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quarta-feira, 8 de junho de 2016

O Eu e a escrita

A palavra é o domínio que possuímos sobre o mundo que conhecemos. Aprender a palavra é apreender objetos, qualidades, situações, momentos, espaços de vivências, as relações cotidianas. No contato com o mundo aprendemos a palavra, buscamos em nós conteúdos para significar a palavra, o significado da palavra é inicialmente subjetivo. Das impressões mais íntimas do ser que a palavra ganha seu sentido.
A escrita da palavra é a exteriorização das impressões internas do ser que experimentou uma realidade. A intenção comunicativa da palavra é preservada apesar das impressões internas persistirem na expressão das coisas. Um teste que comprova isso facilmente é a associação de palavras, que consiste em interrogar uma palavra a uma pessoa e pedir como resposta outra palavra. Por exemplo: a palavra maçã, imageticamente, possui qualidades distintas para seus pensadores, interrogar alguém com a palavra maçã é esperar que a palavra em resposta seja mordida, vermelha, pera, árvore, campo, mercado, e dentre tantas outras palavras que evidenciam que as experiências são múltiplas, o que modifica as impressões particulares sobre a palavra. E é incrível que a palavra persista com a generalidade que lhe é própria o suficiente para estabelecer a comunicação e não nos encarcerarmos no nosso mundo de sentidos, e sejamos capazes de atravessar os significados para a linguagem e para um ouvinte – o outro. Se há um livro numa mesa e eu peço que alguém me dê o livro, essa pessoa, que compartilha dos mesmos códigos linguísticos, compreenderá o que quero, mesmo que numa análise associativa a palavra livro remeta à uma biblioteca e a mim a imagens daquilo que leio, ou ainda, a uma simples sensação de conforto e relaxamento.
As palavras mais concretas, os substantivos, são colocadas no âmbito do ordinário, do comum, e o significado aparente delas não é surpresa para ninguém. Aquele que confunde um garfo com uma faca está desatento, não é possível que não consiga assimilar o significado (o objeto faca em cima da mesa) ao significante (a palavra faca evocada pela fala). Independente da faca investir na pessoa um sentido de violência ou destinada a tarefas domésticas, a faca está em cima da mesa e a pronúncia imperativa do significante faca nesse contexto é suficiente para que se estabeleça compreensão da mensagem.
Projetamo-nos na palavra sem perceber. Quando pronunciamos sons eles são algo mais profundo do que aquilo que pretendemos falar. A comunicação lato sensu é a expressão do Eu, ao mesmo tempo objetivo e subjetivo. Na palavra não comunicamos tudo sobre nós, embora sempre comuniquemos algo de nós. Seria inconcebível que o outro compreendesse o sentido pleno da palavra que expressamos, a não ser que ele tivesse acesso a nossa alma, ao nosso imo, ao nosso núcleo de significações. Quando alguém compreende o que falamos, ele não o faz porque compreende exatamente o sentido que queremos dar a situação (e isto implica dizer que a palavra exige contexto), mas ele combina suas próprias vivências, ricas em sentido, para significar a palavra que ouve. Quando alguém ouve uma palavra, ouve a si mesmo. Compreender uma palavra é compreender-se.
Experiências muito distintas podem dificultar a comunicação. E quando pronunciam uma palavra que não possui sentido? Ou quando corrigem o sentido da minha palavra? O amor, o ódio, a arrogância, a justiça, a inteligência, a bondade, a perseverança, a estupidez, a beleza. Tudo isto pede uma abstração maior, não porque ela é desligada da realidade, do que é concreto, mas porque, mesmo na materialidade do mundo comum vivido por duas pessoas o que interessa são os sentidos que apreenderam em suas existências. Por isso os adjetivos possuem usos tão controversos, a beleza em especial, pois ela não possui a intenção de expressar algo comum a todos, apenas a singularidade de quem exibe seus desejos. E é curioso que o mundo globalizado seja capaz de dirigir essa variedade de significados a um mesmo significante quando se fala em moda, estética, música, relacionamentos, diplomas, trabalhos.


ESCHER, M.C. Drawing Hands (1948).

