Páginas

sábado, 15 de outubro de 2016

Pedagogia da competição: qual o problema? (Parte 2)

1ª Atualização em 23/12/2017:  complementação da argumentação de O mito de uma economia neoliberal com cidadania com acréscimo de Nicolau (2017) à bibliografia.

O mito da melhoria nas condições de trabalho:

            Quando nos descentramos dos estudos sobre o campo escolar, podemos aludir o campo do trabalho em sua generalidade, não apenas da realidade dos professores, e perceber como ele vem se organizando a partir do sistema econômico capitalista baseado numa economia informacional e global que, a partir de Castells (apud AFONSO & ANTUNES, 2001), pode ser compreendida da seguinte forma:
É informacional porque a produtividade e competitividade das unidades ou agentes desta economia (quer sejam empresas, regiões ou nações) dependem fundamentalmente da sua capacidade de gerar, processar e aplicar com eficácia a informação baseada no conhecimento. É global porque a produção, o consumo e a circulação, assim como os seus componentes (capital, mão-de-obra, matérias-primas, gestão, informação, tecnologia, mercados) estão organizados à escala global, quer de forma direta, quer mediante uma rede de vínculos entre os agentes econômicos. É informacional e global porque, nas novas condições históricas, a produtividade gera-se e a competitividade exerce-se por intermédio de uma rede global de interação. (...) O vínculo histórico entre a base do conhecimento-informação da economia, o seu alcance global e a revolução tecnológica da informação é que dá origem a um sistema econômico novo e distinto (p.85).
            A educação, a partir desta nova racionalização econômica, é pedra angular no funcionamento do sistema de produção global/informacional por ser capaz de incorporar no trabalhador suas qualificações para o trabalho, tornando-o altamente produtivo. Além do mais, trata-se de uma educação durável e especializada, difícil de ser reprogramada (termo de Castells). Esta demanda surge da União Europeia com a crise do Estado-Providência, a partir daí são criados documentos oficiais onde se utilizam largamente de expressões como sociedade de aprendizagem, capital humano, sociedade cognitiva, competividade de empresas e produtividade, cujos interesses são tornar os países-membros produtivos economicamente e garantir um status de sociedade justa e igualitária (AFONSO & ANTUNES, 2001).
            A educação estaria voltada, deste modo, para perceber as mutações nas novas organizações de trabalho e a formar um indivíduo que fizesse avançar a competição que move a ideologia econômica dos países, com o risco de separar os trabalhadores entre qualificados e não qualificados, em que os trabalhadores qualificados estão diretamente ligados aos interesses produtivos e competitivos das empresas e corporações, sem contar que estão diretamente ligados a sua ideologia financeira, enquanto os não qualificados devem passar por programas de educação e formação oferecidos pelos próprios empregadores. Sem contar a diferença entre trabalhadores programados (ou especializados) e genéricos (classificação de Castells), em que o segundo tipo está mais vulnerável e é mais dispensável que o primeiro.
            Com o afastamento do Estado-Providência os trabalhadores passam a se responsabilizar pela sua educação e a “aceitarem os empregos que lhe são propostos, sob pena de perderem subsídios do Estado” (AFONSO & ANTUNES, 2001, p. 89). Os efeitos desta concepção liberal acabam por extinguir a organização coletiva e a solidariedade entre os trabalhadores, que se veem cada vez mais individualizados e com seus interesses e valores modificados para sobreviver dentro de uma sociedade do trabalho em que desaparecem os direitos sociais do trabalhador.
            A educação deveria ser uma aprendizagem contínua sem fim, a possibilidade de um sujeito se reformar a partir da reflexão de si mesmo, de imaginar seus projetos, seus desejos, suas vontades, suas motivações e ter acesso às condições materiais e simbólicas que permitam que ele possa sentir-se realizado com aquilo que ele é, condição de existência promovida pela aprendizagem de conhecimentos, bem como por sua criação ou construção nas relações e interações com o outro (ambiente, instituição, cultura, pessoa, por exemplo). Esta educação é deixada de lado com a interferência de políticas neoliberais que incentivam a competição; desestabilizam as ecologias humanas (e até ameaçam a sustentabilidade de qualquer tipo de relação) por substituir um wellfare state por um workfare state, no raciocínio de Afonso & Antunes (2001).
            A dicotomia entre formar um cidadão/formar um trabalhador, inconciliável na visão de alguns teóricos, é solucionada, ainda com base na competição, por aqueles que defendem a terceira via, que buscaria formas de superar esta dicotomia justamente por nos encontrarmos num mundo globalizado que não pode abrir mão da competição para a produção, mas se preocupa com as condições sociais dos indivíduos que participam nela. March (1991) pode ser considerado um desses teóricos da terceira via (ainda que não declarado) na tentativa de conciliar os interesses de pessoas numa organização e dos códigos da própria organização. Ele argumenta que ambos os sentidos de exploração - exploitation e exploration - são desejáveis e essenciais a qualquer tipo de organização, sendo que “Exploration inclui coisas captadas por termos tais como pesquisa, variação, assumir riscos, a experimentação, o jogo, a flexibilidade, a descoberta, a inovação”, enquanto “Exploitation inclui coisas como refinamento, escolha, produção, eficiência, seleção, implementação, execução” (MARCH, 1991, p.71tradução livre).
