Introdução:
A educação costuma ser
atravessada pela socialização, a instrumentalização de um indivíduo para agir
num mundo. O planeta não é um mundo, senão uma multiplicidade de mundos. Logo,
crianças em diferentes partes do globo aprendem e apreendem o mundo em que
nascem, e nem sempre seus aprendizados podem ser estendidos para situações fora
deste mundo: sua cultura, sua sociedade, seu grupo, sua casa.
No mundo
globalizado a educação parece perder um pouco suas características locais,
aquilo que é próprio de uma cultura, de uma sociedade ou de um grupo, para ser
pensada a nível internacional. Cada uma dessas localidades incorporam a sua
educação os preceitos de uma educação pensada no mundo globalizado, marcado
principalmente pelo mercado internacional e pela mão-de-obra qualificada.
A educação
passa a ser pensada para o trabalho, para a produção de riquezas de um país,
seguida de uma competição entre mercados internacionais. A conclusão é que a
competição é base da educação num mundo globalizado. E o princípio da
competição aparece para atender aos interesses do capitalismo e de um mercado
com uma variedade de serviços buscando o monopólio.
Há estudos
sociais que defendem a possibilidade de uma educação que possa conciliar a
formação da cidadania com a qualificação para o mercado competitivo,
entretanto, não é esta a realidade que pretendo trazer aqui. Parece-me
inconsistente uma educação que pelo incentivo à competição queira formar
cidadãos com consciência crítica, política e de participação ativa nas decisões
da sociedade. Também considero importante apontar que a competição favorece
apenas os interesses de uma economia neoliberal e que em nada se aproximam da
educação para a cidadania esperada, pelo contrário, desestimulam a participação
política do cidadão por uma educação que valoriza os lucros e o ranqueamento do
país no mercado internacional almejando ser o mais rico.
Este artigo
contempla as experiências brasileiras de educação, em primeiro lugar, por mais
que flerte com uma perspectiva mundial da influência da competição no trabalho,
na produção de conhecimento e educação do povo.
O mito do darwinismo
social:
O primeiro
mito é um background que busca
explicar os funcionamentos da natureza humana e suas formas de evolução. Pela
teoria da evolução das espécies, de Charles Darwin, ocorre a seleção de
mutações nos genes dos seres vivos que permitem que eles se adaptem ao seu
ambiente externo. Transpondo para o darwinismo social: estão mais aptos a viver
socialmente aqueles que se adequam ao seu meio social, o que é um argumento
interessante para pensar a escola como preparação do indivíduo para a
sociedade, como proposto por Émile Durkheim.
Os
preguiçosos, os fracos, os desinteressados, os imaturos, os desobedientes,
todos estes estão fadados a ser excluídos dos genes sociais, são selecionados pelo ambiente social os infatigáveis,
os fortes, os motivados, os maduros, os obedientes, os escolarizados e todos
que fazem funcionar a sociedade-organismo. Existiria um princípio competitivo
na natureza humana que nos direcionaria à evolução, prevenindo qualquer
complicação que pudesse ameaçar a extinção da humanidade.
Com um
pouco de atenção percebemos que a teoria de Darwin, conhecida por seu famoso
livro A Origem das Espécies “foi
comumente mal interpretada como uma explicação de um progresso intelectual e
moral em vez de uma explicação de como coisas vivas se adaptam a um nicho
ecológico” (PINKER, p.15, 2002, tradução livre). É Herbert Spencer, discípulo
de Darwin, que vê na teoria de seu mentor a possibilidade de expandir a teoria
de base biológica para explicar o progresso das nações e das raças, onde estão
as melhores economias, as melhores políticas e as melhores sociedades. Vale
lembrar que Francis Galton, sobrinho de Darwin, aparece como incentivador de
políticas eugênicas para promover o avanço da sociedade, sendo uma delas não se
incomodar com a fome no país (PINKER, 2002).
