Prolegôminos
Reassistindo
o filme Donnie Darko (2001), dirigido por Richard Kelly, me deparei com tópicos
que podem causar um tremendo mal-estar e parecer bem mórbidos de início.
Começarei apresentando os personagens que considero importantes para a
discussão (adiantando algumas relações entre Donnie e situações vividas no
filme), em seguida discorrerei sobre algumas cenas do filme. Em ambos os casos dialogarei
com Foucault e Deleuze sobre poder, identidade e diferença.
Donald
(apelidado de Donnie) Darko é um garoto estranho que se esconde entre seus
ombros, anda curvado; possui um olhar medroso; e expressa comentários
extremamente inconvenientes. Isto, entretanto, é a imagem que criam dele. Para
o protagonista sua postura é a de um escudo contra as ameaças que representam
as pessoas, seu olhar pode ser medroso, mas também é observador; e seus
comentários são formas de resistência contra um mundo débil e tolo, e
poderíamos acrescentar, opressor por tentar torná-lo débil e tolo. Utilizando
as palavras da terapeuta dele: “O comportamento agressivo de Donnie, seu
distanciamento da realidade, parece ser devido à incapacidade dele de lidar com
as forças no mundo que ele considera ameaçadoras”. Ela afirma de Donnie é um
esquizoparanoide.
Como
pedagogo, me chama atenção a relação entre Donnie e a escola. De um lado estão
as relações entre professores, sendo: A) a professora moralista Kitty e sua
idolatria pela autoajuda de Jim Cunningham (personagem acusado de pedófilo nas
cenas finais do filme); e B) professor Monnitoff e professora Pomeroy, responsáveis
pelas disciplinas de Física e Literatura, serão provocadores e ouvintes de
Donnie.
A relação A pode ser abstraída para todas as relações em que os
jovens são incapazes de pensar por si mesmos, tratados como crianças, devem ser
obedientes e carregam marcas de derrotas deixadas por lutas que nunca
escolheram lutar, lutas estas escolhidas por familiares e representantes da
escola, um fardo tão grande quanto ser obrigado a servir seu país numa guerra:
não há escolha, apenas imposição, e o ponto em comum é que sempre há algo de bom nisso, com certeza não para
o estudante-soldado tratado como objeto no campo de batalha da escola.
Na relação B, ainda que
hierarquizada (devido ao sistema de fileiras da sala de aula e a autoridade
excessiva possuída pelos professores no filme), há um deslocamento do estudante-objeto
para o estudante-sujeito, deixam de existir corpos em branco e sem mente (ou
que não possuem nada de útil) para surgir (ao menos para a professora Pomeroy)
corpos pensantes, ideias rechaçadas pelo autoritarismo, protagonistas de alguma
coisa em algum lugar que só os estudantes são capazes de dizer. Como quando ela
diz ao diretor, ao ser demitida: tanto ela quanto a direção não compreendem os
jovens e estão perdendo todos. Outras
vezes, com o professor Monnitoff, Donnie não é tratado como louco, idiota ou sabe tudo; é alguém curioso, possui
dúvidas e uma motivação profunda sobre coisas que ninguém está interessado em
saber.
Do outro lado, além da relação
com professores, são relações entre colegas que marcam outro aspecto das
relações escolares. A disparidade entre Donnie e os colegas surge de sua
resistência em ser açambarcado por um mundo mortal, representado por quase
todas as pessoas, inclusive colegas da escola. Donnie pode ser considerado uma
representação da diferença, ou ainda, da loucura, a sombra da racionalidade e
dos ideais modernos de sociedade. Donnie é antipático em suas relações,
considero isso um tipo de proteção a sua identidade.
Donnie incorpora o caos como uma
brincadeira. Seu caráter caótico mostra-se pela tentativa de afastar as
pessoas, de desconcertá-las ou provocar um choque desagradável nelas. E não é
diferente nas relações familiares, e talvez, por isso, seja obrigado a
participar de sessões de terapia.
Donnie tem amigos. Parece algo
superficial e sem importância para ele.
