1ª atualização em 21/06/2017.
Semana passada presenciei a cerimônia de colação de grau de
minha turma de Pedagogia. Como faltavam algumas disciplinas para me formar eu
não estava de beca, consegui um lugar na plateia e acompanhei o decorrer do
evento. Além de todo o regogizo que esse momento significou para os recém
titulados pedagogos e professores, seus mestres, amigos e familiares, chamou-me
a atenção os discursos: os estudantes dividiam-nos entre os perrengues da vida
universitária, a honra que significava estar diplomado e a importância de sua
profissão para a sociedade; os professores parabenizaram os estudantes em seus
discursos e exaltaram seus esforços, todavia, reservaram linhas para
desmistificar os caminhos da profissão do educador e a área da educação.
Interessou-me
realizar um exercício de sintetizar todas essas falas num texto original e de
articulá-las no formato de um discurso de
colação de grau, procurando criar pontes entre a visão que educadores nutrem
da educação para um público diverso que, muitas vezes, desconhece os propósitos
e interesses da educação e sem conhecer a profissão dos educadores, em
particular os professores.
Eu
começaria dizendo
Boa
noite aos presentes: familiares, amores, amigos e cúmplices.
É
com muita honra, como orador desta cerimônia, que venho provocar palavras de
alegria e comemoração, bem como palavras de advertência e reflexão.
E prosseguiria com
É
sabido que a vida assemelha-se à música, possui intensidade, discriminando sua
leveza ou dureza; altura, que compara, divide e agrupa os sons entre si;
duração, pois cada passo e cada ação têm começo e fim na partitura que tocamos;
e o que me encanta mais, a vida tem timbre, a característica especial de cada
som, a particularidade de cada ser que compõe esta magna orquestra de maestro
oculto.
Ver
música na vida é importante porque vemos arte, sentimos cada afeto como uma
melodia. Não apenas sentimos as melodias como criamos algumas, e a beleza disso
tudo é que acontece sermos músicos e musicistas no instante em que a arte do
outro alcança nossos sentidos, daí sorrimos, choramos, gargalhamos, nos
expomos, nos escondemos, nos preocupamos, trememos de felicidade, raiva ou tristeza,
quiçá nos surpreendemos.
Embelezar
tanto um discurso parece exagero, mas é porque não estamos acostumados com
estas guloseimas. Simone de Beauvoir escreve em suas memórias que “Pela boca, o
mundo entrava em mim mais intensamente do que pelos olhos e pelas mãos”, e
acrescento que um mundo de música é inteiro comestível e pode devorado por
todos. Consiste num exercício sinestésico bem reconfortante.
O
que comemoramos aqui senão o ritual mais esperado pelas famílias? Não lhes
parece estranho que dos nossos estimados 80 anos de vida a música de todos
alcance tanto furor e estridência no ingresso dos jovens à graduação, e depois
no final dela? São, estimo, 4 a 7 anos de composição, e nem passamos esses anos
todos estudando e assistindo aulas, recebemos o título de universitários e aí
se inicia um allegro; sem tardar
torna-se prestíssimo com anima num
intervalo de fusa. Ou seja, nosso maior momento de prazer é estar na
universidade ou ver nossos filhos na universidade.
Não
importa que as provas sejam difíceis, os trabalhos cansativos, os noturnos nos
persigam durante as semanas de provas e os professores sejam péssimos regentes.
Vale mais ser parabenizado pela conquista, receber o prestígio e a honra do
reconhecimento para o sucesso. Sentimo-nos gigantes e respeitados,
desbravadores de um mundo mágico.
Espere
até pronunciar novos sons, desses que só a universidade ensina. Vão rir. Dirão
que na partitura é bonita, mas a execução é impossível. É como falar que a
universidade deve ser de todos e que o vestibular nega o direito à educação por
ser meritocrático. Nossa intenção é que sejam notas mínimas num andamento lento,
e sabe-se lá como convertem esta ideia numa sequência maluca de semifusas
arpejadas com fantasia.
Aliás,
existe um mito de que pedagogia é fantasia, logo é tudo imaginação, coisa da
cabeça dos pedagogos. Porém, se nós pedagogos não compomos nada coerente, quem
compõe? Bom, todos os outros que não são pedagogos. Eles são empresários,
economistas, engenheiros, médicos, vendedores de bugigangas, motoristas de
ônibus, garçons e, por incrível que pareça, nossos pais. Por que as pessoas são
capazes de gerar filhos elas interpretam isto como sinônimo de saber educar,
que é, possivelmente, a mentira mais bem contada desde a invenção da
propriedade. Não sintam-se atacados, trago apenas provocações.
O
que me preocupa não é que as pessoas estejam sendo moldadas por suas famílias,
eu tenho uma família também, e eu não seria o que sou sem eles. A questão é que
o mundo de hoje é um mundo sem arte, e quando aparece alguma cor ou som novo
nele é desmentido com tamanha rapidez por um “o mundo não é assim!”, “onde
foi que você aprendeu isso?”, “isso é
besteira!” e por aí vai.