Por esta
perspectiva, temos a competição como alavanca para a existência da vida humana
e das espécies em geral. Pelo darwinismo social desvenda-se a natureza humana
com o princípio da competição para a sobrevivência, e a partir disto faz
sentido uma economia baseada no livre mercado, um mundo globalizado em que as
melhores culturas são aquelas que não criam raízes e exploram outras culturas
(ou resistem aos choques de culturas), a educação depende da sobrevivência dos
mais aptos.
Até este
ponto a escola deveria ter o papel de a)
selecionar os melhores alunos ou b)
criar condições para que os piores alunos sobrevivam, e ainda assim podemos
imaginar que alguns não se adaptariam completamente. Este tipo de escola
encontra seus entraves entre os anos 50-60, quando a escola e a educação oferecida
devem garantir mobilidade social (SOBRAL, 2000), ou seja, estar de acordo com a
escola tipo b). É esse período do
pós-guerra que permite questionar as experiência dos discursos eugênicos de
Adolf Hitler e sua expansão baseada na supremacia da raça ariana.
O
progresso, a tecnologia e a competição não podem ser considerados avanços se
estão próximas da barbárie (MORIN & WULF, 2003). É curioso como algumas
pessoas conseguem agradecer a guerra por ter trazido os celulares, a internet,
descobertas nas ciências da natureza e esquecerem-se das mortes, do medo, da
exclusão e do autoritarismo reinantes nesse momento de avanço da civilização.
A guerra
promove a competição pela vitória, pelo massacre do adversário, por aniquilar
antes de ser aniquilado: esta é a primeira forma de competição. E para negar
este tipo de competição cito Magalhães (2007):
Apenas
as espécies menos complexas (referindo-nos ao ponto de vista do desenvolvimento
de seus órgãos) parecem à primeira vista obedecer a teoria malthusiana que
serviu de base a Darwin, em que há um número prodigioso de descendentes em cada
geração, dos quais só poucos chegarão à fase adulta e apta para a reprodução, e
em que a sobrevivência parece ser devida ao acaso e à maior adaptação ao meio.
Alguns peixes, répteis e insetos podem comer uns aos outros e até mesmo seus
parceiros sexuais e seus próprios ovos. Mas animais como os mamíferos
superiores parecem agir diferentemente, com estruturas sociais mais elaboradas
e o cuidado coletivo da prole. Portanto, mesmo em níveis menos complexos do que
o homem, a regra não é a competição e a seleção, mas sim a cooperação e a
interdependência entre os organismos, e isto não decorre de razões egoístas,
pois está em concordância com a tendência à complexificação por nós defendida, que
leva ao surgimento de componentes de socialização (p.23).
Podemos
compreender, assim, que a teoria da seleção natural não explica sozinha a
adaptação dos seres vivos aos seus ambientes, pois levaria tempo para a seleção
dos genes e os ambientes mostram-se instáveis para considerarmos adaptações
baseadas numa competição natural geracional. O biólogo e psicólogo Piaget
(2001), cujos estudos repercutem até hoje na educação, oferece o desequilíbrio
como princípio de aprendizagem do ser humano. O desequilíbrio é típico de um
mundo que sempre se apresenta de forma diferente para a ação humana, e só há
desequilíbrio externo (mundo) porque há desequilíbrio interno (organismo); é
pelo aprendizado do mundo, garantido por processos constantes de assimilação e
acomodação, que a criança cria estruturas cognitivas para se adaptar ao mundo,
portanto, ela se equilibra, se adequa ao ambiente externo graças a um mecanismo
filogenético que permite a ela apreender o mundo em estruturas próprias das
fases de desenvolvimento da criança.
A natureza
humana, para Piaget (2001), respeitaria os períodos sensório-motor (0-2 anos),
pré-operatório (2-7 anos), operatório (7-11 ou 12 anos) e concreto (acima de11
ou 12 anos) e não está baseada na competição, mas na adaptação, o que inclui
estágios para desenvolvimento da moralidade e da convivência em grupo, em que
pouco importa combater, rechaçar ou possuir condições diversas a outro grupo,
interessa saber como o grupo cria coesão interna a partir do ambiente criado
pelos seus participantes.