Já Frank é um personagem
misterioso, uma fantasia de Donnie trazida do futuro para alertá-lo sobre o fim
do mundo. Por ser um coelho, retrata simbolicamente o inesperado, a surpresa de
sair da rotina, e seguir o coelho (como faz a Alice do País das Maravilhas) é
tomar um rumo não planejado. Aqui, poderá ser confundido com destino ou algo
parecido.
Gretchen é cúmplice de Donnie,
como ela mesma diz, acha ele estranho, mas é o diz num elogio. Ficar próxima de
Donnie faz com que ela compreenda o incompreendido, o que faz bem para ele.
Por fim, a Dona Morte, ou,
Roberta Sparrow, escritora do livro que tanto cativa Donnie - A Filosofia da Viagem no Tempo - e a
personagem com uma das frases das mais impactantes do filme: cada criatura viva na Terra morre sozinha.
Roberta Sparrow sussurrando sua frase de solidão no ouvido de Donnie |
Duplo sentido
Na primeira aula de Pomeroy, Donnie lança sua interpretação sobre um trecho de The Destructors, de Graham Greene, no qual alguns garotos invadem uma casa e não roubam o dinheiro que encontram no colchão, apenas queimam-no. Nisto o garoto-que-se-esconde-entre-os-ombros fala “Eles [os garotos] dizem logo depois de inundar a casa e deixá-la em pedaços que a destruição é uma forma de criação. Então, o fato de queimarem o dinheiro é irônico. Eles só querem saber o que acontecem quando sacodem o mundo”. Razão que nos faz refletir sobre seu comportamento caótico e destrutivo, de não temer o que desorganiza e desestabiliza porque as coisas não acabam vazias num vácuo, formam-se coisas novas dos destroços. E Donnie completa dizendo “Eles querem mudar as coisas”, trecho que ajuda a compreender o próprio personagem, fazendo-nos pensar não apenas em resistência para manter-se, como para transformar.
Outro
diálogo que expressa essa mesma ideia sobre criação na destruição é quando
Donnie acompanha Gretchen para casa e no percurso diz “Bem, estou feliz que a
escola tenha inundado hoje”. Gretchen pergunta “Por que?”. Ele responde “Porque
nós nunca teríamos essa conversa”.
As coisas
deixam de ser o que são. A ordem sucumbe, existindo outro sistema de
organização. Subverte-se, assim, a linha entre amor e medo, expressa por
Kitty. Quando Donnie se irrita com ela e diz que é mais complexo é porque a
professora põe o amor como força criativa e o medo como força destrutiva,
quando, na verdade, Donnie teme o mundo, resiste contra seus impulsos violentos
de subsumi-lo e encontra poder para manter sua identidade no medo de perdê-la.
O amor, por sua vez, quando quadriculado numa ideia de normalidade (como amar), torna-se destrutivo para uma
identidade que ultrapassou essa norma de amor; o medo de Donnie torna-se o amor
a si próprio, enquanto seguir o caminho da amorosidade é autodestruição, pois
amar é doar-se de forma que os outros mudem o que ele tanto aprecia em si
mesmo.
Nesse duplo
sentido que existe entre o medo e o amor, como poderia Donnie marcar um X na Linha
Vital para indicar se uma situação é mais negativa ou positiva por estar
associada ao medo ou ao amor, respectivamente, se ambos se confundem? “Não se
pode dividir as coisas em duas categorias e negar o resto”, contesta Donnie.
Parece que
tudo acontece num grande ensaio deleuziano.
Professora Kitty e a Linha Vital do medo e do amor |
Educação para o mundo
real
Repetindo os passos de Durkheim,
os mais velhos educam os mais novos a obedecer as regras, preparam-nos para os
desafios do mundo real, aquilo que existe em potência não é considerado real,
somente imaginação. Como essa educação só acontece por uma hierarquia de
saberes, os mais velhos sabem mais que os novos e estão capacitados a instrui-los
simplesmente por que sabem algo que eles não sabem: pagar contas, criar filhos,
trabalhar e outras tarefas do mundo adulto. Isto abre margem, por meios
falaciosos, de afirmar a superioridade dos adultos sobre os jovens em todos os
aspectos da vida.
