Introdução
Às vias de ser instituído nas
escolas públicas da cidade de Campinas (SP), o programa Escola Sem Partido põe
em movimentação política a escola pública como um campo de disputa para
determinados agentes a partir da regulação de seu currículo (BOURDIEU, 2009b;
KATZ e MUTZ, 2017), motivados pela perseverança ideológica de uma educação que
respeite a vontade das famílias das crianças do nível da Educação Básica. Resta
saber se dentro de um ciclo de políticas educacionais (BOWE, et al., 1992) os profissionais da
educação serão favoráveis à “ideologia de gênero” e, possivelmente, da adoção
do PLO 213/2017. Portanto, faremos algumas considerações a respeito,
antecipando pesquisas que serão feitas por nós com os gestores escolares da
rede pública de Campinas[1] e
construindo uma práxis pedagógica com
ênfase à identidade de gênero para refletirmos sobre a “ideologia de gênero”
defendida por alguns agentes sociais nesse jogo político.
As articulações feitas aqui entre
política e gênero importam porque é uma categoria justificada no PLO 213/2017
por seu caráter doutrinário:
É fato notório que professore e autores de livros
didáticos vêm-se utilizando de suas aulas e de suas obras para tentar obter
adesão dos estudantes a determinadas correntes políticas e ideológicas; e para
fazer com que eles adotem padrões de julgamento e de conduta moral – espacialmente moral sexual -
incompatíveis com os que lhe são ensinados por seus pais ou responsáveis.
(CÂMARA MUNICIPAL DE CAMPINAS, 2017d, p. 4).
Dado esta
justificativa, também é essencial apresentarmos o gênero como uma categoria em
vias de negociação, interlocução e interdição entre os diversos agentes deste
campo político.
Metodologia
Enunciamos um circuito entre
Estado-Educação-Sociedade[2], em
que seus possíveis representantes para nosso referencial analítico são o poder
jurídico-legislativo, as escolas e a família. Há que notar como os discursos
religiosos do Estado são trazidos por representantes dessa Sociedade, como o movimento
Escola Sem Partido (ESP), por sua vez, apoiados por mais civis, como o Movimento
Brasil Livre (MBL), por incentivar uma heteronormatividade que conserva regulações
familiares nesta mesma Sociedade. A Educação, por outro lado, cruza-se com a
Sociedade e com o Estado, nos interessa mais especificamente a figura do gestor
escolar, agente que nos parece imbricar-se mais imediatamente neste nó, dado
sua função intermediária entre as políticas públicas e sua posição pedagógica
(LIBÂNEO, 2013), além de constituir-se um sujeito com uma narrativa anterior a
sua função de gestor, ou seja, formado no interior de uma Sociedade
primeiramente como um sujeito pré-profissional, cuja educação primária é dada
pela família (BOURDIEU, 2009a; TARDIF e RAYMOND, 2000).
Em
trabalhos anteriores (AUTOR, 2016, 2017) ressaltamos a importância de
conceituar o gênero a partir da categoria corpo.
Persistimos com este tipo de escolha teórico-metodológica destacando a
importante participação dos gestores escolares na incorporação, resistência ou
subversões às políticas pautadas numa “ideologia de gênero”, o que requer
compreender que corpos ela enuncia, regula, edita e permite aparecem na
Sociedade e, por sua vez, na Educação.
Estado e Educação:
aprovação do PLO 213/2017 em Campinas (SP)
O ESP foi fundado em 2004
(JUSTIÇA EM FOCO, 2017) e é coordenado por um procurador do Estado de São Paulo
e ex-acessor do Supremo Tribunal Federal entre 1994-2002, conhecido como Miguel
Nagib.[3] É
também autor do Projeto Escola Sem Partido (PL 2974/2014) que tramitou na
Assembleia Legislativa Estadual do Rio de Janeiro, com modelos estaduais e
municipais de projeto. Contou com a defesa em plenária do deputado Flavio
Bolsonaro (PSC-RJ), o qual encomendou o projeto com Nagib (BARRETO, 2016). A
tramitação do projeto ocorreu em vários estados brasileiros[4]
com vários outros nomes, como Escola Livre em Alagoas, por exemplo, onde
aconteceu sua primeira aprovação no país, e “são discutidas leis similares em
Amazonas, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, São
Paulo, Rio Grande do Sul e no Distrito Federal, segundo levantamento do
Movimento Professores Contra a Escola Sem Partido”, algumas delas já aprovadas
no momento em que escrevo (BEDINELLI, 2016a).
Através da bancada evangélica
chega ao Estado de São Paulo um embate pela retirada da palavra “gênero” do
texto do Plano Nacional de Educação no dia 25 de agosto de 2015, com a
aprovação de mudanças no texto que eliminavam não apenas “gênero”, mas também
outras palavras relacionadas à sexualidade, como “estereótipos sexuais”
(BEDINELLI, 2015b).
Estes dois
movimentos convergem no uso de uma mesma concepção, a “ideologia de gênero”, a
partir do qual se subtende um conjunto de ideias, valores e noções que guiariam
a sociedade à derrocada da família, da moral e dos bons costumes. O ESP propõe uma neutralidade política e
religiosa à escola que se mostrou hostil às ideologias da Esquerda política,
embora sustentada por legisladores cristãos (AQUINO, 2016). Mostra-se,
portanto, partidária em seu antipartidarismo.