A
própria evolução se dá de forma a que a vida seja cada vez mais homeostática
(capaz de regular suas condições fisiológicas internas, a despeito de variações
no meio), até chegar nos pássaros e mamíferos que são homeotérmicos. (MAGALHÃES,
p.24, 2007)
Não é a competição
que gera desequilíbrio para avançar o desenvolvimento humano, é próprio da
natureza biológica do homem que, segundo Piaget (2001), o ser humano
desenvolva-se equilibrando-se ao ambiente e criando condições para que outros
seres humanos desenvolvam-se também. Isto pode significar tanto a) um grupo que institui uma moral a ser
seguida a risca, ou seja, a criação das escolas durkheimnianas que preparam os
alunos para se adaptarem ao ambiente externo (a sociedade), quanto b) um grupo ciente de suas capacidades
de mudar a natureza para atender as suas necessidades, daí o equilíbrio não
está na adaptação, mas na transformação do ambiente externo, e com isto, a
escola que pergunta porque as regras (a moral) são como são e se são justas.
Uma escola
construtivista atende a conclusão b),
não se baseia na competição, mas está atenta para as fases do desenvolvimento
infantil e sugere situações de desequilíbrio para assimilação e acomodação de
uma aprendizagem (para os estágios sensório-motor e pré-operatório, principalmente).
No estágio operatório, a escola construtivista se interessa por criar espaços
de conflitos entre os alunos para provocar o diálogo, a tomada de decisões
coletivas e a autonomia. O planejamento das atividades do dia envolvendo
professor e alunos ou mesmo os grêmios estudantis (que horizontalizam as
relações hierárquicas entre alunos e a gestão escolar) são exemplos de espaços
de conflitos sem competição.
Não existe
competição onde existe senso de coletividade. O pleno desenvolvimento de uma
vida só não perdura quando não são dadas as condições ambientes para que ela
aconteça. Concluímos que a evolução, como já disse Lévi-Strauss (1976), não é
apenas para frente. Se tomarmos um tabuleiro de xadrez como analogia as peças
recuam, avançam, se deslocam para os lados, o próprio rei (que pode simbolizar
aqui o objetivo da evolução) não é fixo e se move, e a dificuldade de
capturá-lo é maior quanto mais ele se movimenta. Cada jogo de xadrez pede uma
adaptação ao estilo de jogo do adversário, e de forma mais complicada, cada
jogo exige que o jogador se adapte a cada jogada do adversário, pois a
estratégia do adversário muda conforme o primeiro jogador mostra sua
estratégia.
Conforme um
ser vivo vive sua história num ambiente, está em completa interação com ele,
não está sujeito apenas a ser mudado pelo ambiente, mas possui também
artifícios para modificá-lo, e da mesma forma, o ambiente não está apenas
sujeito as transformações do sujeito, mas transforma o sujeito. E tudo se dá de
forma homeostásica.
Passando do
complicado para o complexo, a competição é uma das estratégias a ser
utilizadas, e geralmente ela faz o papel do peão no tabuleiro, com movimentos
mínimos, curtos, sem recuar. Por mais que haja chances de se tornar uma rainha
no fim do tabuleiro, o peão precisa ser protegido para chegar ao final do
tabuleiro, o que pede riscos desnecessários e sacrifícios de outros peões ou de
peças igualmente importantes. Em geral, os argumentos que utilizam o darwinismo
social para sustentar a competição na educação demonstra a força do senso comum
e de uma ideologia que encobre as lutas entre grupos ou classes na sociedade a
partir de naturalizações sobre o desenvolvimento humano e formas produtivas de
se desenvolver (que flertam com lógicas fordistas e tayloristas, por exemplo),
que são importantes apenas para a manutenção de um sistema capitalista de
produção.