            Pensando em questões de aprendizagem, formação e educação, exploration possui uma baixa produtividade à longo prazo, não garante habilidades apropriadas para o trabalho a ser realizado e permite que o indivíduo se afaste dos objetivos da organização, mas permite uma melhor adaptação ao ambiente organizado, surgem inovações no processo produtivo e a experimentação de habilidades, além de ser mais provável que ele adeque suas crenças aos códigos da organização por ter-se utilizado da reflexão para saber se isto poderia ser bom ou não para ele, sendo capaz que este indivíduo tenha algo a contribuir com a organização.
            Em contrapartida, permitir um explorer (no sentido de aventureiro) na organização dissipa aquilo que está instituído, organizado, regrado e que identifica essa organização enquanto organização. Em outras palavras, a algo que torna a Google o que ela é, assim como a Microsot, o Santander, etc. Existem aspectos que precisam ser preservado e são inegociáveis, por isso March (1991) defende a exploitation como contra balanço, um princípio de autoridade que mantém as coisas como elas são e se espera que sejam.
            March (1991) propõe o aprendizado mútuo como modelo de desenvolvimento do conhecimento entre a socialização esperada pela organização e crenças pessoais dos indivíduos, que dispõe de: a) uma realidade externa independente de crenças que incorram a partir dela; b) crenças de um grupo de indivíduos acerca dos códigos dessa organização, recebidos como verdade; c) modificações nas crenças dos indivíduos a partir de sua socialização na organização e aprendizado de um novo código de crença; d) adaptação da organização às crença dos indivíduos, pensando que a diversidade de crenças criam múltiplas realidades acerca da organização e ela deve adaptar-se para atender as várias percepções e expectativas que os indivíduos criam acerca dela.
            O resto do artigo de March (1991) consiste em dados estatísticos que se traduzem nos efeitos de uma socialização rápida (preferível para a produção) ou de uma socialização lenta (preferível para incorporação dos valores e códigos); aprendizagem em grupos heterogêneos é preferível a grupos homogêneos, pois garante diversidade de pensamentos, de ações e contribuições, desde que sejam misturados grupos de aprendizagem rápida e aprendizagem lenta; e ainda ações que seriam preferíveis tomar em situações de recrutamento de um indivíduo ao código de crenças da organização e quando turbulências modificam o ambiente a ponto de impedirem a adaptação (ou o aprendizado) do indivíduo.
            De qualquer modo, esta ideia da competição está no cuidado para competir. A competição não precisa ser sempre rápida, intensa e produtiva, este tipo de competição é auto-destrutiva, pois as organizações, instituições, corporações e mesmo o Estado lidam com recursos escassos (e não acredito que esta preocupação envolva uma ecologia da natureza). Mach (1991) acredita que toda produção pede competição, mas existem formas produtivas de se competir e formas destrutivas, por isso exploration (aprendizado lento) e exploitation (aprendizado rápido) devem ser formas de conhecimento em equilíbrio.
            Esta posição de Mach (1991), como de Afonso & Antunes (2001), propõe uma ecologia da competição, como quem diz, “já que estamos num mundo globalizado, vamos tentar viver de forma harmoniosa”. Uma proposta mais interessante e ousada do que aderir à globalização ou aos ideais de produtividade e competitividade é uma proposta socialista de Mészáros (2007) de não aderir à lógica do capital e nem de usar qualquer uma de suas ferramentas, pois isso significaria a ínfima possibilidade de retornar a um cenário inconveniente que algum dia já existiu.
            Por mais democrática e atrativa que possa parecer a assertiva de Mach (1991) sobre a organização de um local de aprendizagem onde todos tenham seus sistemas de crenças relevados, deve-se pensar que a propriedade não pertence a todos, a propriedade possui proprietário e existe uma realidade que não pode ser modificada, que é a realidade percebida pelas crenças e verdades do proprietário que detém os maios de produção, e ele só os detém porque os trabalhadores não detém nem propriedade nem meios de produção, por isso eles devem servir aos interesses do proprietário que troca salário por força de trabalho (MARX, 1996).
            Ao falamos de produtividade, falamos de mercadorias. Ao falarmos de mercadorias, falamos de preços que se assemelham ao valor de uso e a quantidade da força de trabalho investida na produção da mercadoria, que é quando a lógica recai sobre o funcionamento do capital pela mais-valia: a exploração da força de trabalho do trabalhador pelo pagamento de uma parcela menor que o total de tempo e energia dispendida no processo de produção, donde as demais parcelas são o lucro apropriado pelo empregador, que também é a força de trabalho não paga do trabalhador (MARX, 1996).