Autores
marxistas são execrados pelo movimento, bem como qualquer alusão às
sexualidades e outras representações de gênero que não estejam imbricadas na
heteronormatividade, assim, os homossexuais, travestis, transgêneros e
transexuais são abominados no discurso do ESP, que encontra seu eco na voz dos
parlamentares evangélicos que bradaram “Respeito
sim! Gênero não!” aos defensores de uma escola sensível (no sentido
pejorativo da palavra) à temática de gênero (BEDINELLI, 2015b). Neste mesmo
momento político desaparecem menções ao “gênero” no texto da terceira edição da
Base Nacional Curricular Comum em sua discussão, desviada do Ministério de
Educação para a Câmara dos Deputados (SILVA et
al., 2017) e é mencionado um novo rigor de seleção para o Plano Nacional do
Livro Didático, tomando todo cuidado para que as imagens e os textos dos
materiais não sejam doutrinadores (BARRETO, 2016).
Desta maneira encontramos
aderência de deputados e senadores, como Magno Malta (PR-ES) e Erivelton
Santana (PSC-BA) (JUSTIÇA EM FOCO, 2017) ou do deputado Izalci Lucas Ferreira
(PSDB-DF) ao projeto (BEDINELLI, 2016b). Outros movimentos sociais,
declaradamente apartidários em sua origem e difusores da “ideologia de gênero”,
como o MBL[5], defendem
ideais conservadoras, assim como no caso de Erivelton Santana afirmando que o
gênero é um direito que parte da escolha individual (BEDINELLI, 2016a). Sem
mencionar, ainda, os ministros, que a exemplo particular de José Mendonça Filho
(DEM), convidou Alexandre Frota para discutir esse projeto, sendo este
convidado conhecido por “suas posições
extremistas contra a esquerda e por uma aparição na TV em que disse, em um
quadro humorístico, ter estuprado uma mulher” e não por sua especialidade
técnica no campo da educação, que, por acaso, é nenhuma (BEDINELI, 2016b).
Na cidade de Campinas (SP) foi
elaborado parecer favorável ao projeto, da autoria do vereador Tenente Santini,
pela Comissão de Constituição e Legalidade da Câmara Municipal no dia 21 de
agosto de 2017 para o projeto de lei 213/2017 (CÂMARA MUNICIPAL DE CAMPINAS,
2017b). Foi aprovado numa primeira votação no plenário da Câmara de Campinas no
dia 04 de setembro de 2017 (MARCHEZI, 2017), ainda que fosse “declarado inconstitucional pelo Ministério
Público Federal” ou “deseducativo e
autoritário” segundo parecer da Faculdade de Educação da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp) (CARTA CAPITAL, 2017).
Seguindo a sequência de eventos,
no dia 06 de setembro de 2017, Marcos Bernardelli (PSDB) inicia o
protocolamento de um requerimento assinado por todos os vereadores de Campinas
solicitando a retirada do projeto Escola Sem Partido da tramitação,
anteriormente aprovada, e em regime de urgência (CÂMARA MUNICIPAL DE CAMPINAS,
2017e; G1 CAMPINAS E REGIÃO, 2017).
Em outubro a Câmara Municipal da
Campinas acompanha debates propostos pelo Tenente Santini sobre o projeto no
mês de outubro, que viria a ser aprovado no dia 22 de novembro pela Comissão
Permanente de Educação Cultura e Esporte, pronto para ser instituído assim que
sejam feitas as alterações necessárias no texto da lei a respeito dos locais
onde serão colocados os cartazes com os deveres
do professor; ao contrário da proposta original do ESP, esse cartaz não
será afixado nas salas de aulas, apenas em locais julgados necessários, como
sala dos professores ou salas de gestão (CÂMARA MUNICAPL DE CAMPINAS, 2017c;
2017f). Dias antes, em 10 de novembro de 2017, surgia uma primeira reunião para
discutir a regularização do Ensino Religioso Confessional, com a característica
de ser facultativo nas escolas públicas (CÂMARA MUNICIPAL DE CAMPINAS, 2017a).
Educação, gênero e
currículo
O gênero participa ativamente do
currículo escolar, esteja ele escrito ou não. Os gestores escolares, mediadores
entre os ambientes escolares e o Estado, ocupam-se de harmonizar a infra e a
superestrutura escolar. São os profissionais
de educação cuja função consiste em organizar os espaços e tempos pedagógicos
da escola para o aluno-corpo (LIBÂNEO, 2013). Esta lógica pertence também ao
currículo enquanto discurso produzido numa relação de poder que permite
organizar experiências pedagógicas na interação com o aluno, produzindo
sentidos que não são capazes de direcioná-lo totalmente aos objetivos
planejados pelo educador (LOPES e MACEDO, 2013).
Portanto, a sistematização das experiências
desejáveis às crianças a partir de diretrizes e orientações políticas do Estado
e da própria realidade escolar é um trabalho administrativo e pedagógico do
qual os gestores escolares se encarregam. Bourdieu (2009a) nos alerta sobre o
caráter arbitrário do currículo, ele é produzido por um determinado grupo a
partir de sua própria cultura e pretende-se difundi-lo a outros grupos.
Consequentemente, as crianças nascidas nessas culturas específicas exigidas
pelo currículo escolar sentem-se familiarizadas com estas experiências,
portanto, serão melhores avaliadas comparadas às crianças que participam pela
primeira vez destas experiências.