O mito da melhoria da
pesquisa no ensino superior:
A ideia de
que a competitividade acontece através educação, inicia-se nos anos 90 (SOBRAL,
2000). É o auge da globalização, as fronteiras e os mercados estão abertos para
as trocas comerciais, desenvolvimento tecnológico, novas especializações e
oportunidades nas áreas de trabalho, e novas responsabilidades para a educação
de gerar trabalhadores competentes para o mundo globalizado.
A educação
passa a ser cada vez mais sistematicamente uma educação para o trabalho, como o
termo capital humano (de Schultz) passa a designar. Isto não aconteceria sem as
empresas que fazem girar o mercado e de uma menor intervenção do Estado na
economia, típico de uma estratégia neoliberal. As empresas, nesse momento,
produzem baseadas no conhecimento científico e precisam de inovações, de
recursos que nenhuma outra empresa tem, e suas estratégias consistem em buscar “formação
de pesquisadores altamente qualificados pelas universidades e pelos sistemas de
pós-graduação e que são responsáveis pela produção científica de ponta e pela
produção de novas tecnologias” (SOBRAL, p.5, 2000).
Estas
parcerias são interessantes para o poder público sob o discurso de que seriam
poupados investimentos no ensino superior na parte de pesquisa e essa verba
poderia ser redirecionada para o ensino básico, principalmente para o ensino
fundamental. O Fundef (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino
Fundamental e de Valorização do Magistério), criado em 1996, não destina
recursos ao ensino fundamental apenas por ser o inicio das conquistas da
cidadania e da justiça social,
É
o ensino fundamental que dá a formação básica para o futuro cientista,
tecnólogo, técnico ou trabalhador, pois a introdução e a absorção de novas
tecnologias características do novo paradigma produtivo exigem, além da
formação específica, certos conhecimentos básicos e gerais. (SOBRAL, p.7,
2000).
Só em 2007, com o Fundeb (Fundo
de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Básico de Valorização dos
Professionais da Educação), os recursos que antes eram destinados apenas ao
ensino fundamental alcançam o ensino infantil, o ensino médio e a educação de
jovens e adultos.
A educação que atende aos
interesses empresariais é tratada como mercadoria, é uma educação para a vida
toda, deve ser escolhida com cuidado pelo usuário e será aceita pelo empregador
se for conveniente para ele. Entrar no mercado de trabalho significa ter a educação
(a mercadoria) que o mercado e os empregadores exigem, e toda educação pode ser
recusada se não for conveniente.
A privatização do ensino superior
significa mais do que instituições privadas trazendo recursos para que os
laboratórios e departamentos das faculdades e institutos públicos façam
pesquisas que lhes interessem, é a adequação do ensino superior à lógica do
mercado. É desta forma que laboratórios de química se envolvem mais ativamente
pesquisando cosméticos, laboratórios de farmácia e medicina são incentivados a escrever
artigos omitindo informações negativas sobre o uso de um produto novo e caro
que chega ao mercado, laboratórios de biologia selecionando e cruzando genes
para gerar plantas transgênicas que atendam aos gostos do mercado.
A ideia da possibilidade de
comprar esse produto traz a ilusão de que as empresas, em sua grande maioria,
estão a nosso favor, que elas possuem alguma consciência sustentável e social.
A concorrência parece boa quando empresas de telecomunicações oferecem serviços
diferenciados de telefonia e tentam melhorar a qualidade baseado no seu
concorrente, garantia para o comprador de serviços de que ele poderá contar com
um ótimo serviço de telefonia se houver competição (e obviamente se não houver
formação de carteis).
Passa a ser
ainda melhor pensar que podem existir parcerias público-privado entre a
universidade pública e empresas para que aconteça o avanço na qualidade dos
produtos, que podem ser consumidos por todos porque é público. O maior problema
é a criação de uma patente que transforma o conhecimento de um espaço público
com responsabilidade social pertencendo a uma empresa, daí o acesso ao
conhecimento passa pelo pagamento à empresa que contribuiu para gerá-lo.