Os jovens
são encarados como um perigo para si mesmos, entregam-se ao medo facilmente e
fazem bobagens como fumar um cigarro, transar antes do matrimônio, afastar-se
de Deus ou engordar. Existem dispositivos de poder preciosos para tornar os
corpos dos adolescentes desconfortáveis, estranhos para si mesmos. Desde a
terapeuta de Donnie atestando sua normalidade psíquica até Jim Cunningham
apelando para sua patética sabedoria de dizer quando as pessoas sentem medo. Os
adultos parecem enxergar a alma dos jovens e estão certos em suas colocações,
constrangendo-os e deixando-os desconfortáveis.
Aceitar
todos esses discursos destrutivos ao ego seria ir de encontro à morte. Os
jovens, que aprenderam a respeitar os mais velhos, seguem seus conselhos. Se
eles apontam o medo, os jovens entendem como isto é prejudicial (compreensão
pelos recursos que a ideologia dos adultos oferece), logo, seguem todos os
rituais que garantem (dizem que garantem) maior felicidade.
Donnie é
capaz de diferenciar os adultos que agem por má-fé (como Cunningham) ou apenas
ignorantes (como Kitty) dos facilitadores (professores Monnitoff e Pomeroy).
Isto não faz dele um garoto iluminado, as sessões de terapia tem efeitos na
autoimagem de Donnie, fragmentando-a, pelo rótulo de anormal, afinal, se fosse como os outros não precisaria ir para as
sessões, percebidos na cena em que pergunta a sua mãe como ela se sente por ter
um filho louco. É evidente que isto incomoda Donnie. Não se identifica com os
outros, é a mais pura diferença entendida como loucura e medo.
Possuir
identidade é ser capaz de dizer “eu sou”.
Se a identidade de Donnie é a loucura e o medo, sua diferença é absorvida por
estes regimes de verdade (o poder-saber que emana dos discursos dos mais
velhos); passa a ser representada por uma identidade avassaladora da diferença
por pautar-se na igualdade dos termos.
Tudo o que
foge à regra/norma é visto como heresia no mundo da ordem conservadora, afronta
a ordem natural das coisas, sejam
novas ideias, novas palavras, novos costumes, novos hábitos etc.; porque as
coisas sempre foram assim, e sempre serão, condenando os jovens a um
mundo estagnado nos erros de seus mentores e tutores.
Os mais
velhos falam dos deveres e obrigações dos mais jovens como se falassem de uma
lei física: imutável. São prepotentes e duros em suas colocações, mesmo quando
não é imposto, como o pai de Donnie, no início do filme, ao criticar a escolha
de voto da irmã: “Bem, talvez quando você tiver seu próprio filho que precise
usar aparelho e não possa pagar porque metade do salário do seu marido vai para
o Governo, você se arrependa”. O que não deixa de ser uma desqualificação do
discurso.
Donnie não
se submete, cria controle onde não existia para desestabilizar os normatizadores e subverte a Verdade. Os
pontos sobre os quais discorro nesta parte são muito parecidos com
Considerações sobre Trainspotting, drogas, liberdade e absurdo (artigo deste
blog, aqui).
Foucault é um excelente nome para trabalhar temas como resistência,
indisciplina, poder e verdade.
Vale a pena existir?
Nosso mundo privilegia os
acertos. Somos condenados quando erramos. Sentimos vergonha de nossos próprios
erros. Sentimo-nos menores por errar, somos feridos por eles. Os versos da
música Quebrando os Dentes, da banda
brasileira Pato Fu, é ilustrativo nesse ponto: “As brigas que ganhei/ Nem um troféu/ Como lembrança/ Pra casa eu levei/
As brigas que perdi/ Estas sim/ Eu nunca esqueci/ Eu nunca esqueci”.