A avaliação do gênero enquanto
performance cultural, entretanto, tem um efeito mais cedo dentro desse
processo, pois pode ser uma categoria que determina a avaliação do profissional
sobre seu aluno, e para isso, o corpo também requer uma avaliação para ser
classificado e corresponder a uma expectativa do professor. As falsas
associações intelectuais dos meninos com o raciocínio lógico-matemático e das
meninas com a leitura e interpretação de texto, vistos como dons do nascimento
ou naturalizações da espécie humana, vulgarizam-se sob o olhar mítico-sexual de
alguns profissionais da educação, incentivando, por exemplo, cursos de
engenharias para homens e cursos de licenciatura e pedagogia para mulheres, o
que ajudaria a explicar essa distribuição previsível de homens e mulheres em
cursos de formação universitária (MORENO, 2003).
Estado e Sociedade:
moral e religião
A aprovação do PLO 213/2017 pela
Câmara dos Vereadores de Campinas constitui, dentro de nossa perspectiva
política, um currículo corporal por possuir uma ideia absoluta de corpo, como
consta no excerto abaixo:
Art 2º O poder Público não se imiscuirá na orientação sexual
dos alunos nem permitirá qualquer prática capaz de comprometer o
desenvolvimento de sua personalidade em harmonia com a respectiva identidade biológica de sexo, sendo
vedada, especialmente, a aplicação dos postulados da teoria ou ideologia de
gênero. (CÂMARA MUNICIPAL DE CAMPINAS, 2017d, p. 1, grifos meus)
A associação
entre personalidade e sexo biológico é típica de uma cultura moderna
predominantemente heterossexual, logo, o artigo acima nos faz crer que a
não-heteressexualidade aparece como indesejável no discurso parlamentar
(BUTLER, 2017).
Fernando Penna, atual pesquisador
e divulgador das empreitadas antidemocráticas do Movimento Escola Sem Partido[6],
em entrevista com Renata de Aquino, relata: “Textos de pessoas do Escola Sem Partido falam claramente que eles acham
errado que apareçam famílias homoafetivas nos livros didáticos porque isso é
impor uma moralidade.” (AQUINO, 2016). Ainda, segundo Fernando Penna, na
mesma entrevista, o movimento deixou de ser apenas da alçada de Nagib e “está se tornando uma ideia”,
espalhando-se pelos deputados principalmente para demonstrar aos eleitores uma
boa representação política.
Neste cenário de disputa de
ideias, devemos reconsiderar a organização do trabalho pedagógico a partir dos planejamentos
da produção de sentidos desejáveis aos alunos pelo Projeto Político Pedagógico
da escola. Conjuntamente, existem sentidos não-planejados que acontecem na
escola dada sua dinamicidade e abertura à diversidade dos modos de ser na
escola, o que impede que o planejamento tenha um controle absoluto sobre o
cotidiano escolar e sobre seus sujeitos, ainda que seja uma forma muito útil
para prever situações que requerem intervenção pedagógica e estabelecer
orientações possíveis para a resolução dos conflitos dentro dos muros da escola
(LIBÂNEO, 2013).
Curiosamente, o corpo é uma categoria explícita no
currículo escrito das disciplinas de Educação Física e Biologia (FARAH, 2010).
A partir do corpo, pode-se começar a
perceber a abrangência do gênero num currículo escolar escrito, devido a isto
podemos sugerir pelas disciplinas de saberes as disciplinas corporais as quais
os alunos estão possivelmente sujeitos, num sentido de disciplina que se
aproxima de Foucault (2013), a qual acontece tanto por um currículo escrito
(organizado) quanto por outro não-escrito (oculto).
Isto se deve a uma atitude
política do currículo, que no cenário proposto pelo ESP também organiza e
oculta textos a respeito do que chamam de “ideologia de gênero” (RATIER, 2016).
O momento que desencadeia este tema da ideologia está marcado por uma
discordância de Nagib com uma aproximação entre Che Guevara e São Francisco de
Assis que a professora de história de sua filha fez para elucidar pessoas
extremamente fieis aos seus valores (BEDINELLI, 2016b). A figura de um santo
católico no mesmo patamar que um guerrilheiro revolucionário parece ferir o
espírito religioso de Nagib. Não apenas dele, como de muitos outros religiosos
nas câmaras municipais de todo o Brasil e no congresso nacional[7]
(BEDINELLI, 2015a).
A moral religiosa que se
posiciona contrariamente ao gênero nos planejamentos educacionais está baseada
num mito classificador, o qual diferencia anatomicamente meninos e meninas. Os
corpos diferenciados justificam lógicas de interações diferentes para com estes
corpos, pois são incentivados e tolerados diferentes tipos de ações entre um e
outro sexo, o que significa uma diferença na construção da realidade social
entre meninos e meninas (AUTOR, 2017; MORENO, 2003). Assim, ambos levam vidas
sociais distintas decorrentes da dominação oferecida pelo sistema sexo-gênero,
capaz de impor uma naturalização aos corpos como biologicamente determinado
(AUTOR, 2016).
Ainda sobre a moral religiosa,
podemos perceber no próprio texto da PL 213/2017 uma grande quantidade de
menções à moral e o respeito à religião:
Art 3º No exercício de sua função, o professor:
I - não se aproveitará da audiência cativa dos alunos para
promover os seus próprios interesses opiniões, concepções ou preferências ideológicas,
religiosas, morais, políticas e partidárias;
II – não favorecerá, nem prejudicará ou constrangerá os
alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas ou religiosas ou da
falta delas. (CÂMARA MUNICIPAL DE CAMPINAS, 2017d, p. 1-2)
A Sociologia de Durkheim (2000) é
relevante quando se propõe a descrever como a lógica de pensamento individual é
motivada por uma lógica produzida num grupo social. Transpondo para o caso de
Nagib e de uma parcela do apoio parlamentar-religioso ao ESP, sua consciência
coletiva justifica-se nos rituais de uma vida religiosa[8],
portanto, as ações individuais também estão envolvidas nessa lógica social.