O trabalho
das empresas considera o lucro, por isso estão próximas de laboratórios das
áreas de ciências da natureza e matemática. Se não for possível gerar lucro com
a pesquisa (que se transforma em produto com a patente) ela é apenas perda de
tempo, um conhecimento que não gera ganhos. Por este motivo que as ciências
humanas não possuem tantos vínculos com empresas, a não ser que haja tecnologia
como palavra-chave da pesquisa. Na área de educação, as empresas se envolvem
mais quando está implícito a criação de recursos audiovisuais pedagógicos,
jogos educativos ou aplicativos de redes móveis. Em suma, algo que possa ser
patenteado para ser vendido. Os estudos de ciências sociais, por exemplo, tem
como tema a violência, a política, a distribuição de riquezas, interesse sobre
o bem público, disputas entre grupos, preconceitos, produção de conhecimento.
Dificilmente vende-se esse tipo de conhecimento, a não ser por cursos e
palestras, e só é possível se o pesquisador do tema for apresenta-lo, dinâmica
totalmente diferente de usar um produto sem precisar que seu pesquisador esteja
lá para explicar o produto.
O
compartilhamento entre o público-privado num mesmo espaço só acontece quando
ambos possuem o mesmo interesse. O público, por definição, é de todos, logo,
não pode se reduzir ao privado, que é o que há de mais particular num bem. O
privado, em sua particularidade, pode vincular e desvincular seus interesses de
acordo com sua vontade, pode inclusive agir em prol do público com
solidariedade e reciprocidade, que é o que esperamos dos agentes públicos:
pessoas que representam o Estado e cujo trabalho consiste em acatar aos
interesses da população, mesmo que estes não sejam seus próprios interesses. O
privado mostra-se muito flexível, o público não. O público só não é flexível
porque suas decisões são tomadas de forma mais complexa do que no privado, o
público comporta muitas privacidades (cada pessoa da população) e os interesses
nem sempre são convergentes.
O público
só se comporta como privado quando um agente público numa posição de poder
utiliza sua influência para servir aos seus próprios interesses. Esta parece
ser uma ideia tão atrativa que não vemos apenas um ou outro político nesta
situação, mas uma rede de representantes do setor público atuando como se
fossem entes privados: tomam um bem de todos como se fosse um bem pessoal.
Se as
empresas estão dentro das universidades públicas é porque temos reitores, diretores,
chefes de departamentos e pesquisadores interessados em trabalhar conjuntamente
com as empresas. A discussão torna-se mais complicada por serem as empresas que
possuem a tecnologia de ponta, logo, para que se produza conhecimento novo e
inovador, é impensável fazê-lo sem o auxílio das empresas, suas patentes e suas
tecnologias. Por outro lado, as empresas buscam as universidades, nos anos 90,
porque são elas que possuem um conhecimento que interessa as empresas, porque
há pesquisas com potencial para vendas – novos produtos no mercado. Não seria
correto afirmar que quando as empresas começam a adentrar as universidades elas
passam a se apropriar dos novos conhecimentos produzidos nesse espaço público e
por isso hoje em dia é a universidade que deve ceder aos caprichos de algumas
empresas (e torcer que elas queiram utilizar esse espaço) e não o contrário,
como nos anos 90.
Tudo isto
decorre de uma lógica neoliberal que se apresenta num pensamento mercantilista
da educação, a mesma lógica que leva os governos de Fernando Henrique Cardoso e
Lula a adequarem a educação pública aos interesses econômicos em voga, daí se
aprova a Lei da Filantropia, em 1998, trazendo vantagens fiscais para as
instituições privadas; Lei de Inovação Tecnológica, em 2004, que permite a
transferência de tecnologias das universidades e centros de pesquisa para as
empresas; Lei da Parceria Público-Privado, também em 2004, já mencionada; A Lei
de Diretrizes e Bases que reconhece instituições privadas sem fins lucrativos
como possíveis de participar na educação; o Plano Nacional de Educação
apontando para uma “racionalização dos gastos públicos e o incentivo à
composição de um sistema de educação superior diversificado, com instituições
que atendam diferentes demandas e funções” (MANCEBO & LÉDA, p.3, 2009);
criação de bolsas estudantis pagas com verba pública para o ingresso de
estudantes em instituições privadas, como é o interesse pela expansão do FIES (Programa
de Financiamento Estudantil) e o surgimento do ProUni (Programa Universidade
para Todos).
