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segunda-feira, 9 de julho de 2018

Escola Sem Partido e "ideologia de gênero" em Campinas (SP): repensando poder e currículo para uma práxis política dos educadores


Introdução

Às vias de ser instituído nas escolas públicas da cidade de Campinas (SP), o programa Escola Sem Partido põe em movimentação política a escola pública como um campo de disputa para determinados agentes a partir da regulação de seu currículo (BOURDIEU, 2009b; KATZ e MUTZ, 2017), motivados pela perseverança ideológica de uma educação que respeite a vontade das famílias das crianças do nível da Educação Básica. Resta saber se dentro de um ciclo de políticas educacionais (BOWE, et al., 1992) os profissionais da educação serão favoráveis à “ideologia de gênero” e, possivelmente, da adoção do PLO 213/2017. Portanto, faremos algumas considerações a respeito, antecipando pesquisas que serão feitas por nós com os gestores escolares da rede pública de Campinas[1] e construindo uma práxis pedagógica com ênfase à identidade de gênero para refletirmos sobre a “ideologia de gênero” defendida por alguns agentes sociais nesse jogo político.
As articulações feitas aqui entre política e gênero importam porque é uma categoria justificada no PLO 213/2017 por seu caráter doutrinário:

É fato notório que professore e autores de livros didáticos vêm-se utilizando de suas aulas e de suas obras para tentar obter adesão dos estudantes a determinadas correntes políticas e ideológicas; e para fazer com que eles adotem padrões de julgamento e de conduta moral – espacialmente moral sexual - incompatíveis com os que lhe são ensinados por seus pais ou responsáveis. (CÂMARA MUNICIPAL DE CAMPINAS, 2017d, p. 4).

            Dado esta justificativa, também é essencial apresentarmos o gênero como uma categoria em vias de negociação, interlocução e interdição entre os diversos agentes deste campo político.

Metodologia

Enunciamos um circuito entre Estado-Educação-Sociedade[2], em que seus possíveis representantes para nosso referencial analítico são o poder jurídico-legislativo, as escolas e a família. Há que notar como os discursos religiosos do Estado são trazidos por representantes dessa Sociedade, como o movimento Escola Sem Partido (ESP), por sua vez, apoiados por mais civis, como o Movimento Brasil Livre (MBL), por incentivar uma heteronormatividade que conserva regulações familiares nesta mesma Sociedade. A Educação, por outro lado, cruza-se com a Sociedade e com o Estado, nos interessa mais especificamente a figura do gestor escolar, agente que nos parece imbricar-se mais imediatamente neste nó, dado sua função intermediária entre as políticas públicas e sua posição pedagógica (LIBÂNEO, 2013), além de constituir-se um sujeito com uma narrativa anterior a sua função de gestor, ou seja, formado no interior de uma Sociedade primeiramente como um sujeito pré-profissional, cuja educação primária é dada pela família (BOURDIEU, 2009a; TARDIF e RAYMOND, 2000).
            Em trabalhos anteriores (AUTOR, 2016, 2017) ressaltamos a importância de conceituar o gênero a partir da categoria corpo. Persistimos com este tipo de escolha teórico-metodológica destacando a importante participação dos gestores escolares na incorporação, resistência ou subversões às políticas pautadas numa “ideologia de gênero”, o que requer compreender que corpos ela enuncia, regula, edita e permite aparecem na Sociedade e, por sua vez, na Educação.

Estado e Educação: aprovação do PLO 213/2017 em Campinas (SP)