            Por que não fazer como nas escolas que fazem gestão democrática ou privilegiar economias alternativas, como é o caso da economia solidária, em que todos os envolvidos não mantem relações hierárquicas, sentindo-se mais a vontade para cooperar, decidir e exprimir suas ideias? Parte do mito da melhoria nas condições de trabalho acontece pela ideia de que é necessário ter alguém especializado e suficientemente educado para distribuir tarefas, caso contrário os trabalhadores não saberão se organizar. Em parte é verdade, mas preenchendo a lacuna: eles não se organizarão e usarão as técnicas e habilidades exigidas na relação empregador-empregado, pois eles passam a decidir conjuntamente como acontecem os tempos e espaços de trabalho. Os trabalhadores apenas não seguem a organização do sistema de valores e crenças do empregador, e é daí que surge este mito: há uma divisão de pensamento entre trabalhadores genéricos e trabalhadores altamente produtivos, sendo que os últimos carregam a ilusão de serem realmente capacitados, e esta forma só é naturalizada no senso comum quando este empregador ou grupo de empregadores que querem exercer sua dominação levam os trabalhadores (genéricos e altamente produtivos) a crer e afirmar seu discurso como se fosse uma verdade, que funciona como ideologia a favor do grupo dominante;
            Nesse discurso está implícito a institucionalização da educação: onde existe boa educação e onde existe má educação, ou, onde está a educação legítima e que vale a pena ser aprendida. A dominação leva o dominado a acreditar que ele não possui educação e que depende de alguém numa posição superior para educá-lo, permitindo que aconteça uma violência simbólica, cuja função é medir forças entre os valores e crenças dos dominados e dos dominantes de forma que os dominantes consigam subjugar (através da educação) as vontades e desejos que vigoram em seus interesses.
            Trazendo ao tema os profissionais da educação, não se pode negar uma precarização do trabalho que existe com as políticas neoliberais, que prestigia o aspecto prático e técnico da formação. Representantes deste modelo, como a Teach for America forma seus professores em dois meses (FREITAS, 2012) e depois são mandados para áreas de risco para mudar a realidade das crianças que vivem situações de pobreza, violência e conflitos sociais; o trabalho é realizado sob o objetivo declarado (SAVIANI, 1997) de prezar o “desenvolvimento humano”. Apesar do slogan benevolente,
O problema disso tudo é que eles [organismos multilaterais, como a ONU e o Banco Mundial, cujas metas globais são apoiadas por ONGs, como a Teach for America] não pretendem resolver as causas estruturais das injustiças que alegam combater. Assim, as metas globais de desenvolvimento (que aparentam se preocupar com a qualidade de vida, estabelecimento de objetivos para educação, saúde, inclusão social etc.) têm como interesse garantir que os índices de produtividade continuem crescendo, explorando cada vez mais o trabalho das pessoas, que seguem tendo uma vida de grandes sacrifícios e dificuldades. Assim, a meta principal desses organismos é perpetuar as condições para que o capitalismo e suas desigualdades continuem existindo (FUNDAÇÂO ROSA LUXEMBURGO, p.10, destaque do autor).
             Por estas e outras razões há uma aderência a políticas de responsabilização do professor, a avaliações constantes e exposição dos resultados, o profissional da educação passa a ser visto como um trabalhador genérico, facilmente substituível, amputável, descartável e desvalorizado, por isso, desmoralizado.
            A educação boa, com a desmoralização da profissão de professor e educadores, passa ser a educação oferecida por empresários, que ensinarão a partir do paradigma das competências e excelências esperadas do trabalhador num cenário competitivo e produtivo para gerar lucros aos grupos dominantes. Cada vez mais o discurso de que o privado é melhor que o público cresce por assentar-se na meritocracia, o que possibilita privatizações do bem público alegando melhor gerência dos recursos, que de uma forma compacta, acaba no Brasil, no Chile e nos Estados Unidos, só para dar alguns exemplos, implicando em:
  • ·         Relação empregatícia instável pela flexibilização das leis trabalhistas;
  • ·         Baixos salários pensados pelos cortes de gastos (por isso professor trabalha em duas escolas diferentes, faz turno e contraturno, etc.);
  • ·         Liberdade de cátedra reduzida com o ensino apostilado (empresário ditando as regras para ensinar);
  • ·         A competição entre professores trazendo a sensação de que a atenção deve ser redobra às situações de perigo (notas baixas dos alunos, professores que foram bem avaliados);
  • ·         Autoestima e integridades profissional e pessoal ameaçadas;
  • ·         Temperamento irritadiço, insatisfação e sentimento de irrealização do profissional;
  • ·         Atitudes antiéticas do profissional prestigiando resultados (dar resposta de uma questão aos alunos no momento de prova);
  • ·         Concorrência entre valores pessoais e valores necessários para sobreviver no mercado de trabalho;
  • ·         Reafirmação da hierarquia e de relações de poder.
            Eu seria mais dramático e diria que este é um quadro geral para qualquer profissão que toma as políticas neoliberais como norte, uma vez que acaba desresponsabilizando o Estado de seu papel de garantir condições sociais justas a partir de um regime democrático para substitui-lo pelo livre mercado, a concorrência, a competição, a produtividade, capital humano e o que valha para contribuir para uma globalização dos interesses do capital.
            
