A palavra é o domínio que
possuímos sobre o mundo que conhecemos. Aprender a palavra é apreender objetos,
qualidades, situações, momentos, espaços de vivências, as relações cotidianas.
No contato com o mundo aprendemos a palavra, buscamos em nós conteúdos para
significar a palavra, o significado da palavra é inicialmente subjetivo. Das
impressões mais íntimas do ser que a palavra ganha seu sentido.
A escrita da palavra é a
exteriorização das impressões internas do ser que experimentou uma realidade. A
intenção comunicativa da palavra é preservada apesar das impressões internas
persistirem na expressão das coisas. Um teste que comprova isso facilmente é a
associação de palavras, que consiste em interrogar uma palavra a uma pessoa e
pedir como resposta outra palavra. Por exemplo: a palavra maçã, imageticamente,
possui qualidades distintas para seus pensadores, interrogar alguém com a
palavra maçã é esperar que a palavra em resposta seja mordida, vermelha, pera, árvore, campo, mercado, e dentre tantas outras
palavras que evidenciam que as experiências são múltiplas, o que modifica as
impressões particulares sobre a palavra. E é incrível que a palavra persista
com a generalidade que lhe é própria o suficiente para estabelecer a comunicação
e não nos encarcerarmos no nosso mundo de sentidos, e sejamos capazes de
atravessar os significados para a linguagem e para um ouvinte – o outro. Se há
um livro numa mesa e eu peço que alguém me dê o livro, essa pessoa, que
compartilha dos mesmos códigos linguísticos, compreenderá o que quero, mesmo
que numa análise associativa a palavra livro remeta à uma biblioteca e a mim a
imagens daquilo que leio, ou ainda, a uma simples sensação de conforto e
relaxamento.
As palavras mais
concretas, os substantivos, são colocadas no âmbito do ordinário, do comum, e o
significado aparente delas não é surpresa para ninguém. Aquele que confunde um
garfo com uma faca está desatento, não é possível que não consiga assimilar o
significado (o objeto faca em cima da mesa) ao significante (a palavra faca
evocada pela fala). Independente da faca investir na pessoa um sentido de
violência ou destinada a tarefas domésticas, a faca está em cima da mesa e a
pronúncia imperativa do significante faca nesse contexto é suficiente para que
se estabeleça compreensão da mensagem.
Projetamo-nos na palavra
sem perceber. Quando pronunciamos sons eles são algo mais profundo do que
aquilo que pretendemos falar. A comunicação lato
sensu é a expressão do Eu, ao
mesmo tempo objetivo e subjetivo. Na palavra não comunicamos tudo sobre nós,
embora sempre comuniquemos algo de nós. Seria inconcebível que o outro
compreendesse o sentido pleno da palavra que expressamos, a não ser que ele
tivesse acesso a nossa alma, ao nosso imo, ao nosso núcleo de significações.
Quando alguém compreende o que falamos, ele não o faz porque compreende
exatamente o sentido que queremos dar a situação (e isto implica dizer que a
palavra exige contexto), mas ele combina suas próprias vivências, ricas em
sentido, para significar a palavra que ouve. Quando alguém ouve uma palavra,
ouve a si mesmo. Compreender uma palavra é compreender-se.
Experiências muito
distintas podem dificultar a comunicação. E quando pronunciam uma palavra que
não possui sentido? Ou quando corrigem o sentido da minha palavra? O amor, o
ódio, a arrogância, a justiça, a inteligência, a bondade, a perseverança, a
estupidez, a beleza. Tudo isto pede uma abstração maior, não porque ela é
desligada da realidade, do que é concreto, mas porque, mesmo na materialidade
do mundo comum vivido por duas pessoas o que interessa são os sentidos que
apreenderam em suas existências. Por isso os adjetivos possuem usos tão
controversos, a beleza em especial, pois ela não possui a intenção de expressar
algo comum a todos, apenas a singularidade de quem exibe seus desejos. E é
curioso que o mundo globalizado seja capaz de dirigir essa variedade de
significados a um mesmo significante quando se fala em moda, estética, música,
relacionamentos, diplomas, trabalhos.
ESCHER, M.C. Drawing Hands (1948).
.
Há uma dinâmica incrível
entre o mundo estruturante – que forma o indivíduo - e o mundo estruturado –
formado pelo indivíduo. O mundo nunca poderia formar os indivíduos da mesma
forma, com as mesmas subjetivas, pois aqueles que foram transformados estão transformando
o mundo, que volta a transformar os indivíduos. Essa atividade supera a
dialética hegeliana sintetizadora por conservar nessa lógica todos os
componentes que resultaram no produto final. Não existe exclusão ou somas que
resultam num fim, existe uma diferença produtora de sentidos que cria história.