O ESP foi fundado em 2004 (JUSTIÇA EM FOCO, 2017) e é coordenado por um procurador do Estado de São Paulo e ex-acessor do Supremo Tribunal Federal entre 1994-2002, conhecido como Miguel Nagib.[3] É também autor do Projeto Escola Sem Partido (PL 2974/2014) que tramitou na Assembleia Legislativa Estadual do Rio de Janeiro, com modelos estaduais e municipais de projeto. Contou com a defesa em plenária do deputado Flavio Bolsonaro (PSC-RJ), o qual encomendou o projeto com Nagib (BARRETO, 2016). A tramitação do projeto ocorreu em vários estados brasileiros[4] com vários outros nomes, como Escola Livre em Alagoas, por exemplo, onde aconteceu sua primeira aprovação no país, e “são discutidas leis similares em Amazonas, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul e no Distrito Federal, segundo levantamento do Movimento Professores Contra a Escola Sem Partido”, algumas delas já aprovadas no momento em que escrevo (BEDINELLI, 2016a).
Através da bancada evangélica chega ao Estado de São Paulo um embate pela retirada da palavra “gênero” do texto do Plano Nacional de Educação no dia 25 de agosto de 2015, com a aprovação de mudanças no texto que eliminavam não apenas “gênero”, mas também outras palavras relacionadas à sexualidade, como “estereótipos sexuais” (BEDINELLI, 2015b).
            Estes dois movimentos convergem no uso de uma mesma concepção, a “ideologia de gênero”, a partir do qual se subtende um conjunto de ideias, valores e noções que guiariam a sociedade à derrocada da família, da moral e dos bons costumes.  O ESP propõe uma neutralidade política e religiosa à escola que se mostrou hostil às ideologias da Esquerda política, embora sustentada por legisladores cristãos (AQUINO, 2016). Mostra-se, portanto, partidária em seu antipartidarismo.
            Autores marxistas são execrados pelo movimento, bem como qualquer alusão às sexualidades e outras representações de gênero que não estejam imbricadas na heteronormatividade, assim, os homossexuais, travestis, transgêneros e transexuais são abominados no discurso do ESP, que encontra seu eco na voz dos parlamentares evangélicos que bradaram “Respeito sim! Gênero não!” aos defensores de uma escola sensível (no sentido pejorativo da palavra) à temática de gênero (BEDINELLI, 2015b). Neste mesmo momento político desaparecem menções ao “gênero” no texto da terceira edição da Base Nacional Curricular Comum em sua discussão, desviada do Ministério de Educação para a Câmara dos Deputados (SILVA et al., 2017) e é mencionado um novo rigor de seleção para o Plano Nacional do Livro Didático, tomando todo cuidado para que as imagens e os textos dos materiais não sejam doutrinadores (BARRETO, 2016).
Desta maneira encontramos aderência de deputados e senadores, como Magno Malta (PR-ES) e Erivelton Santana (PSC-BA) (JUSTIÇA EM FOCO, 2017) ou do deputado Izalci Lucas Ferreira (PSDB-DF) ao projeto (BEDINELLI, 2016b). Outros movimentos sociais, declaradamente apartidários em sua origem e difusores da “ideologia de gênero”, como o MBL[5], defendem ideais conservadoras, assim como no caso de Erivelton Santana afirmando que o gênero é um direito que parte da escolha individual (BEDINELLI, 2016a). Sem mencionar, ainda, os ministros, que a exemplo particular de José Mendonça Filho (DEM), convidou Alexandre Frota para discutir esse projeto, sendo este convidado conhecido por “suas posições extremistas contra a esquerda e por uma aparição na TV em que disse, em um quadro humorístico, ter estuprado uma mulher” e não por sua especialidade técnica no campo da educação, que, por acaso, é nenhuma (BEDINELI, 2016b).
Na cidade de Campinas (SP) foi elaborado parecer favorável ao projeto, da autoria do vereador Tenente Santini, pela Comissão de Constituição e Legalidade da Câmara Municipal no dia 21 de agosto de 2017 para o projeto de lei 213/2017 (CÂMARA MUNICIPAL DE CAMPINAS, 2017b). Foi aprovado numa primeira votação no plenário da Câmara de Campinas no dia 04 de setembro de 2017 (MARCHEZI, 2017), ainda que fosse “declarado inconstitucional pelo Ministério Público Federal” ou “deseducativo e autoritário” segundo parecer da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) (CARTA CAPITAL, 2017).
Seguindo a sequência de eventos, no dia 06 de setembro de 2017, Marcos Bernardelli (PSDB) inicia o protocolamento de um requerimento assinado por todos os vereadores de Campinas solicitando a retirada do projeto Escola Sem Partido da tramitação, anteriormente aprovada, e em regime de urgência (CÂMARA MUNICIPAL DE CAMPINAS, 2017e; G1 CAMPINAS E REGIÃO, 2017).
Em outubro a Câmara Municipal da Campinas acompanha debates propostos pelo Tenente Santini sobre o projeto no mês de outubro, que viria a ser aprovado no dia 22 de novembro pela Comissão Permanente de Educação Cultura e Esporte, pronto para ser instituído assim que sejam feitas as alterações necessárias no texto da lei a respeito dos locais onde serão colocados os cartazes com os deveres do professor; ao contrário da proposta original do ESP, esse cartaz não será afixado nas salas de aulas, apenas em locais julgados necessários, como sala dos professores ou salas de gestão (CÂMARA MUNICAPL DE CAMPINAS, 2017c; 2017f). Dias antes, em 10 de novembro de 2017, surgia uma primeira reunião para discutir a regularização do Ensino Religioso Confessional, com a característica de ser facultativo nas escolas públicas (CÂMARA MUNICIPAL DE CAMPINAS, 2017a).

Educação, gênero e currículo

O gênero participa ativamente do currículo escolar, esteja ele escrito ou não. Os gestores escolares, mediadores entre os ambientes escolares e o Estado, ocupam-se de harmonizar a infra e a superestrutura escolar.  São os profissionais de educação cuja função consiste em organizar os espaços e tempos pedagógicos da escola para o aluno-corpo (LIBÂNEO, 2013). Esta lógica pertence também ao currículo enquanto discurso produzido numa relação de poder que permite organizar experiências pedagógicas na interação com o aluno, produzindo sentidos que não são capazes de direcioná-lo totalmente aos objetivos planejados pelo educador (LOPES e MACEDO, 2013).
Portanto, a sistematização das experiências desejáveis às crianças a partir de diretrizes e orientações políticas do Estado e da própria realidade escolar é um trabalho administrativo e pedagógico do qual os gestores escolares se encarregam. Bourdieu (2009a) nos alerta sobre o caráter arbitrário do currículo, ele é produzido por um determinado grupo a partir de sua própria cultura e pretende-se difundi-lo a outros grupos. Consequentemente, as crianças nascidas nessas culturas específicas exigidas pelo currículo escolar sentem-se familiarizadas com estas experiências, portanto, serão melhores avaliadas comparadas às crianças que participam pela primeira vez destas experiências.
A avaliação do gênero enquanto performance cultural, entretanto, tem um efeito mais cedo dentro desse processo, pois pode ser uma categoria que determina a avaliação do profissional sobre seu aluno, e para isso, o corpo também requer uma avaliação para ser classificado e corresponder a uma expectativa do professor. As falsas associações intelectuais dos meninos com o raciocínio lógico-matemático e das meninas com a leitura e interpretação de texto, vistos como dons do nascimento ou naturalizações da espécie humana, vulgarizam-se sob o olhar mítico-sexual de alguns profissionais da educação, incentivando, por exemplo, cursos de engenharias para homens e cursos de licenciatura e pedagogia para mulheres, o que ajudaria a explicar essa distribuição previsível de homens e mulheres em cursos de formação universitária (MORENO, 2003).