O mito de uma economia neoliberal com cidadania:

            O último mito firma-se no antagonismo existente entre competição e cidadania. Esta última é entendida como o direito a ter direitos, a termos responsabilidades políticas e dever lutar por elas, a prezar a participação ativa e unir interesses que serão discutidos e ouvidos nos ambientes de relevância para esses temas independente das constituições fenotípicas, da trajetória social, dos valores, crenças e motivações do sujeito de direitos.
            Brandão (1984) percebe uma educação voltada para a produção e para o consumo que cria uma relação de dependência entre o cidadão e os serviços que os representantes do Estado prestam, donde eles não reconhecem a importância de exercer sua atividade política, posicionar-se contra os governantes ou reivindicar seus direitos; os cidadãos formados nesse sistema de ensino tornam-se conformados, passivos e consideram-se clientes do Estado, como se fosse uma relação entre vendedor-comprador. Nesta relação o comprador não pode exigir que o vendedor venda algo que ele não tem, mas quando esta lógica é quebrada não importa se o Estado quer ou não, pode ou não pode oferecer educação, saúde, transporte, saneamento básico, ele deve criar condições para que o direito exigido pelo cidadão aconteça.
            Desta forma justificamos tantos votos brancos, nulos e abstenções das eleições para prefeitos e vereadores no Brasil. Ainda que esta estratégia possa ser entendida como insatisfação ao sistema político brasileiro, também carrega uma passividade de um cidadão que acredita no discurso cabal do senso comum de que política só tem canalha, ladrão, corrupto, aproveitador e que fazer política não adianta para nada senão roubar, sendo mais proveitoso distanciar-se desse nicho e contrair outras preocupações que satisfaçam seus planos pessoais e familiares (amostra de individualização). Por existir pessoas (políticos) que não sabem administrar o bem comum, seria muito melhor que ninguém dependesse de ninguém, já que é natural do ser humano querer ter o que não é seu (e é assim que se cria e difunde um mito poderoso que apenas se perpetua por não ser devidamente investigado).
            Os motivos para não votar ou votar em branco/nulo são tão diversos e criativos que o “fazer política” torna-se um ato de resignação com estratégias que em nada ameaçam o poder dos governantes. A ideia de cidadania sofre reinvenções no seio da população que exerce seus direitos (SILVA, 2004), inclusive pensar que votar em ninguém é melhor do que votar em alguém. Na medida em que isto significa participação, também significa contradição, já que o ato político tem um efeito particular de não envolvimento com nenhuma tragédia que aconteça no cenário político; ao invés de se envolver com o que é público, o cidadão-consumidor escolhe não ter peso algum nas decisões esperando que alguém em algum lugar, como num romance, venha montado num alazão e diga “Estes serviços não podem ficar assim! Você agiu certo em não votar; convocaremos novas eleições com novos representantes sem históricos de corrupção e que realizem pesquisas nos bairros que ficariam sob sua incumbência para que os ideais do povo sejam seus ideais” e de alguma forma, sem muito esforço por parte do sujeito de direitos, isto aconteça.
            Quando deixamos de comprar um produto de uma determinada marca, seu produtor pode falir, pois esta é uma lógica do mercado. Os representantes políticos não estão falindo por alguém deixar de fazer uso de suas políticas ou deixando de fazer seus papéis de cidadãos, os impostos continuam sendo pagos do mesmo jeito, parte desses impostos é revertido em salário e o restante é convertido em subsídios para execução dos projetos desenvolvidos pelos representantes nas eleições. Se os cidadãos estão fiscalizando ou não o bom uso da verba pública isto não faz dos representantes políticos menos políticos, e se as ações deles não são representativas eles não ficam menos políticos também.
            Lógica de mercado para eleições não funciona em insatisfação popular contra governos. A lógica de que o Estado ofereceu algo que eu não quis deve ter como resposta aquilo que eu quero receber do Estado, pois ele, por obrigação a uma constituição baseada na vontade do povo brasileiro, deve atender às expectativas de seus cidadãos, que por sua vez são defendidas por um sistema de representação, ou seja, os governantes representam grupos menores.