Os acertos estão reservados aos
mais velhos. Os erros, por sua vez, devem ser esquecidos, como se o erro não
criasse ou construísse, fosse pura destruição. São corrigidas as posturas, a
fala, ações, amizades, pensamentos e amores. O erro deixa de ser aquilo que
acompanha a verdade sobre as coisas para ser o motivo que nos distancia de um
mundo belo e ideal. A história que não pode ser prevista é substituída por uma
razão teleológica; existem coisas “certas” e “erradas”: quanto mais errado
estamos, nessa lógica, mais próximos da infelicidade, apenas o acerto nos
conduz para um mundo próspero.
Numa
perspectiva marxista básica, agir sobre o mundo é transformá-lo, e transformar
o mundo é criar novas ferramentas que nos possibilitam novas formas de agir,
por isso, novas formas de pensar nossas ações sobre o mundo; ao mudar o
pensamento nos transformamos, assim, narramos etapas de uma história. Como as
ações e as interações que elas proporcionam são diversas, os pensamentos podem
ser diversos. Se existe uma forma “certa” de agir sobre o mundo, não sabemos
como é, mas mesmo se encontrá-la, perceberíamos (nós enquanto humanidade) em
unanimidade que aquele é o modo certo de agir? Pensamentos teleológicos tendem
a ser rejeitados pelas ciências por incentivarem a ideia de destino, de que as
coisas estão prontas e não serão mudadas, basta seguir as pistas misteriosas
deixadas em algum canto do universo para alcançar o acerto.
Os adultos
gostam de dizer como o mundo é, utilizando-se de uma razão
ideológica que descarta um mundo que está sendo, e por isso é histórico.
Ao menos para Donnie, é histórico. Por uma perspectiva trans-histórica, há que
temer os erros. Todavia, se o erro é intrínseco à vida, rejeitá-lo não seria
uma forma de alienação? No mínimo, um medo desnecessário?
O erro
assombra pessoas convencidas de seu valor negativo. Reaparece como uma
tragédia, uma espécie de pecado que poderíamos ter evitado. São interpretados,
atualmente, como afetos, seu efeito é emocional, capaz de levar um sujeito a
meditar sobre suas escolhas, suas realizações, suas possibilidades, projetos,
sonhos, o que fez, o que deixou de fazer, o que ainda poderá fazer com o quem
fez e o que é impossível de ser realizado devido as ações passadas.
Gretchen e Donnie |
“E se você pudesse voltar no
tempo e trocar todas aquelas horas de dor e escuridão por algo melhor?”,
pergunta Gretchen à Donnie. Como se dor e escuridão fossem situações invasores
da Vida, reduzida ao prazer e satisfação dos desejos: o reino da pulsão de vida
eterna. O erro também é Eros, desde que saibamos que toda a Vida comporta
desprazeres e abdicação de nossa própria satisfação.
Somos o que somos porque vivemos
a vida que vivemos do jeito que ela se apresentou. A fantasia de Gretchen em
apagar os erros é querer apagar algo em si que o Outro desgosta. O erro marca
uma escolha e nem sempre poderia ser evitado, só o seria se fossemos diferentes
de quem éramos quando erramos, o que implica dizer que deveríamos, em alguns
momentos de nossas vidas, sermos outras pessoas que não nós mesmos para não ter
errado. Consequentemente, significa ter ciência de algo que pouparia o erro,
porém, tal ciência poderia ser adquirida no momento de reflexão após o erro, e
isto é formação e crescimento, o curso da vida.
O acerto está para a identidade
como o erro está para a diferença. Errar não marca destino, é história. O
acerto está próximo do poder, daí é tradição, moral, costumes e a norma culta
da língua. O poder pode escolher seu acervo de narrativas históricas a serem
reproduzidas, ao fazê-lo, exclui outras narrativas. Muito possivelmente, estas
tornar-se-ão o erro porque não repetem a história pretendida, a história
enquanto Mesmo.
A diferença repetindo-se sempre
igual deixa de ser diferença para ser o Mesmo. A diferença se repete no tempo
com conteúdo indefinido, ainda que obedeça a uma forma. Ao me utilizar do
conceito deleuziano de diferença, pretendo mostrar como ela é uma parte num
todo que escapa às regras e normas capaz de igualá-la a outros termos para ser
um termo de excelência num arranjo de regras gerais.