Dito de outra forma: a religião ajuda esses agentes a viver, pois os faz agir
em prol daquilo que deve ser a vida.
O gênero também sobrevive pelas
ações dos sujeitos, não necessariamente dicotômicas, mas neste contexto
político o gênero é carregado de um discurso que opera por categorias masculinas
e femininas, matrizes de inteligibilidade (BUTLER, 2017). A moral religiosa cristã
neste contexto político reafirmam gêneros possíveis de serem vividos porque,
como argumenta Durkheim (2000), produz uma forma de viver a vida para manter a
ordem social instituída.
Educação e Sociedade:
poder e identidade
Práticas escolares podem
funcionar como práticas religiosas, no sentido em que a repetição do ato cria o
fiel ou aluno[9],
portanto, os cultos e rituais escolares são capazes de promover uma identidade
de gênero adequada à realidade social se a escola está em conformidade com as
políticas curriculares do Estado, completando o ciclo de políticas (BOWE et al., 1992). Será nesse culto onde o
aluno será introduzido à vida moral escolar e adotará os preceitos coletivos do
grupo e do ambiente os quais o sujeitam a uma ação-comum, por sua vez, mais
dissimulada quanto menos política ela se apresenta (quando se apresenta) ao
currículo, operando pela tradição e pelo costume. Uma violência que, segundo
Bourdieu (2009a), sustenta-se na legitimidade da cultura pela imposição da
cultura, com a única diferença que o gênero é imposto informalmente,
aproveitando-se da formalidade do ensino escolar para ser operacionalizado sem
maiores gastos de energia, uma verdadeira economia de várias ordens.
Na recepção à sociedade escolar que
se dá pela introdução aos cultos e participação dos rituais, o aluno é levado a
traduzir pela ação, por meios externos e visíveis, o que foi interiorizado.
Seria adequado retificar que a ação não apenas revela como contribui para
interiorizar sentidos do mundo objetivo: cria e recria o fiel, como confirma
Durkheim (2000), nunca de qualquer maneira, senão a partir das ideias coletivas
do grupo escolar nas práticas cotidianas desse aluno.
É por este raciocínio que se
formarão meninos e meninas nas escolas. Na realidade, esta socialização é
anterior à escola, tem início na família (BOURDIEU, 2003). A escola será mais
um espaço possível de reprodução destas ideias pelas ações, culminando numa
forma de pensamento adequado à divisão sexual. De forma mais dramática, pode-se
insinuar que a escola, assim como a Igreja, possui influência sobre a alma de
seus fiéis: ela ordena para o caminho da salvação.
Chamando Bourdieu (2009a), a
popularização da escola permitiu que ela fosse vista como libertadora, capaz de
gerar mobilidade social. A fé consolidada nas práticas escolares como
salvacionistas persistem sem, contudo, deixar de encobrir erros e mentiras
desse sistema de ensino nos quais consistem os esforços de uma ciência social,
segundo Durkheim (2000). Isto significa dizer: a escola libertadora é incapaz
de salvar todos os seus fiéis, mesmo os mais próximos do sagrado. Praticantes
devotos de corpo e espírito podem ser progressivamente recusados, rejeitados,
excluídos sob o argumento que não dominam com propriedade os conhecimentos
exigidos, não possuem destreza ou habilidade no manejo dos instrumentos
oferecidos, ainda que sejam persistentes e esforçados, correndo o risco de,
como bem nos relembra Bourdieu (2009a), serem escolares demais.
Prefere-se o dom e a inaptidão ao
esforço e à persistência. Relacionado ao gênero, poderíamos pressupor que a
relação com o sagrado seria incentivado de formas distintas para meninos e para
meninas por uma diferença nos ethos
dos alunos de sexos difenciados, ou seja, as expectativas em relação ao sistema
escolar e os valores profundamente interiorizados variam com o sexo, variando,
portanto, sua conduta escolar, mesmo que o capital cultural permaneça o mesmo (SILVA,
1995). As práticas de devoção decorrentes da divisão sexual são diferenciadas,
bem como suas visões de mundo.
Os cortes de cabelo, as mochilas,
as roupas, os acessórios, os brinquedos, e assim por diante, são alguns
capitais que distinguem meninos e meninas sem que seja preciso verificar
anatomicamente a presença do pênis ou da vagina. O estilo de vida da criança contribui
muitas vezes para representar seu sexo, orientando o tratamento de gênero das
pessoas dentro ou fora da escola e conformando-a a uma identidade sexual, ou
melhor, confirmando e reconfirmando seu gênero pela repetição performática
desse gênero socialmente aceito (BUTLER, 2017).
Ainda dentro desta perspectiva
diferenciadora do gênero, as meninas tornar-se-ão mulheres, apesar de constarem
as mesmas competências e qualificações que os meninos tornados homens, ou até
melhores, para uma vaga de trabalho, serão relegadas a trabalhos menores ou
menos recompensadores, ainda que tenham passado por uma educação escolar mais
disciplinada, que pela própria lógica escolar, seria mais exemplar (BOURDIEU
2009a; KERGOAT, 2010). Para Foucault (2013), a disciplina educará apenas o
corpo a ser útil e dócil, não promete privilégios ou grandes conquistas,
estratégia esta que serve em maior medida a quem planeja a disciplina, incluído
aqui seu sentido curricular.