            É a impossibilidade de atender a todos os interesses que fortalece concepções neoliberais e traz o questionamento sobre os regimes democráticos com Estado soberano serem possíveis estratégias de grupos dominantes de dar a ilusão aos grupos dominados de que eles participam da política, embora estejam destinados, por uma relação de forças baseada principalmente na própria forma do sistema político que impede que seja de outra forma, dos dominados serem sempre dominados.
            A diferença, entretanto, deve permanecer na obrigatoriedade da realização de um direito e em como os cidadãos reclamam seus direitos. Se um cidadão vê no seu direito uma mercadoria, ele não tardará em encontrar outras formas de conseguir esse direito (como pagar uma escola particular para seus filhos ou ter um convenio com um centro de saúde privado), e aí sim o privado passa a ser melhor que o público, visto que o privado faz tudo o que o público não faz (atender aos interesses e necessidades de um grupo ou classe), mas ele só é melhor porque os cidadãos abandonam o bem público e esperam que seus representantes façam algo que eles não poderiam fazer se esse cidadão não pronuncia de forma explícita sua insatisfação. E com a adição do poder na política fica ainda mais complexo, pois os representantes podem escolher ignorar seus representados mesmo que gritem as incongruências e ineficácia dos governos e governantes. E ainda assim uma atitude passiva não transforma a realidade política.
            Se utilizarmos números: João Doria foi eleito com 3.085.187 votos (53, 29% dos votos diretos), na mesma eleição constam 367.471 votos brancos, 788.379 votos nulos e 1.940.454 abstenções, que somados são 3.096.304, ou seja, tem mais votos brancos, nulos e abstenções do que votantes do João Doria, sendo que São Paulo foi a capital que mais teve abstenções, segundo o Tribunal Superior Eleitoral (BRASIL, 2016), em divulgação on-line. A população apta a votar era de 8.876.324 pessoas, se todas elas votassem (e considero que quem votou em branco, nulo ou se absteve não votaria no Doria), a porcentagem de votos diretos do Doria cairia para 34,75%, e a votação passaria para o segundo turno.
            Podemos supor, de forma bem romântica, que Fernando Haddad recebesse todos os votos brancos, nulos e abstenções, isto é, que os cidadãos-consumistas dos serviços do Estado exercessem o voto direto. Os antigos 16,70% dos votos (967.190 de um total de 5.780.020 votos diretos) tornar-se-iam 45,77% (4.063.494 de um total de 8.876.324).
            Podemos recriar, ainda, um cenário imaginário em que as abstenções diminuíssem em 50% e houvesse apenas 20% dos votos nulos e brancos que constam nas estatísticas, somando 970.227; 630.702,2 e 313976,8 votos diretos, respectivamente, num total de 1.915.906 votos aproveitados que somados aos 5.780.020 já existentes totalizam 7.694.926 votos diretos; 73.494,2 votos brancos; 157.676,8 votos nulos e 970.227 abstenções. Vamos supor, também que Haddad receba apenas 30% destes novos votos diretos, Doria receba 10%, Erundina 20% e o Russomano fique com 40% dos votos. A nova configuração seria a seguinte: Doria (42,59%), Russomano (20,22%), Haddad (20,03%), Marta (7, 63%, nenhum voto adicional) e Erundina (7,36%).
            Doria não alcança 50% dos votos e é convocado um segundo turno com menos representantes. É interessante perceber como Russomano supera Haddad na colocação por quantidade de votos e Erundina agora possui tantos tantos quanto Marta, situação que não aconteceu na verdadeira votação. Só não melhora a situação de Henrique Áreas, que nesta situação hipotética fica com 0,01% dos votos (de um total de 5.780.020 votos diretos), ao contrário dos votos reais, que foram 0,02% (de um total de 7.694.926 votos diretos no cenário hipotético).
            Para convocar um segundo turno seria necessário aproximadamente 400.000 votos diretos, isto é, um candidato que tivesse mais votos que a Erundina e menos votos que a Marta. Estes votos poderiam ter vindo das abstenções, o que significaria 20,61% de abstenções decidindo seu representante, que também significa apenas 4,5% da população de São Paulo apta a votar, votando de fato.