Parte desse
incentivo às instituições de educação superior privadas só acontece, como
mencionam Mancebo & Léda (2009), por recomendação do Banco Mundial para
criar um ambiente positivo para que as instituições privadas de ensino superior
possam ter condições de igualdade a partir de incentivos financeiros provindos
do Estado.
Para Léda
& Mancebo (2009), é evidente que só poderemos retomar o ensino superior
público com “a superação do modelo neoliberal e a retomada da esfera pública
como central e estratégica”. Mesmo porque as lógicas entre o público e o
privado acontecem de formas diametralmente opostas, por mais que as pessoas
queiram acreditar que as empresas possam ser um bem elas se iludem em achar que
os valores dos empresários são primordialmente sociais e não econômicos, e
ainda se fosse, tentam justificar questões tipicamente sociais com avanços
econômicos e reduzir aquilo que é tema de uma sociologia, antropologia,
ciências políticas ou educação à competição econômica do país a nível
internacional.
De boas intenções o inferno está cheio,
e muitas dessas boas intenções caminham juntas do darwinismo social: “Como você espera dar educação para todo
mundo?” ou “Universidade pública não
aguenta tanta gente assim” são questionamentos que estão na contramão do direito
à educação. É dever do Estado oferecer educação, e não há discussão, se ainda
não é possível que todos tenham essa educação é de responsabilidade do Estado
investir de forma que todos consigam ter uma boa educação, pois não estamos
falando de uma mercadoria que pode ou não estar a venda, é um direito
fundamental inalienável de qualquer sujeito de direitos no planeta Terra,
embora ela seja tratada como luxo quando vira mercadoria.
Os mais utilitaristas utilizarão
o darwinismo social dizendo que tudo bem não ter educação para todos, não são
todos que estão adaptados para chegar à universidade, o que acaba com o
problema de contingenciamento de estudantes nas universidades. É interessante
até para a produção científica e para a pesquisa, que não precisará lidar com
pessoas atrasadas (e geralmente evocam-se eugenias de todo tipo aqui,
principalmente, no Brasil, com relação às etnias africanas e afro-brasileiras
associadas à pobreza e a péssima educação).
O neoliberalismo na educação não
contribui para a afirmação do direito à educação, como demonstra a história
brasileira nos anos 90. Estimula-se uma educação para as empresas, para a
prestação de serviços, daí que o ensino técnico é tão importante para essas
propostas econômicas, e a cidadania é formação secundária, por mais que seja
entendida pelos empreendedores como possível. A universidade passa a ser lugar
de poucos e a meritocracia faz o papel de illusio
(BOURDIEU, 2001), isto é, ela encobre os reais interesses econômicos de um
campo fazendo-os parecerem interesses que privilegiem o bem comum. E como
sabemos todo campo social está em disputa com outro campo social, ele concorre
e compete por um capital escasso. Competição incentivada pela necessidade de
sobrevivência no campo, que é mais um problema social (ontogenético) do que de
natureza humana (filogenético).
As empresas lutam pelo primeiro
lugar no pódio da economia, o Estado possui o mesmo interesse e se une às
empresas (uma vez que boa economia é vista como sinônimo de poder), mas a
cidadania não é uma questão de primeiro lugar ou de ter muito dinheiro: é ter
dinheiro suficiente para que os investimentos em educação proporcionem
distribuição dos capitais político, simbólico e cultural para que a educação
básica consiga favorecer a participação ativa dos cidadãos na sociedade, sua
autonomia sobre o mundo em que vivem e que não sejam meros consumidores dos
serviços do Estado (BRANDÃO, 1984).