Como já foi mencionada, a escola
não é o começo do gênero, ele poderia existir e já existiu no seio de sociedades
não-escolares. Entretanto, a escola apresenta uma realidade tipicamente escolar
do gênero, com práticas de gênero próprias dela e que numa sociedade escolarizada
tende a reproduzi-las. A escola certifica conhecimentos de meninos e
conhecimentos de meninas. Mais tarde, quando sejam homens ou mulheres, seus
trabalhos serão mais masculinos ou mais femininos de acordo com a quantidade de
homens ou mulheres neles presentes (BOURDIEU, 2003; SILVA, 1995). A tendência
do estudante será construir expectativas sobre si mesmo no sistema escolar, bem
como o futuro que esse sistema pode garantir. Assim, o gênero continua sendo
uma categoria essencial para compreender a divisão sexual do trabalho e como a
escola prepara os alunos para estas realidades permitindo a circulação dissimulada
de uma heteronormatividade responsável por enquadrar modos de ser.
Mesmo sem ter essa intenção, a
escola pode reforçar ideais de masculinidade e feminilidade pela experiência
escolar do corpo adequada à norma, a ação permitida. A homossexualidade, a
bissexualidade e outras sexualidades abjetas provavelmente serão apagadas do
cotidiano escolar ou assim será o desejo dos agentes mais ligados a moral
sexual descrita. O corpo da criança interessa porque, explica Foucault (1999),
a sexualidade se confunde com a disciplina e com a regulamentação da espécie,
dois elementos essenciais para o surgimento da norma. Em suma, a criança é uma
futura procriadora, mesmo que a escola não saiba lidar com a masturbação
infantil, histórias em que ela conta ter visto os pais transando, piadas
jocosas próprias e repetidas pelos mais velhos sobre sexo ou genitais, a
agressividade tipicamente masculina dos meninos, entre outros eventos, a escola
será chamada para responsabilizar-se por isto, não sem a possibilidade de
culpabilizar a família pela má conduta escolar dos filhos (BOURDIEU, 2009a).
Num sentido demasiado
foucaultiano, a escola possui poder e vontade sobre a vida da criança. Enquanto
biopoder, a escola exerce influências sobre o controle das massas, na produção
dos efeitos globais e é capaz de produzir previsões estatísticas com relação ao
gênero. Há uma eficácia na escola em fazer aparecer meninos e meninas graças às
tecnologias que elas dispõem, similar ao culto religioso descrito por Durkheim
(2000) que formará uma vida psíquica, um pensamento adequado ao social.
Pensamento esse que em Campinas passa a ser reforçado pelo PLO 213/2017 numa
incursão curricular do que devem ensinar os professores.
A ação-comum exigida pela Sociedade
passa a ser vista, aqui, como normatização, portanto, institui uma ordem
política e econômica de poder sobre o corpo.
Quando se diz que a escola tem poder de vida sobre o aluno pode-se inferir que
também possui algum poder sobre a morte deste mesmo aluno. Ela faz viver e
deixa morrer (FOUCAULT, 1999, 2014). Porém, faz viver apenas modos de ser que
sejam convenientes à Sociedade e oferece uma segurança guiada pelo sujeito
normatizado como menino ou menina que não ultrapasse as barreiras das
experiências de gênero oferecidas por seu destino biológico (PASSOS e BUTLER,
2015). A escola também mata seus alunos quando suas identidades de gênero não
se adequam às normas menino/menina, homem/mulher instituídas. As correções que
decorrem desse desvio, vício ou sacrilégio estão sujeitas à violência física
(que na situação dos alunos é mais comum entre seus pares, movidos por
preconceitos infundados) e moral (VINHA, 2000), provocando insegurança ontológica
da criança vista como anormal ou diferente.
Com efeito, o gênero naturalizado
só pode corresponder a resultados catastróficos de um racismo evolucionista
(FOUCAULT, 1999), redutor às ordens dos homens e mulheres heterossexuais,
regidos por dois princípios opostos, um masculino e outro feminino. Neste
sentido, um biologicismo apodera-se do pensamento coletivo para reproduzi-lo,
inibindo toda a multiplicidade do gênero.
A norma aproxima-se do profano
tanto quanto necessário, tem sua própria hierarquia: o homem é Deus enquanto a
mulher é seu nível mais baixo, ao tipo de Satã ou algum demônio (DURKHEIM,
2000). Por mais que esse tipo de pensamento possa apoiar-se na misoginia e no
sexismo, consciente ou inconscientemente, profano é o corpo que não é nem homem
nem mulher ou não guarda nenhuma semelhança com eles. Os meninos e as meninas serão vistos como
protótipos desses tipos adultos, por isso preocupar-se desde cedo com sua
educação moral e religiosa, como anuncia o ESP.
Articulando o pensamento de Durkheim
(2000), a mulher-Satã é sagrada porque justifica as práticas religiosas
dirigidas à Deus, de forma bem particular, nela está os esforços de reprodução
da espécie: seu ventre. Toda a diferenciação criada entre homens e mulheres,
meninos e meninas, serve para incluir o feminino num mercado importante para a
sociedade: o mercado da reprodução da espécie, do controle sobre os
nascimentos, modalidade própria do biopoder (FOUCAULT, 1999). Somados à
disciplina escolar, garante a transmissão de conhecimentos corporais pela
experiência de ser reconhecido como menino ou como menina na escola.