           Ainda que o novo turno não signifique vitória de algum outro representante em função do Doria, traz novas expectativas e possibilidades no cenário político que poderiam levar a reviravoltas num segundo turno. Se nesta mesma configuração hipotética de apenas 50% de abstenções e 20% de votos nulos e votos brancos, todos recebessem os novos 1.914.906 votos distribuídos entre os onze candidatos, ainda assim haveria um segundo turno, pois Doria não teria alcançado os 50% dos votos, estaria com 42,6% dos votos, antes com 53,29%; Haddad teria 14,83% ao invés de 16,70% e Henrique Ária teria 2,27% dos votos em relação aos esperados 0,02%. O aumento na quantidade de votos diretos faz diferença tanto nas aparências daqueles que receberam poucos votos quanto desfavorece os candidatos mais próximos dos 50% necessários para serem eleitos, e não é necessário mais que 4,5% da população para que isto aconteça. 
            Se uma população como a da cidade de Mauá votasse, o cenário de eleição seria diferente. Seria mais difícil para aqueles que recebem a maioria dos votos serem eleitos, pois uma minoria demonstra seus interesses a partir do voto, se posiciona como cidadão numa ação direta, de outro modo, todas as ações são indiretas, seu voto são os votos dos outros.
             Sem mencionar que a Câmara dos Vereadores faz diferença na aprovação dos projetos de lei do prefeito, logo, os cidadãos deveriam preocupar-se em votar vereadores com alinhamento político igual ou semelhante ao do prefeito. Da mesma forma, o voto para presidência pede um alinhamento político com o voto de deputado para garantir sustentação parlamentar. As eleições para o Executivo parecem dominar a atenção dos eleitores a ponto de não se lembrarem de seus votos para o Legislativo. Nicolau (2017) apresenta algumas estatísticas do Estudo Eleitoral Brasileiro (Eseb) de 2014, na pesquisa os eleitores são solicitados a dizerem em quem votaram para deputado federal: "46% não lembram ou não sabiam responder, 33% listaram nomes de algum candidato e 22% disseram ter anulado ou deixado o voto em branco" (NICOLAU, 2017, p.65). Na consulta sobre os votos para deputado estadual, dessa mesma pesquisa, os resultados foram respectivamente 49%, 29% e 22%. Esses resultados geram a seguinte consideração: "o fato de cerca de metade dos eleitores já não se lembrar do voto para deputado federal e estadual poucas semanas após o primeiro turno é um sinal da reduzida importância que essa opção tem para eles", bem como as eleições para o Legislativo de uma forma geral (NICOLAU, p.66). 
               Ainda utilizando a pesquisa do Eseb-2014, citada por Nicolau (2017), 68% dos eleitores responde não ter predileção por um partido. Mesmo aqueles que dizem possuir uma predileção, com PT (18%) e PSDB (7%) como os principais partidos da pesquisa, mais de 30% desses eleitores votam em outros partidos. Por fim, passa a existir uma incongruência entre os votos para deputado federal e para  presidente em 34% das respostas no Eseb-2014 demonstrada por Nicolau (2017), considerando apenas as respostas dos eleitores que lembram-se dos seus votos, com 40% de votos nulos ou brancos. Sugiro um comportamento eleitoral idêntico para as eleições municipais anteriormente descritas.
            Se votos brancos e nulos nãos são válidos para eleger um candidato (BRASIL, 2014) eles não possuem poder de decisão, e a educação competitiva tende a fazer o cidadão utilizar estratégias em que ele desconhece o funcionamento de outros campos que não sejam o saber-fazer e o tecnicismo do trabalho, por isso, esvazia, como foi o exemplo, o debate político de discussões que importam e enchem-no de futilidades e falsas convicções que não levam a mudança alguma. O cidadão perde de vista as transformações e como fazê-las (SILVA, 2004), pois sua realidade, no mundo competitivo, restringe sua atenção para o que o faz ascender na hierarquia, como progredir, o pensamento é em direção ao que ele sabe que funciona, e presume que funciona porque todos fazem deste jeito. O sujeito faz porque “sempre foi assim” (BOURDIEU, 2001).