Estado e Sociedade: moral e religião

A aprovação do PLO 213/2017 pela Câmara dos Vereadores de Campinas constitui, dentro de nossa perspectiva política, um currículo corporal por possuir uma ideia absoluta de corpo, como consta no excerto abaixo:

Art 2º O poder Público não se imiscuirá na orientação sexual dos alunos nem permitirá qualquer prática capaz de comprometer o desenvolvimento de sua personalidade em harmonia com a respectiva identidade biológica de sexo, sendo vedada, especialmente, a aplicação dos postulados da teoria ou ideologia de gênero. (CÂMARA MUNICIPAL DE CAMPINAS, 2017d, p. 1, grifos meus)

A associação entre personalidade e sexo biológico é típica de uma cultura moderna predominantemente heterossexual, logo, o artigo acima nos faz crer que a não-heteressexualidade aparece como indesejável no discurso parlamentar (BUTLER, 2017).
Fernando Penna, atual pesquisador e divulgador das empreitadas antidemocráticas do Movimento Escola Sem Partido[6], em entrevista com Renata de Aquino, relata: “Textos de pessoas do Escola Sem Partido falam claramente que eles acham errado que apareçam famílias homoafetivas nos livros didáticos porque isso é impor uma moralidade.” (AQUINO, 2016). Ainda, segundo Fernando Penna, na mesma entrevista, o movimento deixou de ser apenas da alçada de Nagib e “está se tornando uma ideia”, espalhando-se pelos deputados principalmente para demonstrar aos eleitores uma boa representação política.
Neste cenário de disputa de ideias, devemos reconsiderar a organização do trabalho pedagógico a partir dos planejamentos da produção de sentidos desejáveis aos alunos pelo Projeto Político Pedagógico da escola. Conjuntamente, existem sentidos não-planejados que acontecem na escola dada sua dinamicidade e abertura à diversidade dos modos de ser na escola, o que impede que o planejamento tenha um controle absoluto sobre o cotidiano escolar e sobre seus sujeitos, ainda que seja uma forma muito útil para prever situações que requerem intervenção pedagógica e estabelecer orientações possíveis para a resolução dos conflitos dentro dos muros da escola (LIBÂNEO, 2013).
Curiosamente, o corpo é uma categoria explícita no currículo escrito das disciplinas de Educação Física e Biologia (FARAH, 2010). A partir do corpo, pode-se começar a perceber a abrangência do gênero num currículo escolar escrito, devido a isto podemos sugerir pelas disciplinas de saberes as disciplinas corporais as quais os alunos estão possivelmente sujeitos, num sentido de disciplina que se aproxima de Foucault (2013), a qual acontece tanto por um currículo escrito (organizado) quanto por outro não-escrito (oculto).
Isto se deve a uma atitude política do currículo, que no cenário proposto pelo ESP também organiza e oculta textos a respeito do que chamam de “ideologia de gênero” (RATIER, 2016). O momento que desencadeia este tema da ideologia está marcado por uma discordância de Nagib com uma aproximação entre Che Guevara e São Francisco de Assis que a professora de história de sua filha fez para elucidar pessoas extremamente fieis aos seus valores (BEDINELLI, 2016b). A figura de um santo católico no mesmo patamar que um guerrilheiro revolucionário parece ferir o espírito religioso de Nagib. Não apenas dele, como de muitos outros religiosos nas câmaras municipais de todo o Brasil e no congresso nacional[7] (BEDINELLI, 2015a).
A moral religiosa que se posiciona contrariamente ao gênero nos planejamentos educacionais está baseada num mito classificador, o qual diferencia anatomicamente meninos e meninas. Os corpos diferenciados justificam lógicas de interações diferentes para com estes corpos, pois são incentivados e tolerados diferentes tipos de ações entre um e outro sexo, o que significa uma diferença na construção da realidade social entre meninos e meninas (AUTOR, 2017; MORENO, 2003). Assim, ambos levam vidas sociais distintas decorrentes da dominação oferecida pelo sistema sexo-gênero, capaz de impor uma naturalização aos corpos como biologicamente determinado (AUTOR, 2016).
Ainda sobre a moral religiosa, podemos perceber no próprio texto da PL 213/2017 uma grande quantidade de menções à moral e o respeito à religião:

Art 3º No exercício de sua função, o professor:
I - não se aproveitará da audiência cativa dos alunos para promover os seus próprios interesses opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias;
II – não favorecerá, nem prejudicará ou constrangerá os alunos em razão de suas convicções políticas, ideológicas ou religiosas ou da falta delas. (CÂMARA MUNICIPAL DE CAMPINAS, 2017d, p. 1-2)

A Sociologia de Durkheim (2000) é relevante quando se propõe a descrever como a lógica de pensamento individual é motivada por uma lógica produzida num grupo social. Transpondo para o caso de Nagib e de uma parcela do apoio parlamentar-religioso ao ESP, sua consciência coletiva justifica-se nos rituais de uma vida religiosa[8], portanto, as ações individuais também estão envolvidas nessa lógica social. Dito de outra forma: a religião ajuda esses agentes a viver, pois os faz agir em prol daquilo que deve ser a vida.
O gênero também sobrevive pelas ações dos sujeitos, não necessariamente dicotômicas, mas neste contexto político o gênero é carregado de um discurso que opera por categorias masculinas e femininas, matrizes de inteligibilidade (BUTLER, 2017). A moral religiosa cristã neste contexto político reafirmam gêneros possíveis de serem vividos porque, como argumenta Durkheim (2000), produz uma forma de viver a vida para manter a ordem social instituída.