É trabalhoso à instituição
escolar adequar-se democraticamente a fé dos fiéis, principalmente das
famílias, principalmente quando estes alegam injustiças por esperarem que a
educação dos filhos corresponda ao seu ideal de educação, isto é, nem sempre as
concepções de educação entre a escola e a família são equivalentes (discurso
muito presente no ESP). Acrescentamos que os professores podem ser tomados como
líderes religiosos, pois eles ensinam a viver e a superar ou manter as
condições injustas de vida da família pela mobilidade social que o aumento de
escolaridade filho possa permitir.
Em relação às divergências que
possam existir entre a escola e a família, cabe mencionar outro artigo do PLO
213/2017: “Art. 3º V – respeitará [o
professor no exercício de sua função] o direito dos pais dos alunos a que seus
filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas
próprias convicções.” (CÂMARA MUNICIAPAL DE CAMPINAS, 2017d,, p. 2). Em
outras palavras, o Estado alia-se ao discurso de uma parcela da Sociedade (ESP)
para proteger direitos de outra parcela dela (as famílias) pela regulação da
Educação.
A práxis pedagógica e o educador
Podemos resumir as intenções do
Movimento Escola Sem Partido como uma tentativa de controlar e vigiar o
trabalho docente (KATZ e MUTZ, 2017), pronunciando seus interesses de construir
um ideal de sociedade através de um monopólio curricular que permita, a partir
da escola como objetivo e local de aplicação de seu discurso, desaparecer com
seus adversários políticos, criando um espaço propício para alastrar suas
próprias concepções religiosas e morais pela defesa da família brasileira
(FERNANDES, 2017). Também consideramos, dentro de toda a complexidade política
na qual estão envolvidos os agentes, que a propagação de um discurso sobre
“ideologia de gênero” possui a função de articulá-la à Esquerda política dita
marxista, sem nem explicar o que compreende por marxismo, dado as várias
perspectivas, interpretações e modificações desse pensamento dentro de círculos
de intelectuais desde Karl Marx (RATIER, 2016).
Percebemos um interesse em
vincular estas ideias ao Partido dos Trabalhadores (PT) a partir de um vídeo na
página inicial de um de seus sites[10].
Em outras palavras, o Movimento Escola Sem Partido procura desarticular a
legitimidade de um partido que representa uma oposição aos seus ideais, e ao
fazê-lo entra num jogo político em que outros partidos também interessados em
eliminar o partido idealizador das “ideologias de gênero”, o PT, realizam seus
esforços para transformar esses ideais em um programa com força jurídica,
investindo aí um poder político para a realização de futuras punições
incentivadas pela vigilância dos professores pela própria sociedade civil no
interior da escola (HEUSER, 2017).
No FAQ do mesmo site mencionado
acima, o movimento assegura que são “100%
sem partido. O que não significa que ele [programa Escola Sem Partido] não
contrarie interesses partidários. Naturalmente, os partidos e organizações que
aparelharam ilegalmente o sistema de ensino serão prejudicados pelo Programa.”.
Entretanto, Ratier (2016, p. 35) reafirma um posicionamento político do
Movimento Escola Partido ao sugerir, a partir de um levantamento de dados da
Nova Escola, que “11 dos 19 proponentes
de projetos inspirados pelo ESP [Escola Sem Partido] são ligados a alguma
igreja”.
O educador na condição de
trabalhador aparece, portanto, numa encruzilhada de interesses políticos, a
qual pode ser representada pelo circuito Estado-Educação-Sociedade que já
mencionamos aqui. O ciclo de políticas não está completo sem estes
profissionais (BOWE et al., 1992):
ainda que a cidade de Campinas (SP), somada às demais disputas deste mesmo tipo
no território nacional, tenha a aprovação do PLO 213/2017, estes profissionais
estariam dispostos a aumentar as tensões políticas no campo, fazendo da
Educação uma força autônoma no circuito, fazendo circular sua força de resistência
frente à Sociedade e ao Estado? As tensões provocadas gerariam divisões entre
profissionais das próprias escolas? Existirá um consenso entre a gestão e o
corpo de professores? Voltariam a acontecer ocupações dos estudantes em apoio
aos professores, pressupondo que sua possibilidade de ocorrência deve-se ao
fato deles terem atingido seus objetivos com este tipo de mobilização e pelos
afetos e estratégias advindos dela serem recentes (PAES, 2017)? Os estudantes
apoiariam os professores em sua luta, se houver?
Para todas estas perguntas, nas
quais o educador é protagonista dado nossa abordagem teórico-metodológica, é
necessário compreender como acontece a formação deste profissional e se ela
contribui para seu poder de resistência. Daremos destaque ao trabalho como
categoria que permite enunciar as intenções políticas do gestor escolar
enquanto educador, o qual repensa sua posição profissional e suas práticas
pedagógicas a partir de uma práxis.
Gostaríamos de fazer uma breve
diferenciação entre a doxa e a práxis. A primeira, conforme Bourdieu
(2009b) refere-se a um estado pré-reflexivo na qual a ação do sujeito é
motivada pela repetição da prática socialmente aprendida, característica muito
presente na Sociedade. Já a práxis,
aliada à perspectiva educacional, pode ser compreendida como “uma reflexão e ação verdadeiramente
transformadora da realidade, é fonte de conhecimento reflexivo e criação”
(FREIRE, 2012, p. 100). Desta forma, a práxis
implica uma atividade teórico-prática em que o educador questiona-se
conscientemente sobre os limites e possibilidades de sua prática pedagógica
(CALDEIRA, 2014).