Este segundo tipo de competição
em muito se parece com aquela das guerras, o que muda é que o desenvolvimento
tecnológico, o incentivo a ciência e a qualificação para o trabalho são as
novas armas e os índices econômicos tornam-se o placar; o objetivo passa a ser
focado em resultados, é uma competição maquiavélica em que os meios justificam
os fins, e feita de forma tão dissimulada que chegam a encobrir seus objetivos
reais com objetivos declarados que estão em
completo acordo com a Lei (SAVIANI, 1997).
O mito da melhoria
das escolas públicas pela gestão empresarial:
Se a
competição fosse desejável nós poderíamos utilizá-la sem pestanejar. Poderíamos
desejar entregar bonificações aos professores com maiores notas nas avaliações
internas e, principalmente, externas da escola; comparar as avaliações externas
entre escolas, premiando as mais competentes, quem sabe publicar os resultados
de cada escola e de cada professor nos jornais; e porque não comparar os alunos
entre eles com as notas num grande mural da escola?
O problema
é que essas competições acabam voltadas para os resultados, assim como no
segundo mito – da melhoria da pesquisa do ensino superior – e pode-se perceber
que os profissionais perdem o senso de colaboração e as relações interpessoais
dentro da escola são desmanchadas, o que diminui a qualidade das condições de
trabalho no local e torna as pessoas mais aversivas e distantes simplesmente
porque competem entre si por um salário melhor. O fim esperado pelo professor é
um aumento, só o recebe porque seu aluno conseguiu a nota esperada pela meta da
escola.
Em geral, o
salário dos professores é dividido em uma parte fixa e outra variável, o bom
desempenho dos alunos contribui para que essa parte varável cresça. A educação
virá “bater meta”, assim como nas empresas, e os alunos sentem a diferença na
sua educação, é exigido um desempenho crescente deles, deve ser cada vez maior.
As notas
dos alunos não se refletem apenas no salário dos professores, mas também na
classificação entre escola para decidir qual receberá aumento de verba. “Premidos
pela necessidade de apresentar sua escola como uma boa instituição à
comunidade, reproduzirão práticas que tenderão a afastar de suas salas e de
suas escolas alunos com dificuldades para a aprendizagem” (FREITAS, 2012).
Sem contar
que a distribuição de verbas para as escolas visando a premiação pela
classificação, mesmo que haja uma quantidade fixa no repasse, aumenta a verba
das escolas que estão bem colocadas, permitindo que elas possam melhorar suas
instalações e comprar recursos essenciais para melhorar ainda mais seu
desempenho nos testes padronizados (comprando material escolar bom para os
alunos, pagando bem os professores, pintando a escola, consertando as
carteiras, etc.), enquanto as escolas que não estão bem classificadas
continuarão do jeito que estão, recebendo o repasse de sempre, tendo que
escolher muito bem em que será investido, sendo que poderiam ter um resultado
melhor se fossem destinados recursos a elas.
Esta
competição é, para Freitas (2012), formas de responsabilizar o aluno e a escola
pelo péssimo desempenho nos testes padronizados sob a justificativa
meritocrática, sendo a responsabilização e a meritocracia acompanhadas de
privatização das escolas.
Freitas
(2012) constata que os reformadores empresariais da educação além de diminuir
as interações entre grupos, a diluir o senso de coletividade pela
individualização das ações e criar um ambiente fatigante e desestimulante para
os trabalhadores e para os alunos, percebe, ainda, o estreitamento curricular:
“A escola cada vez mais se preocupa com a cognição, com o conhecimento, e
esquece outras dimensões da matriz formativa, como a criatividade, as artes, a
afetividade, o desenvolvimento corporal e a cultura” e afirma que “se conseguir
ensinar o básico, já está bom, em especial para os mais pobres” (FREITAS,
p.389, 2000).