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Há uma dinâmica incrível entre o mundo estruturante – que forma o indivíduo - e o mundo estruturado – formado pelo indivíduo. O mundo nunca poderia formar os indivíduos da mesma forma, com as mesmas subjetivas, pois aqueles que foram transformados estão transformando o mundo, que volta a transformar os indivíduos. Essa atividade supera a dialética hegeliana sintetizadora por conservar nessa lógica todos os componentes que resultaram no produto final. Não existe exclusão ou somas que resultam num fim, existe uma diferença produtora de sentidos que cria história. Mesmo que o mundo não seja como antes, ele é tal como é porque já foi aquele mundo de antes. O mesmo vale para o indivíduo. Aí surge a história, e também a história da palavra. E seguindo a lógica, a história de uma palavra que sempre se constitui diferença.
A escrita é um recurso instigante para o autoconhecimento. Quando a palavra internalizada é materializada numa superfície, ela pode ser vista, pode ser compreendida. Não somente isso, ela pode ser mudada, ela pode ser reinventada, ela pode ser substituída, ou ainda, complementada. Externalizar a palavra é também se observar. Curiosamente, nós nos modificamos quando observamos aquilo que somos, pois toda interação pede transformação. O contato com o Outro modifica o Eu. E para sermos mais específicos, o Eu que externaliza a palavra, se encontra com o Mesmo, e é nesse encontro que ele percebe que o Mesmo (o Eu externalizado na palavra) torna-se Outro, e quem sabe, esse Outro seja primeiramente o Eu Passado.
Os gregos antigos, num exercício de avaliação da própria consciência, escreviam em cadernos seus sonhos, e esses cadernos recebiam o nome de hypomnemata. Os sonhos já eram elucidações de si mesmos com símbolos que eles deviam decodificar para se aprimorarem, serem temparados, equilibrados, por fim, virtuosos. Os hypomnematas, os cadernos dos sonhos, cumpriam muito bem sua função de armazenar as palavras oníricas numa tentativa de cumprir a máxima “Conhece-te a ti mesmo!”. Sonhar é, portanto, escrever uma carta para si mesmo (nas palavras de um professor de psicologia em minha graduação).
O Renascimento resgata esse sentimento de individualidade da Grécia Antiga nas cartas e na literatura. É na carta a um(a) amante que as palavras refletem seu verdadeiro ser, sua sinceridade e sua cumplicidade; as palavras são o Eu escrito no papel, acomodado nas linhas, embebido de um sentido que o(a) amante não quer apenas compreender, pois significaria cumprir o papel social da palavra, mas apreender a palavra como se ele apreendesse a amada ou o amado. É mais do que doar-se, é aniquilar-se na esperança que os dois corpos tornem-se uma única substância: o Eu e o Outro compartilhando a mesma individualidade, os sentidos, as experiências, as ideias, e acima de tudo, o parceiro(a), de forma que as cartas seriam desnecessárias para tentar expressar um sentido que nunca seria compreendido completamente. Expressar o amor torna-se uma virtude. Como algo tão íntimo, dimensionado na alma, poderia fazer sentido para quem lê uma simples carta? Como a literatura romântica poderia retratar perfeitamente um romance que não é sentido, mas cujo sentido se restringe ao que está na cabeça de quem lê?
Posteriormente, a psicanálise, com a interpretação dos sonhos, tenta prestar um serviço incompleto da forma como é feita. Interpretar um sonho (com Freud) pretende ser o esclarecimento sobre o Eu da pessoa que repousa no divã. Entretanto, torna-se uma interpretação frágil, pois tenta buscar uma origem baseada na interpretação de si mesmo que o paciente constata ao seu analista para que ele interprete um significado que tenta ir além de sua individualidade, o que não impede que a interpretação do analista sobre a interpretação do paciente seja uma combinação de palavras do analista.
E continua sendo incrível como os sentidos das palavras se desdobram, se desmancham, perder sua cor habitual quando se chocam com sentidos diferentes – sentidos-outros. Esse conflito traz uma nova perspectiva, que não é exatamente igual ao sentido da palavra ouvida, embora estabeleça proximidade entre a palavra e os sentidos em contraste.
O tradicional diário, estereotipado no público feminino e juvenil, é retratar-se dia a dia, colocar-se no tempo e ver nas páginas possibilidades de existência. De se ver escrito e pensar sobre si mesmo. A reflexão pode ser um simples folhear de páginas velhas e pensar no que já passou e como isso foi importante para a constituição presente. Precisar “o que eu quero me tornar” é um advento da palavra. A autoinvestigação pela leitura da palavra, da sua própria palavra, é por para fora o que está dentro de você. É escrever uma palavra que possui sentido completo, pois você é seu maior intérprete. Escrever para os outros é complicado, eles podem não compreender o sentido; escrever para nós mesmos é libertador, não estranhamos o que escrevemos, e se estranhamos é porque não nos identificamos com aquilo que exteriorizamos na palavra, o que pede mudanças de si.
Enxergar-se na palavra é ter cuidado de si. Cuidar de seu ser, de sua existência. Prezar a alma e o espírito. A palavra é tão nuclear que mesmo que ela não possuísse traços ou uma representação material, ela continuaria sendo uma palavra sentida, percebida pela sensibilidade do corpo e da mente. Os nossos pensamentos são nossas palavras na sua forma mais livre, desacorrentada da obrigação de fazer compreensível, ela apenas é. Descobrir a própria palavra é governar-se, cada vez menos você é um estranho para si mesmo. Sentir a palavra e saber conviver com seus significados encaminha o ser à individuação – a autorrealização de si mesmo.
No livro A Herança, de Christopher Paolini, o personagem Eragon deve descobrir seu verdadeiro nome na Ilha de Vroengard, um nome que existe na língua antiga, o idioma élfico e que subentende a subjetividade do falante, que evoca os sentidos singulares da palavra. Ao descobrir seu nome na língua antiga Eragon deve tomar cuidado para que O Rei Galbatorix, o tirano da história que o personagem principal deve destronar. Quando outra pessoa possui conhecimento de seu nome, ela possui total controle sobre você. E como alguém, transmutando a realidade do livro à nossa, não poderia nos controlar ao compreender como somos, nossos sonhos, motivações, nossa sensibilidade, nossos medos, nossas angústias? Ter seu nome revelado na língua antiga é sinônimo de um cuidado de si prestado com muito esmero, é uma autorrealização única.
Eragon não é controlado apenas por uma palavra pronunciada por Galbatorix. Manipular Eragon com seu próprio nome é inconcebível se o sentido do nome de Eragon é distinto para ambos. Ao longo d’A Herança e dos três livros anteriores (que juntos são denominados O Ciclo), os vínculos mentais são comuns entre os portadores da magia; invasões à mentes também acontecem, e é exatamente isso que acontece para Eragon perder seu nome para Galbatorix: o rei penetra do âmago do espírito de Eragon e vasculha todos os seus sentidos para achar o que chamo de a palavra, o força coligadora de sentidos, o Self do protagonista. A mente invasora de Galbatorix compreende Eragon, passa a fazer parte dele, por uma experiência violenta, e ainda assim é o suficiente para acessar seu nome, para senti-lo e experimentá-lo como se fosse o Eragon. Como a palavra permite sua autocracia e não há mais diferença entre Eragon e Galbatorix senão a diferença da posição dos corpos no espaço-tempo, Galbatorix comanda a palavra Eragon como se fosse a sua com tanta facilidade quanto é capaz de pronunciar uma ordem.