Educação e Sociedade: poder e identidade

Práticas escolares podem funcionar como práticas religiosas, no sentido em que a repetição do ato cria o fiel ou aluno[9], portanto, os cultos e rituais escolares são capazes de promover uma identidade de gênero adequada à realidade social se a escola está em conformidade com as políticas curriculares do Estado, completando o ciclo de políticas (BOWE et al., 1992). Será nesse culto onde o aluno será introduzido à vida moral escolar e adotará os preceitos coletivos do grupo e do ambiente os quais o sujeitam a uma ação-comum, por sua vez, mais dissimulada quanto menos política ela se apresenta (quando se apresenta) ao currículo, operando pela tradição e pelo costume. Uma violência que, segundo Bourdieu (2009a), sustenta-se na legitimidade da cultura pela imposição da cultura, com a única diferença que o gênero é imposto informalmente, aproveitando-se da formalidade do ensino escolar para ser operacionalizado sem maiores gastos de energia, uma verdadeira economia de várias ordens.
Na recepção à sociedade escolar que se dá pela introdução aos cultos e participação dos rituais, o aluno é levado a traduzir pela ação, por meios externos e visíveis, o que foi interiorizado. Seria adequado retificar que a ação não apenas revela como contribui para interiorizar sentidos do mundo objetivo: cria e recria o fiel, como confirma Durkheim (2000), nunca de qualquer maneira, senão a partir das ideias coletivas do grupo escolar nas práticas cotidianas desse aluno.
É por este raciocínio que se formarão meninos e meninas nas escolas. Na realidade, esta socialização é anterior à escola, tem início na família (BOURDIEU, 2003). A escola será mais um espaço possível de reprodução destas ideias pelas ações, culminando numa forma de pensamento adequado à divisão sexual. De forma mais dramática, pode-se insinuar que a escola, assim como a Igreja, possui influência sobre a alma de seus fiéis: ela ordena para o caminho da salvação.
Chamando Bourdieu (2009a), a popularização da escola permitiu que ela fosse vista como libertadora, capaz de gerar mobilidade social. A fé consolidada nas práticas escolares como salvacionistas persistem sem, contudo, deixar de encobrir erros e mentiras desse sistema de ensino nos quais consistem os esforços de uma ciência social, segundo Durkheim (2000). Isto significa dizer: a escola libertadora é incapaz de salvar todos os seus fiéis, mesmo os mais próximos do sagrado. Praticantes devotos de corpo e espírito podem ser progressivamente recusados, rejeitados, excluídos sob o argumento que não dominam com propriedade os conhecimentos exigidos, não possuem destreza ou habilidade no manejo dos instrumentos oferecidos, ainda que sejam persistentes e esforçados, correndo o risco de, como bem nos relembra Bourdieu (2009a), serem escolares demais.
Prefere-se o dom e a inaptidão ao esforço e à persistência. Relacionado ao gênero, poderíamos pressupor que a relação com o sagrado seria incentivado de formas distintas para meninos e para meninas por uma diferença nos ethos dos alunos de sexos difenciados, ou seja, as expectativas em relação ao sistema escolar e os valores profundamente interiorizados variam com o sexo, variando, portanto, sua conduta escolar, mesmo que o capital cultural permaneça o mesmo (SILVA, 1995). As práticas de devoção decorrentes da divisão sexual são diferenciadas, bem como suas visões de mundo.
Os cortes de cabelo, as mochilas, as roupas, os acessórios, os brinquedos, e assim por diante, são alguns capitais que distinguem meninos e meninas sem que seja preciso verificar anatomicamente a presença do pênis ou da vagina. O estilo de vida da criança contribui muitas vezes para representar seu sexo, orientando o tratamento de gênero das pessoas dentro ou fora da escola e conformando-a a uma identidade sexual, ou melhor, confirmando e reconfirmando seu gênero pela repetição performática desse gênero socialmente aceito (BUTLER, 2017).
Ainda dentro desta perspectiva diferenciadora do gênero, as meninas tornar-se-ão mulheres, apesar de constarem as mesmas competências e qualificações que os meninos tornados homens, ou até melhores, para uma vaga de trabalho, serão relegadas a trabalhos menores ou menos recompensadores, ainda que tenham passado por uma educação escolar mais disciplinada, que pela própria lógica escolar, seria mais exemplar (BOURDIEU 2009a; KERGOAT, 2010). Para Foucault (2013), a disciplina educará apenas o corpo a ser útil e dócil, não promete privilégios ou grandes conquistas, estratégia esta que serve em maior medida a quem planeja a disciplina, incluído aqui seu sentido curricular.
Como já foi mencionada, a escola não é o começo do gênero, ele poderia existir e já existiu no seio de sociedades não-escolares. Entretanto, a escola apresenta uma realidade tipicamente escolar do gênero, com práticas de gênero próprias dela e que numa sociedade escolarizada tende a reproduzi-las. A escola certifica conhecimentos de meninos e conhecimentos de meninas. Mais tarde, quando sejam homens ou mulheres, seus trabalhos serão mais masculinos ou mais femininos de acordo com a quantidade de homens ou mulheres neles presentes (BOURDIEU, 2003; SILVA, 1995). A tendência do estudante será construir expectativas sobre si mesmo no sistema escolar, bem como o futuro que esse sistema pode garantir. Assim, o gênero continua sendo uma categoria essencial para compreender a divisão sexual do trabalho e como a escola prepara os alunos para estas realidades permitindo a circulação dissimulada de uma heteronormatividade responsável por enquadrar modos de ser.