As fraudes
dos testes padronizados são outro aspecto conhecido nas escolas que são
colocadas sob atmosferas competitivas: “As variáveis que afetam a aprendizagem
do aluno não estão todas sob controle do professor. Esta pressão e controle
produzem um sentimento de impotência, associada à necessidade de sobreviver,
que tem levado à fraude” (FREITAS, p.392-3, 2012).
As escolas,
prezando seus resultados nos testes padronizados, passam a escolher melhor seus
alunos, a selecioná-los de forma que aumente a segregação socioecônomica no
território e nas escolas, como menciona Freitas (2012). Os alunos redirecionados
são conhecidos por alunos de risco.
Geralmente, no ensino básico, a
privatização começa nos cargos administrativos da gestão escolar. O que permite
acesso e autonomia para cortes nos recursos da escola (mesmo que viole o
princípio da gestão democrática) para fazê-la funcionar de forma eficiente e
utilizando o menor número de materiais possível, ao mesmo tempo, o ensino dos
alunos é baseado numa cartilha ou outro material que economize tempo de aula e
tenha um conteúdo minimalista (como deixar de abordar gênero na sala de aula,
relações étnico-raciais, pouca ênfase nas artes e na educação corporal),
servindo a interesses ideológicos.
Isto tende
a acontecer com facilidade porque os diretores escolares costumam ser indicados
pelos secretários de educação. São poucas as escolas que se utilizam de um
sistema democrático dentro da escola para eleger seus gestores.
Justamente
pela falta de critérios sérios e claros, o que se verifica Brasil afora é a
prática das indicações políticas para os cargos de confiança e a escola, é
claro, não foge à regra. Interesses partidários se sobrepõem às necessidades e
aos desejos da comunidade escolar que, sem participação efetiva, muitas vezes
tem de receber uma pessoa cuja trajetória se desconhece, tampouco os critérios
que a conduziram à função. Essa alienação de professores, pais e alunos pode,
se não tornar a gestão impraticável, ao menos iniciá-la de maneira forçosa. (GURGEL,
On-line)
Paro (2011),
sobre a função do diretor, comenta que sua formação não pode ser pensada apenas
em seu aspecto técnico (como acontece no neoliberalismo). O diretor não é
apenas administrador ou executor de um serviço, deve pensar a escola não apenas
como uma economia, há a pedagogia por detrás, ou melhor, não há lugar que
represente de forma tão simbólica a pedagogia como faz a escola. O gestor é
primeiramente um pedagogo, pois seus interesses estão voltados para a educação,
e como já venho argumentando, uma educação para a competição não é uma educação
para o cidadão. Segundo Paro (2011), os professores e demais funcionários da
escola (podemos chamar a todos de educadores) estabelecem ótimas relações dentro
da escola quando conhecem de perto os trabalhos dos funcionários, quando mantém
correspondência direta e convivem com seus colegas de trabalho. Isto reforça
ainda mais a eleição de diretores como participação política da comunidade
escolar, respeito ao princípio da gestão democrática, e fortalece a democracia
como direção moral dentro da escola e fator importante para a formação política
de todos os envolvidos: educadores, educandos, família e comunidade.
Esta competição é tão maquiavélica quanto a que acontece no
ensino superior, só que a competição do segundo mito está voltada para a
apropriação dos meios de produção (conhecimento e tecnologia científica) (MARX,
1996) por um pequeno grupo do setor privado, enquanto o ensino básico é o
momento de preparar o aluno para o cenário competitivo que ele encontrará no
mundo; é uma competição para predisposição das ações, das expectativas, de
formas de pensamento, linguagem e de fazer o indivíduo apreciar o mundo da
competição, em outras palavras, é o ensino formador de um habitus (BOURDIEU, 2001), que declaro explicitamente como habitus competitivo.
(continua no próximo post)
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