Considerações finais:

Esses mitos tornam-se mais fáceis de serem difundidos quando nos defrontamos com as fatalidades de se viver num mundo globalizado – “O mundo inteiro funciona assim, não tem outro jeito” – ou quando fazemos apelo à ignorância – “Me diga um país no mundo que não seja competitivo e tenha um bom IDH”.
Esta forma de pensar é típico de um país colonial que ainda vê na terras europeias as melhores formas de se viver, modelando-se a imagem de seus antigos proprietários e querendo fazer como eles fazem porque gostaríamos de viver como eles vivem. Parece muito menos viver dignamente como eles vivem, mas é exatamente viver a dignidade que eles vivem; e como todo país tem seus problemas e conflitos, não podemos dizer que os países europeus vivem na plena dignidade, justiça e com cidadãos exemplares, ainda que a França seja  utilizada como exemplo de um povo que luta por boa educação e nós tenhamos aproveitado muito da pedagogia e da filosofia francesa para construir a educação brasileira. 
Perdemos de vista as vivências baseadas na exploration (MARCH, 1991), de aventurar-se, de descobrir, de inventar e inovar as coisas, fazer as coisas no nosso próprio ritmo, produzir coisas que são boas para nós porque nós fizemos, sabemos o que vivemos e podemos mudá-las sem maiores dificuldades, uma vantagem sobre os meios de produção (MARX, 1996; MÉSZÁROS, 2008), sem precisar recorrer à competição.
A política e o exercício da cidadania envolvem tanto mais exploration quanto exploitation dos conhecimentos. Existe uma realidade que é constitucional e de direitos sociais e imutáveis, e mesmo assim, se fosse um acordo entre uma gama significativa da população poderiam haver mudanças neste realidade (in)tangível. A cidadania, entretanto, é fundamental, pois se baseia numa educação essencial (MÉSZÁROS, 2008) que faz do sujeito um ser crítico e não alienado. Não há escapatória para qualquer mudança, de forma dialogada, que não seja pela cidadania.
A escola, instituição formal de educação, não é a solução de todos os problemas sociais, econômicos e políticos como governos e governantes imaginaram e até imaginam (AFONSO & ANTUNES, 2001; SOBRAL, 2000), pois a sociedade não se constitui de um único sistema formal, também não é uma instituição formal que será capaz de formar sem erros os cidadãos, pois formar sem erros (ou formar mentes) nos leva a crer que saímos acabados da escola, quando na verdade ela nos apresenta algumas possibilidades de educação e de (des)construção (em todos os sentidos). É pela educação não ter fim, acabar só na morte do último par de neurônios de um sujeito, que ela deve ser essencial e não formal, como diz Mészáros (2008), e com isto quero dizer que existe educação fora da escola. A escola pública não deve ser toda a educação, mas deve ser também uma educação.
A escola pública é, e digo sem pestanejar, um dos primeiros locais em que a criança entende o que é conviver com diversidades, de ver e sentir o outro. É onde ela encontra um conflito e não pode fugir para onde quer, e se foge (para casa ou para outro lugar) deve voltar alguma ora e lidar com uma realidade que é inicialmente desprazerosa por não acontecer como a criança espera que ela aconteça.
A cidadania pede conflito, diversidade, alteridade, comprometimento, reciprocidade, respeito e senso de coletividade, além de uma constituição que assegure o direito a ter direitos. Tudo isto aparece de forma confusa no neoliberalismo, na produtividade, na flexibilização de propostas, sob o discurso do capital humano; a competição ameaça de forma considerável a existência de uma democracia deliberativa. Podemos selecionar os campos em que a competição é preferível, como nas empresas, talvez nos esportes (e Bourdieu, numa Sociologia do Esporte, e Adorno, recorrendo a Auschwitz, ainda teriam críticas duras a serem tecidas sobre a competição, principalmente quando remontamos no cenário das competições internacionais o esporte como forma de dominação entre países), mas de forma alguma a política e a educação se interessam pela competição se elas estiverem moralmente envolvidas com uma perspectiva democrática de sociedade e da prática cidadã.
Em todo caso, o cenário educativo traçado pelos órgãos internacionais, empresários e por políticos economicistas se traduz em formar um indivíduo “produtivo no trabalho, subordinado na vida cotidiana, dócil na política” (BRANDÃO, p.189, 1984), por isso, não formam cidadãos.