Mesmo sem ter essa intenção, a escola pode reforçar ideais de masculinidade e feminilidade pela experiência escolar do corpo adequada à norma, a ação permitida. A homossexualidade, a bissexualidade e outras sexualidades abjetas provavelmente serão apagadas do cotidiano escolar ou assim será o desejo dos agentes mais ligados a moral sexual descrita. O corpo da criança interessa porque, explica Foucault (1999), a sexualidade se confunde com a disciplina e com a regulamentação da espécie, dois elementos essenciais para o surgimento da norma. Em suma, a criança é uma futura procriadora, mesmo que a escola não saiba lidar com a masturbação infantil, histórias em que ela conta ter visto os pais transando, piadas jocosas próprias e repetidas pelos mais velhos sobre sexo ou genitais, a agressividade tipicamente masculina dos meninos, entre outros eventos, a escola será chamada para responsabilizar-se por isto, não sem a possibilidade de culpabilizar a família pela má conduta escolar dos filhos (BOURDIEU, 2009a).
Num sentido demasiado foucaultiano, a escola possui poder e vontade sobre a vida da criança. Enquanto biopoder, a escola exerce influências sobre o controle das massas, na produção dos efeitos globais e é capaz de produzir previsões estatísticas com relação ao gênero. Há uma eficácia na escola em fazer aparecer meninos e meninas graças às tecnologias que elas dispõem, similar ao culto religioso descrito por Durkheim (2000) que formará uma vida psíquica, um pensamento adequado ao social. Pensamento esse que em Campinas passa a ser reforçado pelo PLO 213/2017 numa incursão curricular do que devem ensinar os professores.
A ação-comum exigida pela Sociedade passa a ser vista, aqui, como normatização, portanto, institui uma ordem política e econômica de poder sobre o corpo. Quando se diz que a escola tem poder de vida sobre o aluno pode-se inferir que também possui algum poder sobre a morte deste mesmo aluno. Ela faz viver e deixa morrer (FOUCAULT, 1999, 2014). Porém, faz viver apenas modos de ser que sejam convenientes à Sociedade e oferece uma segurança guiada pelo sujeito normatizado como menino ou menina que não ultrapasse as barreiras das experiências de gênero oferecidas por seu destino biológico (PASSOS e BUTLER, 2015). A escola também mata seus alunos quando suas identidades de gênero não se adequam às normas menino/menina, homem/mulher instituídas. As correções que decorrem desse desvio, vício ou sacrilégio estão sujeitas à violência física (que na situação dos alunos é mais comum entre seus pares, movidos por preconceitos infundados) e moral (VINHA, 2000), provocando insegurança ontológica da criança vista como anormal ou diferente.
Com efeito, o gênero naturalizado só pode corresponder a resultados catastróficos de um racismo evolucionista (FOUCAULT, 1999), redutor às ordens dos homens e mulheres heterossexuais, regidos por dois princípios opostos, um masculino e outro feminino. Neste sentido, um biologicismo apodera-se do pensamento coletivo para reproduzi-lo, inibindo toda a multiplicidade do gênero.
A norma aproxima-se do profano tanto quanto necessário, tem sua própria hierarquia: o homem é Deus enquanto a mulher é seu nível mais baixo, ao tipo de Satã ou algum demônio (DURKHEIM, 2000). Por mais que esse tipo de pensamento possa apoiar-se na misoginia e no sexismo, consciente ou inconscientemente, profano é o corpo que não é nem homem nem mulher ou não guarda nenhuma semelhança com eles.  Os meninos e as meninas serão vistos como protótipos desses tipos adultos, por isso preocupar-se desde cedo com sua educação moral e religiosa, como anuncia o ESP.
Articulando o pensamento de Durkheim (2000), a mulher-Satã é sagrada porque justifica as práticas religiosas dirigidas à Deus, de forma bem particular, nela está os esforços de reprodução da espécie: seu ventre. Toda a diferenciação criada entre homens e mulheres, meninos e meninas, serve para incluir o feminino num mercado importante para a sociedade: o mercado da reprodução da espécie, do controle sobre os nascimentos, modalidade própria do biopoder (FOUCAULT, 1999). Somados à disciplina escolar, garante a transmissão de conhecimentos corporais pela experiência de ser reconhecido como menino ou como menina na escola.
É trabalhoso à instituição escolar adequar-se democraticamente a fé dos fiéis, principalmente das famílias, principalmente quando estes alegam injustiças por esperarem que a educação dos filhos corresponda ao seu ideal de educação, isto é, nem sempre as concepções de educação entre a escola e a família são equivalentes (discurso muito presente no ESP). Acrescentamos que os professores podem ser tomados como líderes religiosos, pois eles ensinam a viver e a superar ou manter as condições injustas de vida da família pela mobilidade social que o aumento de escolaridade filho possa permitir.
Em relação às divergências que possam existir entre a escola e a família, cabe mencionar outro artigo do PLO 213/2017: “Art. 3º V – respeitará [o professor no exercício de sua função] o direito dos pais dos alunos a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções.” (CÂMARA MUNICIAPAL DE CAMPINAS, 2017d,, p. 2). Em outras palavras, o Estado alia-se ao discurso de uma parcela da Sociedade (ESP) para proteger direitos de outra parcela dela (as famílias) pela regulação da Educação.