Por vezes a identidade fere a
diferença como o acerto fere o erro. A diferença não precisa subsumir-se à
identidade existente. Toda diferença nasce de uma identidade, mas não carrega
essa identidade por toda a vida se for capaz de separar-se dela para constituir
outra identidade: separar a parte de um todo para multiplicar-se em várias
partes e formar outro todo. Por sua vez, o erro não deve limitar-se aos
acertos, seria erradicar sua equivocidade à univocidade. O erro origina um
acerto enquanto acontecimento, espontaneidade, criação; o erro origina
identidade. O duplo sentido retorna na relação entre erro e acerto dinamizando
a diferença na identidade.
O mundo adulto e a resistência de
Donnie é uma perfeita pretensão de instalar a dialética hegeliana de negação ao
sujeito jovem para ser sintetizado num corpo que vive intensamente uma pulsão
de morte vestida com elegantes remendos de autorrealização. Todo jovem, assim
como Donnie, é convencido por discursos e outros recursos de uma sociedade mais
velha sobre o quão inevitável é a transcendência que seu Eu encontrará na
doação de seu corpo e mente para o Outro-solapador-das-liberdades.
Vale a pena existir num momento
em que os sujeitos e suas diferenças são indesejáveis? A diferença confunde-se
com a identidade; os comportamentos e ações são minuciosamente arranjados para
servirem uma ordem mecânica de como as
coisas deveriam ser, enquanto a liberdade com a qual a diferença se repete
multiplica as possibilidades de como as
coisas podem ser.
A juventude, representada em
Donnie Darko, reclama, mais uma vez, versos da banda Pato Fu: “Eu quis ser eu mesmo/ Eu quis ser alguém/Mas
não como os outros/ Que não são ninguém”. Há uma proposta de distinguir-se
do mundo-de-amarras, porém, a individualidade e o processo de subjetivação
estão em constante conflito com a ordem social que instaura modelos de
identidade.
Cheritta, na sua condição de
mulher gorda, tem em seu corpo o arquétipo de medo perpetuado por Cunningham.
Ela é o exemplo de toda a vergonha que tange as escolhas erradas, apenas por ser
gorda. Para deixar de ser gordo basta parar de comer (esta é a mentalidade
trazida pelo filme), pois quem come muito está tomado pelo medo. Com efeito,
Cheritta sente um mal-estar no seu Eu porque outras pessoas elegem-na
receptáculo de máculas. A garota tem pouco espaço para produzir-se enquanto
ser. São outros discursos que produzem significado no seu corpo-significante e
se reproduzem nele. O olhar que a jovem possui sobre si mesma não é suficiente
para convencer outros olhares que sua imagem pode coexistir no seio das várias
relações sociais.
Os conflitos de Cheritta não
estão apenas em sua imago e sim em todos os demais que a relembram como uma
deficiência. Ela o será até se adequar à norma ou que a mentalidade dos grupos
dos quais recebe os afetos percebam a relação de cumplicidade ao tentar moldar
o corpo dela. A agressividade de Cheritta é a de um sujeito sem reconhecimento;
como resposta à aniquilação, ela responde aos berros, literalmente, que existe
vida no corpo errante: o corpo se debate a cada furo de faca que é o sangrento discurso
regulador .
Ao tentarem exorcizar o erro da
humanidade tentam expurgar algo que define os sujeitos enquanto seres. O erro
não desaparece sem que o sujeito sinta uma parte de si indo embora. O mal-estar
que ronda a juventude é desse gênero performativo: ao serem levados a atuar
como pecadores questionam as crenças de sua espiritualidade pelos males que
tentam fragmentar sua essência. Numa tentativa de reconciliar-se com seu Eu,
agem com indisciplina, imoralismo, com inconsequência, imprudência e
desrespeito.
Donnie reclama uma ontologia
perdida para toda a juventude. Para identificar-se adulto seria preciso menos
um esforço de constrangimento a uma aceitação das redes de diferença. Em outras
palavras, paira um ar de deformação dos sujeitos para a condição de objetos, um
conflito que nunca desaparece com o sujeito, mesmo que retorcido, recortado,
atado, silenciado, subjugado, desqualificado, ridicularizado e mutilado. A
subjetividade sobrevive enquanto existir sentido para ser significado no devir
do sujeito.