A partir da práxis pedagógica o educador reafirma ou reformula sua prática no
espaço escolar. Entretanto, não o faz sem mobilizar saberes construídos em seu
período de formação, na prática cotidiana com a escola ou mesmo de um tempo
anterior a estas duas circunstâncias. Tardif e Raymond (2000) interessaram-se
por pesquisar a identidade dos professores e nos informam que ela está
constituída por dois períodos temporais complementares, o pré-profissional e a
carreira docente.
É conhecido que o trabalho possui
a importante característica de gerar transformações no trabalhador,
particularmente na constituição de seu pensamento, seria correto acrescentar
que esta ação também gera transformações no ambiente, envolvidos aí suas
características produtivas (SOUZA JUNIOR e TRGINELLI, 2017). O educador já
passou por um processo de educação, o que ressalta o caráter pré-profissional
do educador, cujos saberes práticos começaram a ser elaborados antes de ter
qualquer contato com a teoria propriamente dita. Através da vivência do
cotidiano escolar um aluno adquire saberes relacionados ao ensino (efeito das
mudanças que o educador provoca no ambiente) contribuindo, então, para uma
idealização dos valores, práticas e saberes envolvidos na prática educativa
(TARDFI e RAYMOND, 2000).
Estas idealizações serão seguidas
de uma teoria pedagógica durante todo o processo formativo deste profissional,
o qual poderá construir sua identidade profissional no uso de um trabalho
correspondente aos novos saberes aprendidos. Ressaltamos que as ações deste
profissional estão submetidas a apreciação dos estudantes, outros professores e
demais sujeitos inseridos no espaço escolar, os quais respondem através de mais
ações, conscientes ou não, ao trabalho pedagógico em questão. Estas diversas
ações confirmam ou negam as expectativas e eficácias do professor quanto ao
próprio trabalho, provocando alterações em sua identidade profissional. Para
Morin (2015), esta impossibilidade do sujeito de controlar plenamente os
efeitos de suas ações é denominado ecologia
de ações.
Entendemos que a escola
estrutura-se a partir de uma ecologia própria, onde os saberes profissionais
são testados, atestados, reconhecidos, tornados cotidianos por quem os pratica.
Ou ainda (como preferimos pensar estas práticas), pensados, repensados,
reflexionados, reorganizados, postos em dúvida, reavaliados, questionados pelos
próprios agentes e sujeitos das ações.
O campo político também possui
sua própria ecologia de ações, o que
significa dizer que nem todos seus efeitos podem ser previstos com exatidão. A
ação, agindo num meio, escapa à intenção de seu agente, sofre deformações, desvios
e ressignificações. Pode não produzir exatamente o que pretendia seu
idealizador, variando entre uma ação mais cotidiana (saberes mais repetitivos,
pouco inventivos) ou não cotidiana (saberes transformadores e criativos)
(CALDEIRA, 2014).
Como a práxis pedagógica exige um
posicionamento político do educador (FREIRE, 2012), os quais não estão
desvinculados dos saberes práticos profissionais e pré-profissionais desse
mesmo educador, parece-nos coerente pensar o seguinte sobre o educador: sua
consciência da prática pedagógica com a entrada do ESP no cenário
jurídico-legislativo de Campinas (SP) exige uma constante reflexão do próprio
profissional num campo de atuação política, pois ele corre o risco de ser
julgado politicamente por suas ações, ainda que sua intenção não corresponda às
denúncias pelas quais pode vir a sofrer. Esta situação vista pela ecologia de ações (MORIN, 2015), poderia
ser julgada injusta pelo educador e simpatizantes de sua luta, mas justa pelo
delator e por alguns legisladores. As ações dos professores, cada vez mais, devem
ser cuidadosamente pensadas por eles mesmos para que seus efeitos não gerem
consequências negativas para si, sujeitas a represálias.
Como já foi
mencionado anteriormente, nos parece que o gestor escolar possui uma importante
participação para gerar ruídos no canal comunicacional do campo político (MORIN,
2015) entre o projeto de lei que sai da Câmara Municipal de Campinas às escolas
municipais, isto é, os gestores escolares podem provocar resistências ao
oporem-se à implementação do PLO 213/2017 pelo uso de saberes advindos de sua
carreira e vida escolar, cuja concepção de educação pode ser contrária às
justificativas da lei (TARDIF e RAYMOND, 2000). Por sua vez, estes agentes
políticos podem ser seguidos pelo restante do corpo docente, ou ainda, ceder às
demandas do corpo docente que não deseja ser vigiado ou punido por agir
seguindo sua práxis pedagógica.
Também podem somar-se às demandas destes professores, constituindo um corpo
político-escolar unido em seus interesses profissionais.
Em resumo, as forças religiosas,
moralistas e conservadoras do Estado aliadas a segmentos da Sociedade que
espelham seus ideais podem encontrar resistências na Educação. A aprovação da
PLO 213/2017 pela Câmara Municipal de Campinas encontra em seu trajeto a gestão
escolar, logo, a implementação depende de uma ação de harmonização por parte
dos gestores para que se cumpra a lei.
Por outro
lado, é por uma prática pedagógica imbuída da práxis que se recusa uma imposição, regulação ou força ameaçadora,
pois pede um enfrentamento. Chega-se ao momento de medir forças para fazer
sobreviver os corpos que recebe o
poder da lei. A práxis pedagógica
oferece-se como uma estratégia de reflexão que oferece uma luta de resistência
contra as tentativas de um biopoder (FOUCAULT, 2014) que tenta suprimir gêneros
e sexualidades nas escolas. É necessário perceber como esse poder sobre a vida
acontece sob dupla ação: controle do gênero e das sexualidades pelo controle do
trabalho pedagógico nas escolas, sufocando a práxis e determinando o currículo escolar.