Pelas
muitas coisas que já ouvi, existem duas verdades sobre o mundo, é um princípio
essencial, ou ele é triste ou alegre, e a intenção de sua harmonia também,
impossível coexistirem. A cada novo dia percebo mais pessoas desistindo de suas
vidas, de si mesmas, como se elas fossem pouca coisa nesta orquestra só porque
executam uma batida no tambor a cada oito compassos, e lá na primeira fila o
violinista esteve sempre em destaque atraindo todos os olhares da plateia para
sua performance.
Sentimo-nos
injustiçados, porém, as coisas estão além do bem o do mal, para mencionar
Nietzsche. A música pode ser alegre e triste, ao mesmo tempo, e ela nem sempre
tem som, também tem pausas. A vida é dotada de um silêncio com o qual não
estamos acostumados a lidar. Os melhores músicos e musicistas não são aqueles
que possuem uma técnica invejável de arpejo e tocam tão rápido quanto possível,
senão aqueles que relaxam bem suas notas e permitem que possamos saborear sua
criação.
Seguindo
orientalismos, simplifico o mundo numa alternância de tensão e relaxamento, e
não poderia ser diferente na música. Da mesma forma é nossa responsabilidade
enquanto educadores provocar a tensão e o relaxamento e mostrar como conviver
com o soar de instrumentos diferentes: de um contrabaixo realçando as notas
graves do violão até uma voz cuja performance diferencia-se daquela da flauta,
ou ainda, como dois tenores podem executar linhas diferentes para uma mesma
canção.
Percebam
que nós não ensinamos a tocar os instrumentos, nossa ocupação é com uma
filosofia de arranjos e conceitos musicais. Nós desmentimos que rap é coisa de
pobre e funk, de puta; que rock é música de macho e “boiola” ouve pop. Quando
nos recusamos a ouvir esses gêneros, nos recusamos a experimentar uma arte sem
compreender porque ela é tal como ela é. Se a música é ruim porque alguém
escutaria? Porque música, assim como educação, não é sobre bem o mal, certo ou
errado, é de saborear, degustar e provar tudo o que é possível, de abocanhar todas
as guloseimas.
Não
é do meu interesse dizer para uma criança como ela deve comer seu doce, no
final de tudo apenas perguntarei “O que
você achou?”. Caso ela não consiga apreender a comida intervirei com “Quer ajuda? Posso mostrar como eu seguro?”.
Certo
estava Sartre: “O inferno são os outros”.
Os outros que fazem a cabeça de nossos filhos; os outros que conquistam a vaga
na universidade que deveria ser minha; os outros que machucam, deixam-me triste
e apontam meus erros; os outros me apequenam, me diminuem; agora entendo que
são os outros que não permitem que eu seja quem eu quero ser e quem eu sonhei
ser.
O
outro quer me ensinar como eu devo tocar minha própria canção: decide a
marcação do compasso, o intervalo de notas e todo o resto. Depois pede que eu
reproduza. Nossas crianças são obrigadas a isso e nós professores também, mesmo
depois de formados.
Aí
percebemos que estamos todos falando sobre poder quando nos iludimos achando
que somos grandes conhecedores de alguma coisa. Ao dizer que é melhor alterar o
compasso para um 4/4 é devido a não acharmos o 3/4 da valsa, conveniente, e
pena daqueles que se aventuram numa apresentação pública de um 3/2.
15/8
então é piada! Onde já se viu? Faça na sua casa, ninguém precisa presenciar
isso!
Cremos
que dançamos a mesma música e que todos deveriam ter uma performance parecida.
No fundo, todos gostamos de jazz, que é nada mais que a melhor organização
possível das diferenças. Nele são bem-vindos os improvisos, a mudança de tom,
instrumentos desrespeitando a métrica da música e tudo o que há de mais diverso.
E como é incrível ouvir um show de jazz!
Como
já ouvi de um professora querida, numa das aulas de pedagogia, existe uma
grande diferença entre um improviso de um bom instrumentista e de alguém que
mal conhece seus rudimentos. Como pedagogos, nos dedicamos à teoria musical da
educação e ao solfejo, nossa performance não é exata, todavia temos um bom
ouvido para saber quando a melodia está desajustada e sabemos corrigi-la. Se
não soubermos, temos material para preparar e estudar minuciosamente cada
detalhe de uma nova partitura da aula. Caso os alunos não sigam o previsto,
conduzimos a apresentação com uma virada de bateria, marcando a transição entre
o fim de uma música e o começo de outra. Educação é arte, também é,
surpreendam-se, ciência. Antes de dizer que nossa música soa estranho e que
deveríamos mudá-la, pense que isto é tão complexo quanto dizer ao físico que a
teoria do Big Bang carece de validade para suas proposições e por isso deveria
ser abandonada ou reformulada.