Sempre haverá momentos de dor e
escuridão e a existência depende deles para a formação do Eu. Ao invés de
imaginar a morte, quem sabe somos capazes de depreendê-los a nosso favor
enquanto seres inacabados, como parte de nossa história, assimilação do mundo
em nós e construção de uma tragédia diferenciada que partilha sua temporalidade
com outras tragédias num teatro em que os personagens são ora escolhidos e ora
impostos, não por isso, somos impedidos de atuar de maneira imprevista um papel
decadente, fazendo do choro solitário uma performance da diferença a qual
apenas nós podemos executar.
Donnie no momento decisivo do dilema |
Solidão
A ideia de destino
atormenta as consciências que se consideram livres. No destino a liberdade é
anulada por atos predeterminados. Donnie, ao conversar com Monnitoff, procura
respostas para a existência da escolha, capaz de enfraquecer o destino. Neste
diálogo, Donnie encontra em Deus a liberdade, nele reside o poder de decidir o
caminho de todos; porém, é no caminho
de Deus (God's channel) que
o garoto acredita podermos fazer escolhas.
A necessidade da escolha
provêm da solidão como destino de toda criatura viva, segundo Roberta Sparrow
ao chochichar "Toda criatura viva na Terra morre sozinha" no ouvido
de Donnie. Nossa existência possui sentido porque é compartilhada, existimos
nas relações com o Outro. A morte é sacrificar as interações com o Outro.
Morrer é perder esse sentido criado coletivamente.
O que pensa Donnie da
morte?
Em sua sessão de terapia,
Donnie afirma que Frank matará alguém e que os céus se abrirão. Em resposta,
sua terapeuta diz: "Se o céu se abrisse de repente, não haveria lei. Não
haveria regra. Haveria apenas você e suas memórias, as escolhas que fez, e as
pessoas que tocou. Se esse mundo fosse acabar haveria apenas você e ele
[Frank], e ninguém mais". Já no início do filme Donnie espera pelo fim do
mundo, sem saber exatamente do que se trata.
De acordo com a terapeuta,
a solidão espera Donnie na forma de um diálogo interno, ao invés de puramente
nada o garoto continuaria a multiplicar-se em seu plano de imanência, num
horizonte de eventos recriando-se a todo instante a partir de si e de Frank
(sua razão interior, ou ainda, seu inconsciente tornado sombra). Ao menos
podemos fazer esta interpretação.
Falamos tanto sobre mundo sem sequer
conceituá-lo. Afinal, o mundo é objetivo ou subjetivo? O fim do mundo como
inquieta Frank é subjetivo: é o mundo de Donnie que acabará. O mundo são as
experiências do protagonista e todos os acontecimentos que constroem a
subjetividade dele; é o ponto de vista de cada personagem do filme, singularizado
em sua existência. Para os leitores deste artigo, o mundo é um conceito que nos
permite pensar as experiências dos personagens de Donnie Darko na tentativa de
pintar um quadro e chamá-lo totalidade
de perspectivas ontológicas, a
partir da interpretação deste autor que vos escreve (nada mais que outra
perspectiva reclamando sua própria singularidade).
A existência, por ser
compartilhada, exige atravessamentos de subjetividades (intersubjetividade).
Criar pontes entre mundos para comunicarmos nossa solidão, na qual somos
artistas de nós mesmos; emprestamos nosso olhar para produzir nossos cúmplices
num agenciamento de experiências. A morte está reservada para toda existência
que se justifica em si mesma, numa tentativa de imitar Deus, cuja existência
consiste em criar sem ser criado.
Sendo a morte a porta para
o fim porque Donnie escolhe ficar em sua cama sabendo o que acontecerá? Este é
o ponto mais difícil de ser respondido. Compreende um dilema, por sua vez,
consiste em escolhas. A análise não é um trabalho simples nesta altura.
Aplacar-se em sua cama não
seria um ato de desistência, por excelência; cabe aqui servir-se da liberdade.