PAOLINI, Christopher. Livro A Herança (2011),


Com a permissão filosófica que todo sujeito possui para criar conceitos, me aproprio da palavra, de Paulo Freire, para aprofundar sua internalização pelo sujeito histórico. Aquele sentido, construído no contato com o mundo torna-se relativo ao definir mundo. Se o mundo externo possui materialidade concreta, nós possuímos materialidade internalizada em signos, e é na experiência com nossos próprios signos – esse mundo interno – que podemos criar sentido a partir de nós mesmos sem cair na premissa que a mente se separa do corpo, como propôs Descartes. A construção de sentido acontece a partir da relação que o corpo e a mente arquitetam com o mundo, que leva ao uso da palavra como instrumento mental, e, sobretudo, à possibilidade de autoconhecimento no ouvir e no falar, palavras importantes para Paulo Freire, que significam muito. Em ouvir está implícito a paciência e a escuta ativa, o ouvir verdadeiramente, permitir que o outro tenha voz, que pode muito bem ser a escuta de si mesmo, subentende- cuidado ao outro pelo cuidado de si; e o falar como humildade de saber que nossa palavra não será compreendida como nós gostaríamos, o que pede explicações, repetições, definições, uma atenção a quem eu dirijo a palavra. Falar é uma ação que denota responsabilidade, pode ser violenta se não nos autovigiamos, as palavras podem inculcar sentidos indesejados em quem ouve, são transformadoras da realidade, são uma espécie de ação que trabalha com um outro tipo de materialidade. A partir disso, falar e ouvir tornam-se essenciais para um cuidado de si que é indissociável do cuidado do outro, bem como qualquer forma de comunicar seu Eu.


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