A práxis pedagógica e o educador

            Podemos resumir as intenções do Movimento Escola Sem Partido como uma tentativa de controlar e vigiar o trabalho docente (KATZ e MUTZ, 2017), pronunciando seus interesses de construir um ideal de sociedade através de um monopólio curricular que permita, a partir da escola como objetivo e local de aplicação de seu discurso, desaparecer com seus adversários políticos, criando um espaço propício para alastrar suas próprias concepções religiosas e morais pela defesa da família brasileira (FERNANDES, 2017). Também consideramos, dentro de toda a complexidade política na qual estão envolvidos os agentes, que a propagação de um discurso sobre “ideologia de gênero” possui a função de articulá-la à Esquerda política dita marxista, sem nem explicar o que compreende por marxismo, dado as várias perspectivas, interpretações e modificações desse pensamento dentro de círculos de intelectuais desde Karl Marx (RATIER, 2016).
Percebemos um interesse em vincular estas ideias ao Partido dos Trabalhadores (PT) a partir de um vídeo na página inicial de um de seus sites[10]. Em outras palavras, o Movimento Escola Sem Partido procura desarticular a legitimidade de um partido que representa uma oposição aos seus ideais, e ao fazê-lo entra num jogo político em que outros partidos também interessados em eliminar o partido idealizador das “ideologias de gênero”, o PT, realizam seus esforços para transformar esses ideais em um programa com força jurídica, investindo aí um poder político para a realização de futuras punições incentivadas pela vigilância dos professores pela própria sociedade civil no interior da escola (HEUSER, 2017).
No FAQ do mesmo site mencionado acima, o movimento assegura que são “100% sem partido. O que não significa que ele [programa Escola Sem Partido] não contrarie interesses partidários. Naturalmente, os partidos e organizações que aparelharam ilegalmente o sistema de ensino serão prejudicados pelo Programa.”. Entretanto, Ratier (2016, p. 35) reafirma um posicionamento político do Movimento Escola Partido ao sugerir, a partir de um levantamento de dados da Nova Escola, que “11 dos 19 proponentes de projetos inspirados pelo ESP [Escola Sem Partido] são ligados a alguma igreja”.
O educador na condição de trabalhador aparece, portanto, numa encruzilhada de interesses políticos, a qual pode ser representada pelo circuito Estado-Educação-Sociedade que já mencionamos aqui. O ciclo de políticas não está completo sem estes profissionais (BOWE et al., 1992): ainda que a cidade de Campinas (SP), somada às demais disputas deste mesmo tipo no território nacional, tenha a aprovação do PLO 213/2017, estes profissionais estariam dispostos a aumentar as tensões políticas no campo, fazendo da Educação uma força autônoma no circuito, fazendo circular sua força de resistência frente à Sociedade e ao Estado? As tensões provocadas gerariam divisões entre profissionais das próprias escolas? Existirá um consenso entre a gestão e o corpo de professores? Voltariam a acontecer ocupações dos estudantes em apoio aos professores, pressupondo que sua possibilidade de ocorrência deve-se ao fato deles terem atingido seus objetivos com este tipo de mobilização e pelos afetos e estratégias advindos dela serem recentes (PAES, 2017)? Os estudantes apoiariam os professores em sua luta, se houver?
Para todas estas perguntas, nas quais o educador é protagonista dado nossa abordagem teórico-metodológica, é necessário compreender como acontece a formação deste profissional e se ela contribui para seu poder de resistência. Daremos destaque ao trabalho como categoria que permite enunciar as intenções políticas do gestor escolar enquanto educador, o qual repensa sua posição profissional e suas práticas pedagógicas a partir de uma práxis.
Gostaríamos de fazer uma breve diferenciação entre a doxa e a práxis. A primeira, conforme Bourdieu (2009b) refere-se a um estado pré-reflexivo na qual a ação do sujeito é motivada pela repetição da prática socialmente aprendida, característica muito presente na Sociedade. Já a práxis, aliada à perspectiva educacional, pode ser compreendida como “uma reflexão e ação verdadeiramente transformadora da realidade, é fonte de conhecimento reflexivo e criação” (FREIRE, 2012, p. 100). Desta forma, a práxis implica uma atividade teórico-prática em que o educador questiona-se conscientemente sobre os limites e possibilidades de sua prática pedagógica (CALDEIRA, 2014).
A partir da práxis pedagógica o educador reafirma ou reformula sua prática no espaço escolar. Entretanto, não o faz sem mobilizar saberes construídos em seu período de formação, na prática cotidiana com a escola ou mesmo de um tempo anterior a estas duas circunstâncias. Tardif e Raymond (2000) interessaram-se por pesquisar a identidade dos professores e nos informam que ela está constituída por dois períodos temporais complementares, o pré-profissional e a carreira docente.
É conhecido que o trabalho possui a importante característica de gerar transformações no trabalhador, particularmente na constituição de seu pensamento, seria correto acrescentar que esta ação também gera transformações no ambiente, envolvidos aí suas características produtivas (SOUZA JUNIOR e TRGINELLI, 2017). O educador já passou por um processo de educação, o que ressalta o caráter pré-profissional do educador, cujos saberes práticos começaram a ser elaborados antes de ter qualquer contato com a teoria propriamente dita. Através da vivência do cotidiano escolar um aluno adquire saberes relacionados ao ensino (efeito das mudanças que o educador provoca no ambiente) contribuindo, então, para uma idealização dos valores, práticas e saberes envolvidos na prática educativa (TARDFI e RAYMOND, 2000).
Estas idealizações serão seguidas de uma teoria pedagógica durante todo o processo formativo deste profissional, o qual poderá construir sua identidade profissional no uso de um trabalho correspondente aos novos saberes aprendidos. Ressaltamos que as ações deste profissional estão submetidas a apreciação dos estudantes, outros professores e demais sujeitos inseridos no espaço escolar, os quais respondem através de mais ações, conscientes ou não, ao trabalho pedagógico em questão. Estas diversas ações confirmam ou negam as expectativas e eficácias do professor quanto ao próprio trabalho, provocando alterações em sua identidade profissional. Para Morin (2015), esta impossibilidade do sujeito de controlar plenamente os efeitos de suas ações é denominado ecologia de ações.
Entendemos que a escola estrutura-se a partir de uma ecologia própria, onde os saberes profissionais são testados, atestados, reconhecidos, tornados cotidianos por quem os pratica. Ou ainda (como preferimos pensar estas práticas), pensados, repensados, reflexionados, reorganizados, postos em dúvida, reavaliados, questionados pelos próprios agentes e sujeitos das ações.
O campo político também possui sua própria ecologia de ações, o que significa dizer que nem todos seus efeitos podem ser previstos com exatidão. A ação, agindo num meio, escapa à intenção de seu agente, sofre deformações, desvios e ressignificações. Pode não produzir exatamente o que pretendia seu idealizador, variando entre uma ação mais cotidiana (saberes mais repetitivos, pouco inventivos) ou não cotidiana (saberes transformadores e criativos) (CALDEIRA, 2014).
            Como a práxis pedagógica exige um posicionamento político do educador (FREIRE, 2012), os quais não estão desvinculados dos saberes práticos profissionais e pré-profissionais desse mesmo educador, parece-nos coerente pensar o seguinte sobre o educador: sua consciência da prática pedagógica com a entrada do ESP no cenário jurídico-legislativo de Campinas (SP) exige uma constante reflexão do próprio profissional num campo de atuação política, pois ele corre o risco de ser julgado politicamente por suas ações, ainda que sua intenção não corresponda às denúncias pelas quais pode vir a sofrer. Esta situação vista pela ecologia de ações (MORIN, 2015), poderia ser julgada injusta pelo educador e simpatizantes de sua luta, mas justa pelo delator e por alguns legisladores. As ações dos professores, cada vez mais, devem ser cuidadosamente pensadas por eles mesmos para que seus efeitos não gerem consequências negativas para si, sujeitas a represálias.
            Como já foi mencionado anteriormente, nos parece que o gestor escolar possui uma importante participação para gerar ruídos no canal comunicacional do campo político (MORIN, 2015) entre o projeto de lei que sai da Câmara Municipal de Campinas às escolas municipais, isto é, os gestores escolares podem provocar resistências ao oporem-se à implementação do PLO 213/2017 pelo uso de saberes advindos de sua carreira e vida escolar, cuja concepção de educação pode ser contrária às justificativas da lei (TARDIF e RAYMOND, 2000). Por sua vez, estes agentes políticos podem ser seguidos pelo restante do corpo docente, ou ainda, ceder às demandas do corpo docente que não deseja ser vigiado ou punido por agir seguindo sua práxis pedagógica. Também podem somar-se às demandas destes professores, constituindo um corpo político-escolar unido em seus interesses profissionais.
Em resumo, as forças religiosas, moralistas e conservadoras do Estado aliadas a segmentos da Sociedade que espelham seus ideais podem encontrar resistências na Educação. A aprovação da PLO 213/2017 pela Câmara Municipal de Campinas encontra em seu trajeto a gestão escolar, logo, a implementação depende de uma ação de harmonização por parte dos gestores para que se cumpra a lei.
            Por outro lado, é por uma prática pedagógica imbuída da práxis que se recusa uma imposição, regulação ou força ameaçadora, pois pede um enfrentamento. Chega-se ao momento de medir forças para fazer sobreviver os corpos que recebe o poder da lei. A práxis pedagógica oferece-se como uma estratégia de reflexão que oferece uma luta de resistência contra as tentativas de um biopoder (FOUCAULT, 2014) que tenta suprimir gêneros e sexualidades nas escolas. É necessário perceber como esse poder sobre a vida acontece sob dupla ação: controle do gênero e das sexualidades pelo controle do trabalho pedagógico nas escolas, sufocando a práxis e determinando o currículo escolar.
            Relembramos que os educadores também são atravessados pelo gênero, eis que o PLO 213/2017 diz respeito não somente aos corpos dos estudantes, mas também dos corpos dos educadores, como assegura Louro (2011). Acreditamos que, em maior ou menor medida, a práxis pedagógica dos educadores está relacionada também ao seu gênero, o qual participa da trajetória pré-profissional desse agente, contribui para constituir sua identidade profissional e suas prioridades em relação ao currículo escolar. Possivelmente o gênero interfere nas práticas e estratégias de resistência ou de conformidade adotadas em relação ao PLO 213/2017.