A princípio, a morte de Donnie parece que diz respeito somente a ele, cabendo-lhe
a simples escolha de viver ou morrer. Na verdade, sua temporalidade provoca
efeitos no curso de outras vidas, de outros tempos individuais. Seu devir
mantém e transforma o devir-outro.
A vida de Donnie
apresenta-se num movimento circular de um devir-mesmo. Resignar-se com seu fim
rompe o ciclo numa espiral que continuará sem ele, na qual Gretchen vive. Donnie
lança mão do caos mais uma vez.
De todo modo, ele faz isso
por ele ou pelos outros? Ou pela Gretchen? Ou aceita que sua diferença só faz
sentido num lugar em que não há identidade para subjuga-lo? Ou, a visão mais
cruel, entende que sua vida é um mal por causar dor e solidão?
Por um lado, entendo que
ele tenta afastar-se do imprevisível incorporando-o para obter controle sobre a
situação. Como o caos é imprevisível, sua única certeza é que nada acontecerá
como antes. Por outro, o dilema existencial de Donnie põe em xeque sua
resistência; deixa de enfrentar o mundo para conservá-lo. Deixa-se devorar por
inteiro. O destino-acontecimento é a história reescrita pela liberdade de
escolha.
O garoto-caos não pertence
mais ao mundo de relações, vive como memória em algumas pessoas, é pura
representação imagética. Sequer Gretchen, que aceita a diferença em Donnie,
lembrar-se-á dele.
Todo o sentido de ter-sido (numa inversão de vir-a-ser)
perde seu propósito. Ao reescrever a história, Donnie opta por ser vazio, nada,
sem valor, no momento em que se passa o filme. Sua escolha insinua que ele não
se preocupa deixar de existir, como se fosse a coisa certa a ser feita. Do contrário,
o que o esperava senão viver desafortunadamente suas experiências? Se
estivéssemos na mesma situação de Donnie, abriríamos mão de nós mesmos apenas
pela sensação de ter o destino em nossas mãos? Mais assombroso: seria a morte
(deixar de existir) a única forma de vencer o destino?
Donnie após decidir pelo fim do mundo |
Últimas palavras
Seguindo as representações
discutidas até aqui, as identidades dos jovens estão excluídas do mundo adulto
e com vistas de inserir-se nele, é um destino inevitável. O massacre das
diferenças eleva a resistência entre o corpo-subjetividade e os discursos
dominantes. A criatividade existe na solidão do corpo, sempre incapaz de
comunicar tudo sobre si mesmo, sujeito à interpretações, distorções, recortes,
eliminações e representações do que pretende comunicar e apreender do outro,
por isso, uma diferença não é capaz de apreender outra, produz-se
incansavelmente, prolifera-se na própria substância a partir dos sentidos,
conhecimentos e conceitos encontrados nas interações e agenciamentos.
O mal-estar da adolescência e da juventude (de forma
geral) consiste na incompetência dos mais velhos de compreender a dimensão
subjetiva do corpo, representando-as por uma identidade deformadora das
diferenças, impondo uma forma incapaz de atender seu significado, provocando
agressividade, revolta e afirmação de si por atos inconsequentes (segundo um
juízo moral enunciado pelos adultos).
Será que o destino dos jovens seguirá o arquétipo de
Donnie? Serão os corpos des-subjetivados pelos dispositivos de poder a ponto de
deixarem de existir para si mesmos? Por sorte a diferença não tem fim, o que
propicia resistência. Todavia, Donnie, contemplado por sua diferença, escolhe
não resistir, apagando-a.
Referências
bibliográficas
Textos:
DELEUZE, Gilles. Logica do sentido. São Paulo:
Perspectiva, 2000.
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro:
Graal, 2006. FOUCAULT, Michel. Microfisica do poder. Rio de Janeiro:
Graal, 2007.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2013.
Filme:
DONNIE DARKO. Direção: Richard Kelly. Produção: Adam Fields;
Nancy Juvonen; Sean MacKittrik. Estados Unidos: Flower Films, 2001.
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