Referências:

AFONSO, Almerindo Janela; ANTUNES, Fátima. Educação, Cidadania e Competitividade: Questões em torno de uma nova agenda. Cadernos de Pesquisa, n.113, p.83-112, junho/2001.

BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Educação alternativa na sociedade autoritária. In PAIVA, V. (org). Perspectivas e dilemas da Educação Popular. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1984.

BRASIL. Eleições 2016: São Paulo foi a capital com o maior número de abstenções no país (Atualizada). Tribunal Superior Eleitoral: On-line, 3 de Outubro de 2016. Disponível em: <http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2016/Outubro/sao-paulo-foi-a-capital-com-o-maior-numero-de-abstencoes-no-pais>. Acesso em 15/10/2016.

BRASIL. Voto branco x voto nulo: saiba a diferença. Tribunal Regional Eleitoral do Espírito Santo: On-line, 15 de Outubro de 2014. Disponível em: <http://www.tre-es.jus.br/imprensa/noticias-tre-es/2014/Outubro/voto-branco-x-voto-nulo-saiba-a-diferenca>. Acesso em 15/10/2016.

FREITAS, Luiz Carlos de. Os reformadores empresariais da educação: da desmoralização do magistério à destruição do sistema público de educação. Eduação e Sociedade., Campinas, v. 33, n. 119, p. 379-404, abr.-jun, 2012.

FUNDAÇÃO ROSA LUXEMBURGO. Privatização do ensino. Zine. Disponível em: <http://rosaluxspba.org/lancamento-de-zine-e-video-sobre-privatizacao-do-ensino/>. Acesso em: 07/10/2016.


GURGEL, Thais. Diretor é cargo de confiança, mas da comunidade. Nova Escola: On-line. Disponível em: <http://acervo.novaescola.org.br/politicas-publicas/gestao-democratica/diretor-cargo-confianca-comunidade-425301.shtml>. Acesso: 14/10/2016

MAGALHÃES, Gildo. A evolução das espécies: da natureza ao liberalismo econômico. Revista de História Comparada (UFRJ), v. 2, p. 295-307, 2007.


MANCEBO, Deise; LÉDA, Denise Bessa . A privatização da educação superior no Brasil: impasses e desafios das políticas educacionais no estado neoliberal. In: IVJornada Internacional do Políticas Públicas - Neoliberalismo e lutas sociais, 2009, São Luís. IV Jornada Internacional de Políticas Públicas. Neoliberalismo e lutas sociais: perspectiva para as políticas públicas, 2009.

MARCH, James G. Exploration and Exploitation in Organizational Learning. Organizational Science, Vol.2, No.1, Special Issue: Organizational Learning: Honor of (and by) James G. March, p. 71-87, 1991.

MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Vol.1. Livro Primeiro: O processo de produção do capital. Tomo I (Prefácios e Capítulos I-VII). São Paulo: Círculo do Livro, 1996.

MÉSZÁROS, István. A educação para além do capital. 2ª Ed. São Paulo, SP: Boitempo, 2008.

MORIN, Edgar; WULF, Christoph. Planeta: a aventura desconhecida. São Paulo, SP: UNESP, 2003.

NICOLAU, Jairo. Representantes de quem?: os descaminhos do seu voto da urna à Câmara dos Deputados. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.

PARO, Vitor. Escolha e formação do diretor escolar. Cadernos de Pesquisa: Pensamento Educacional (Curitiba. Impresso), v. 6, p. 36-50, 2011.

PIAGET, Jean. Seis estudos de psicologia. 24ª Ed. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária, 2001. 

PINKER, Steven. The Blank Slate: The Modern Denial of human Nature. USA: Penguin Books, 2002.

SAVIANI, Demerval. A nova lei da educação: trajetória, limites e perspectivas. 5ª ed. Campinas, SP: Autores Associados (Coleção Educação Contemporânea), 1999.

SILVA, Rosália de Fátima. No “fazer da política”, o “conceito de educação cidadania”. In: NETO, Antônio Cabral (org.). Política Educacional: desafio e tendências. Antônio Cabral Neto (Org.). Porto Alegre: Sulina, 2004.

SOBRAL, Fernanda A. da Fonseca. Educação para a competitividade ou para a cidadania social?. São Paulo Em Perspectiva, 14(1), 2000.

Imagens:



Blog Indústrias Culturais, de Rogério Santos. Disponível em: <https://industrias-culturais.hypotheses.org/category/graffiti>. Acesso em: 16/10/2016.

Nenhum comentário:

Postar um comentário