Mesmo que o mundo não seja como antes, ele é tal como é porque já foi aquele
mundo de antes. O mesmo vale para o indivíduo. Aí surge a história, e também a
história da palavra. E seguindo a lógica, a história de uma palavra que sempre
se constitui diferença.
A escrita é um recurso
instigante para o autoconhecimento. Quando a palavra internalizada é
materializada numa superfície, ela pode ser vista, pode ser compreendida. Não
somente isso, ela pode ser mudada, ela pode ser reinventada, ela pode ser
substituída, ou ainda, complementada. Externalizar a palavra é também se
observar. Curiosamente, nós nos modificamos quando observamos aquilo que somos,
pois toda interação pede transformação. O contato com o Outro modifica o Eu. E
para sermos mais específicos, o Eu que externaliza a palavra, se encontra com o
Mesmo, e é nesse encontro que ele percebe que o Mesmo (o Eu externalizado na
palavra) torna-se Outro, e quem sabe, esse Outro seja primeiramente o Eu Passado.
Os gregos antigos, num
exercício de avaliação da própria consciência, escreviam em cadernos seus
sonhos, e esses cadernos recebiam o nome de hypomnemata.
Os sonhos já eram elucidações de si mesmos com símbolos que eles deviam
decodificar para se aprimorarem, serem temparados, equilibrados, por fim,
virtuosos. Os hypomnematas,
os cadernos dos sonhos, cumpriam muito bem sua função de armazenar as palavras
oníricas numa tentativa de cumprir a máxima “Conhece-te a ti mesmo!”.
Sonhar é, portanto, escrever uma carta para si mesmo (nas palavras de um
professor de psicologia em minha graduação).
O Renascimento resgata
esse sentimento de individualidade da Grécia Antiga nas cartas e na literatura.
É na carta a um(a) amante que as palavras refletem seu verdadeiro ser, sua
sinceridade e sua cumplicidade; as palavras são o Eu escrito no papel,
acomodado nas linhas, embebido de um sentido que o(a) amante não quer apenas
compreender, pois significaria cumprir o papel social da palavra, mas apreender
a palavra como se ele apreendesse a amada ou o amado. É mais do que doar-se, é
aniquilar-se na esperança que os dois corpos tornem-se uma única substância: o
Eu e o Outro compartilhando a mesma individualidade, os sentidos, as
experiências, as ideias, e acima de tudo, o parceiro(a), de forma que as cartas
seriam desnecessárias para tentar expressar um sentido que nunca seria
compreendido completamente. Expressar o amor torna-se uma virtude. Como algo
tão íntimo, dimensionado na alma, poderia fazer sentido para quem lê uma simples
carta? Como a literatura romântica poderia retratar perfeitamente um romance
que não é sentido, mas cujo sentido se restringe ao que está na cabeça de quem
lê?
Posteriormente, a
psicanálise, com a interpretação dos sonhos, tenta prestar um serviço incompleto
da forma como é feita. Interpretar um sonho (com Freud) pretende ser o
esclarecimento sobre o Eu da pessoa que repousa no divã. Entretanto, torna-se
uma interpretação frágil, pois tenta buscar uma origem baseada na interpretação
de si mesmo que o paciente constata ao seu analista para que ele interprete um
significado que tenta ir além de sua individualidade, o que não impede que a
interpretação do analista sobre a interpretação do paciente seja uma combinação
de palavras do analista.
E continua sendo incrível
como os sentidos das palavras se desdobram, se desmancham, perder sua cor
habitual quando se chocam com sentidos diferentes – sentidos-outros. Esse
conflito traz uma nova perspectiva, que não é exatamente igual ao sentido da
palavra ouvida, embora estabeleça proximidade entre a palavra e os sentidos em
contraste.
O tradicional diário,
estereotipado no público feminino e juvenil, é retratar-se dia a dia,
colocar-se no tempo e ver nas páginas possibilidades de existência. De se ver
escrito e pensar sobre si mesmo. A reflexão pode ser um simples folhear de
páginas velhas e pensar no que já passou e como isso foi importante para a
constituição presente. Precisar “o que eu quero me tornar” é um advento
da palavra. A autoinvestigação pela leitura da palavra, da sua própria palavra,
é por para fora o que está dentro de você. É escrever uma palavra que possui
sentido completo, pois você é seu maior intérprete. Escrever para os outros é
complicado, eles podem não compreender o sentido; escrever para nós mesmos é
libertador, não estranhamos o que escrevemos, e se estranhamos é porque não nos
identificamos com aquilo que exteriorizamos na palavra, o que pede mudanças de
si.