Relembramos
que os educadores também são atravessados pelo gênero, eis que o PLO 213/2017
diz respeito não somente aos corpos
dos estudantes, mas também dos corpos
dos educadores, como assegura Louro (2011). Acreditamos que, em maior ou menor
medida, a práxis pedagógica dos
educadores está relacionada também ao seu gênero, o qual participa da
trajetória pré-profissional desse agente, contribui para constituir sua
identidade profissional e suas prioridades em relação ao currículo escolar.
Possivelmente o gênero interfere nas práticas e estratégias de resistência ou
de conformidade adotadas em relação ao PLO 213/2017.
Considerações finais
Para além de um sistema cego às
desigualdade, cujas tendências são favorecer as sexualidade já favorecidas e
desfavorecer as desfavorecidas, numa releitura de Bourdieu (2009a), a
corporeidade no campo da educação está sendo disputada por diferentes agentes
em diferentes campos, cada um deles com suas próprias divergências internas,
mas capazes de dirigir forças políticas mais ou menos eficazes no esforço de
determinar seus interesses sobre a (in)viabilidade de assumir uma “ideologia de
gênero” nas escolas. A práxis pedagógica
requer um corpo mais plural, sem tantos limites, interdições e imposições de
poderes partindo de uma matriz heterossexual.
A partir de futuras pesquisas
preocupadas com entrever as relações dos gestores no circuito
Estado-Educação-Sociedade poderemos compreender que poderes lhes faltam e quais
já possuem. Tentar responder a pergunta: quanto dos acontecimentos que
circundam o gênero na escola diz respeito aos gestores escolares enquanto
administradores com princípios pedagógicos? A violência de gênero e o
patriarcado nas escolas decorre de impotência, dominação, desinformação,
negligência ou interesses políticos? E como se apresenta o currículo para cada
uma dessas situações?
No momento não podemos responder
a estas perguntas, mas tentamos demonstrar parte da rede que compõe os
conflitos políticos do gênero em relação à escola. Anunciamos também que nosso
pensamento pedagógico comporta uma educação da diferença, e por isso, a favor
da multiplicidade da vida e de vidas capazes de conviver para/com/na multiplicidade.
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[1] As
preocupações e análises suscitadas neste artigo decorrem do projeto de mestrado
em andamento intitulado “Corpo e gênero na escola: disputas entre a “ideologia
de gênero” e o trabalho do gestor escolar”.
[2]
As maiúsculas serão utilizadas no decorrer do texto para representar estas
esferas mais gerais das relações sociais de poder. Temos noção que sua
complexidade não se restringe aos agentes que mencionamos, estes são, no
entanto, os exemplos que nos servirão para desenvolver nossa argumentação.
[3]
Ver sites de coordenadoria de Miguel Nagib: <http://www.escolasempartido.org/apresentacao>
e <https://www.programaescolasempartido.org/>.
[4]
Para ser mais preciso, sete Estados mais o Distrito Federal quando Barreto
(2016) redige sua matéria; “dez estados e no Distrito Federal, além de vários
municípios que a gente já perdeu a conta, porque é difícil de rastrear” na
versão de Aquino (2016) e “ao menos nove Estados, incluindo Rio de Janeiro e
São Paulo, além do Distrito Federal e de diversos munícipios” em BEDINELLI
(2016b). Todas elas matérias de jornal on-line
lançadas no mesmo mês e ano.
[5]
Envolvidos em manifestações contra o nu e a sexualidade nas artes (declaradas
pelo movimento como pedofilia, zoofilia e ofensas religiosas), com foco para os
protestos contra apresentações artísticas no Museu de Arte Moderna (MAM) de São
Paulo e o Queermuseum em Porto
Alegre, atitudes apoiadas pelo prefeito de São Paulo, João Doria (ROSSI, 2017).
[6]
Através da página Professores contra o Escola Sem Partido, na rede Facebook:
<https://www.facebook.com/contraoescolasempartido/>.
[7]
A título de exemplo da trajetória deste embate religioso no campo político, ver
O percurso político-legislativo do
programa “Escola Sem Partido” em Campo Grande, MS de Maria Dilnéia Spíndola
Fernandes (2017).
[8]
Afirmação que se faz mais coerente ao saber que 13 dias antes a aprovação do PL
213/2017 foi regularizado o Ensino Religioso nas escolas públicas de Campinas
(CÂMARA MUNICIPAL DE CAMPINAS, 2017a), sem mencionar as já mencionadas
manifestações contra exposições de arte no MAM, sendo a religião uma
justificativa importante para os atos (ROSSI, 2017).
[9]
Judith Butler aproxima-se desta perspectiva ao propor que a repetição de um ato
ou prática reafirma o gênero de um sujeito, o que denomina performatividade. Ver Sem
medo de fazer gênero... entrevista de Judith Butler concedida à Úrsula
Passos (2015).
[10]
Ver <https://www.programaescolasempartido.org/>.
Nesta página, o título que introduz o vídeo é “Entenda porque o PT e o
sindicato de professores SÃO CONTRA A PROPOSTA”. O vídeo está hospedado na
plataforma do You Tube e leva outro título, desta vez “Programa Escola Sem
Partido: porque o PT é contra”.
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