Claro
que nós não podemos afastá-los, vocês todos, da educação, seria tamanha
violência que eu com certeza não receberia meu diploma se afirmasse isto sem
ressalvas. Não venham e digam que o que fazemos não presta, venham para compor;
queremos instrumentistas, podemos rever passagens na composição para
encaixá-los e tornar a música mais bonita, o que não precisamos é de alguém que
queira reescrever toda a partitura sem nunca ter tocado uma linha dela. Não
queremos ensiná-los a tocar música, apenas temos um estilo e gostaríamos de
preservá-lo, vemos que é a forma mais frutífera de musicalizar nossas vidas.
Para muitos a música parou nos
clássicos, como Beethoven, numa época em que a disciplina é importante,
rigorosa e valorizada. A música, entanto, continuou transformando-se, vimos
coisas maravilhosas surgindo no século XX e ainda hoje nos maravilhamos com
sons do nosso tempo.
Quando falo de pedagogia quero que
saibam dessa boniteza toda. Não precisam ter medo de nossa música. Se vocês
permitirem ouvir nossos sons perceberão que nossa motivação são sons de
reflexão, possibilitando às pessoas levarem suas vidas de forma plena e
realizada, a se encontrarem no silêncio das notas e a explorarem a si mesmas em
qualquer tom, até sentirem-se satisfeitas com quem se tornaram e com as pessoas
que se harmonizam com elas, principalmente as mais dissonantes.
Em
algum lugar a dissonância conquista o estado de harmonia, passando a ser
agradável. A música não é bonita por natureza, depende da experiência musical
de seus ouvintes. Se tudo é música, por mais estranho que pareça, não vejo
porque praticarmos tirania contra as dissonâncias, precisamos de tempo para nos
emocionarmos com a obra toda, devemos escutá-la até o final, escutar sentindo
profundamente todo o peso de cada nota. Toda dissonância é uma harmonia.
O
mundo deve ser tão gostoso de se viver nele a ponte de tudo o que
experimentamos nele ter um duplo sentido, nunca sabendo se comemos palavras ou
falamos comidas, como diria Deleuze, ou ainda, se compomos vidas ou vivemos
sonetos.
É
difícil compreender a educação, ora ela fala das coisas como se fosse o paraíso
agradável do céu ora tudo é um grande inferno destinado sempre às chamas da
punição e à crueldade. A educação, como eu faço aqui, tem um pouco dos dois,
ela acredita em humanidade e não perde de vista as práticas desumanizantes que
atrasam seus objetivos. Citando Carl Jung: “Qualquer
árvore que queira tocar os céus precisa ter raízes tão profundas a ponto de
tocar os infernos”.
A
educação não precisa ser um inferno, mas num momento em que ter poder e certeza
constituem armas poderosas, devemos deixá-las de lado, nesse lugarzinho que
lhes disseram que se chama céu, e ingressar num inferno que não é exatamente o
que dizem por aí, ao contrário, fará de todos nós pessoas mais conscientes e
completas em nossas relações, pois na educação temos cautela com a certeza, preferimos
o erro como condutor, e o poder é distribuído, isto é, não temos ditadores ou
algo que o valha, e por este mesmo motivo não somos nós educadores que mandamos
na educação, nós temos ótimas diretrizes e um acervo excepcional de referências,
este é o nosso diferencial. A educação fazemos todos e fazemos juntos.
Nós, pedagogos, nos orgulhamos do
que fazemos e nossos objetivos são reais. Tocamos melodias contra a injustiça,
a pobreza, o preconceito, a desigualdade, a violência e a barbárie. Não vejo
porque não manter-se separados, sem contar que temos um conhecimento valioso
que podemos compartilhar com vocês para transformar nossas existências.
Queremos fazer do mundo um lugar onde todos queiram viver, por isso nos
formamos aqui hoje.
E
encerraria com
Obrigado pela paciência de ouvirem sobre a arte da educação. Boa noite para todos nós, artistas.
Semana passada presenciei a cerimônia de colação de grau de minha turma de Pedagogia. Como faltavam algumas disciplinas para me formar eu não estava de beca, consegui um lugar na plateia e acompanhei o decorrer do evento. Além de todo o regogizo que esse momento significou para os recém titulados pedagogos e professores, seus mestres, amigos e familiares, chamou-me a atenção os discursos: os estudantes dividiam-nos entre os perrengues da vida universitária, a honra que significava estar diplomado e a importância de sua profissão para a sociedade; os professores parabenizaram os estudantes em seus discursos e exaltaram seus esforços, todavia, reservaram linhas para desmistificar os caminhos da profissão do educador e a área da educação.
Obrigado pela paciência de ouvirem sobre a arte da educação. Boa noite para todos nós, artistas.
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