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

YU LAN, Dong. Identificados pelo Invocar. Ed. 2. São Paulo, SP: Árvore da Vida, 2010.


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