Enxergar-se na palavra é
ter cuidado de si. Cuidar de seu ser, de sua existência. Prezar a alma e o
espírito. A palavra é tão nuclear que mesmo que ela não possuísse traços ou uma
representação material, ela continuaria sendo uma palavra sentida, percebida
pela sensibilidade do corpo e da mente. Os nossos pensamentos são nossas
palavras na sua forma mais livre, desacorrentada da obrigação de fazer
compreensível, ela apenas é. Descobrir a própria palavra é governar-se, cada
vez menos você é um estranho para si mesmo. Sentir a palavra e saber conviver
com seus significados encaminha o ser à individuação – a autorrealização de si
mesmo.
No livro A Herança, de Christopher
Paolini, o personagem Eragon deve descobrir seu verdadeiro nome na Ilha de
Vroengard, um nome que existe na língua
antiga, o idioma élfico e que subentende a subjetividade do falante, que
evoca os sentidos singulares da palavra. Ao descobrir seu nome na língua antiga Eragon deve tomar cuidado para que O
Rei Galbatorix, o tirano da história que o personagem principal deve destronar.
Quando outra pessoa possui conhecimento de seu nome, ela possui total controle
sobre você. E como alguém, transmutando a realidade do livro à nossa, não
poderia nos controlar ao compreender como somos, nossos sonhos, motivações,
nossa sensibilidade, nossos medos, nossas angústias? Ter seu nome revelado na língua antiga é sinônimo de um cuidado de si
prestado com muito esmero, é uma autorrealização única.
Eragon não é controlado
apenas por uma palavra pronunciada por Galbatorix. Manipular Eragon com seu
próprio nome é inconcebível se o sentido do nome de Eragon é distinto para
ambos. Ao longo d’A Herança e
dos três livros anteriores (que juntos são denominados O Ciclo), os vínculos mentais
são comuns entre os portadores da magia; invasões à mentes também acontecem, e
é exatamente isso que acontece para Eragon perder seu nome para Galbatorix: o
rei penetra do âmago do espírito de Eragon e vasculha todos os seus sentidos
para achar o que chamo de a
palavra, o força coligadora de sentidos, o Self do protagonista. A mente invasora de
Galbatorix compreende Eragon, passa a fazer parte dele, por uma experiência
violenta, e ainda assim é o suficiente para acessar seu nome, para senti-lo e
experimentá-lo como se fosse o Eragon. Como a
palavra permite sua autocracia
e não há mais diferença entre Eragon e Galbatorix senão a diferença da posição
dos corpos no espaço-tempo, Galbatorix comanda a palavra Eragon como se fosse a sua com
tanta facilidade quanto é capaz de pronunciar uma ordem.
PAOLINI,
Christopher. Livro A Herança (2011),
Com a permissão filosófica
que todo sujeito possui para criar conceitos, me aproprio da palavra, de Paulo Freire, para
aprofundar sua internalização pelo sujeito histórico. Aquele sentido,
construído no contato com o mundo torna-se relativo ao definir mundo. Se o mundo externo
possui materialidade concreta, nós possuímos materialidade internalizada em
signos, e é na experiência com nossos próprios signos – esse mundo interno –
que podemos criar sentido a partir de nós mesmos sem cair na premissa que a
mente se separa do corpo, como propôs Descartes. A construção de sentido
acontece a partir da relação que o corpo e a mente arquitetam com o mundo, que
leva ao uso da palavra como instrumento mental, e,
sobretudo, à possibilidade de autoconhecimento no ouvir e no falar, palavras importantes
para Paulo Freire, que significam muito. Em ouvir está implícito a paciência e a
escuta ativa, o ouvir verdadeiramente, permitir que o outro tenha voz, que pode
muito bem ser a escuta de si mesmo, subentende- cuidado ao outro pelo cuidado
de si; e o falar como humildade de saber que nossa
palavra não será compreendida como nós gostaríamos, o que pede explicações,
repetições, definições, uma atenção a quem eu dirijo a palavra. Falar é uma ação que denota
responsabilidade, pode ser violenta se não nos autovigiamos, as palavras podem
inculcar sentidos indesejados em quem ouve, são transformadoras da realidade,
são uma espécie de ação que trabalha com um outro tipo de materialidade. A
partir disso, falar e ouvir tornam-se essenciais para um
cuidado de si que é indissociável do cuidado do outro, bem como qualquer forma
de comunicar seu Eu.
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