Considerações finais

Para além de um sistema cego às desigualdade, cujas tendências são favorecer as sexualidade já favorecidas e desfavorecer as desfavorecidas, numa releitura de Bourdieu (2009a), a corporeidade no campo da educação está sendo disputada por diferentes agentes em diferentes campos, cada um deles com suas próprias divergências internas, mas capazes de dirigir forças políticas mais ou menos eficazes no esforço de determinar seus interesses sobre a (in)viabilidade de assumir uma “ideologia de gênero” nas escolas. A práxis pedagógica requer um corpo mais plural, sem tantos limites, interdições e imposições de poderes partindo de uma matriz heterossexual.
A partir de futuras pesquisas preocupadas com entrever as relações dos gestores no circuito Estado-Educação-Sociedade poderemos compreender que poderes lhes faltam e quais já possuem. Tentar responder a pergunta: quanto dos acontecimentos que circundam o gênero na escola diz respeito aos gestores escolares enquanto administradores com princípios pedagógicos? A violência de gênero e o patriarcado nas escolas decorre de impotência, dominação, desinformação, negligência ou interesses políticos? E como se apresenta o currículo para cada uma dessas situações?
No momento não podemos responder a estas perguntas, mas tentamos demonstrar parte da rede que compõe os conflitos políticos do gênero em relação à escola. Anunciamos também que nosso pensamento pedagógico comporta uma educação da diferença, e por isso, a favor da multiplicidade da vida e de vidas capazes de conviver para/com/na multiplicidade.

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[1] As preocupações e análises suscitadas neste artigo decorrem do projeto de mestrado em andamento intitulado “Corpo e gênero na escola: disputas entre a “ideologia de gênero” e o trabalho do gestor escolar”.
[2] As maiúsculas serão utilizadas no decorrer do texto para representar estas esferas mais gerais das relações sociais de poder. Temos noção que sua complexidade não se restringe aos agentes que mencionamos, estes são, no entanto, os exemplos que nos servirão para desenvolver nossa argumentação.
[4] Para ser mais preciso, sete Estados mais o Distrito Federal quando Barreto (2016) redige sua matéria; “dez estados e no Distrito Federal, além de vários municípios que a gente já perdeu a conta, porque é difícil de rastrear” na versão de Aquino (2016) e “ao menos nove Estados, incluindo Rio de Janeiro e São Paulo, além do Distrito Federal e de diversos munícipios” em BEDINELLI (2016b). Todas elas matérias de jornal on-line lançadas no mesmo mês e ano.
[5] Envolvidos em manifestações contra o nu e a sexualidade nas artes (declaradas pelo movimento como pedofilia, zoofilia e ofensas religiosas), com foco para os protestos contra apresentações artísticas no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo e o Queermuseum em Porto Alegre, atitudes apoiadas pelo prefeito de São Paulo, João Doria (ROSSI, 2017).
[6] Através da página Professores contra o Escola Sem Partido, na rede Facebook: <https://www.facebook.com/contraoescolasempartido/>.
[7] A título de exemplo da trajetória deste embate religioso no campo político, ver O percurso político-legislativo do programa “Escola Sem Partido” em Campo Grande, MS de Maria Dilnéia Spíndola Fernandes (2017).
[8] Afirmação que se faz mais coerente ao saber que 13 dias antes a aprovação do PL 213/2017 foi regularizado o Ensino Religioso nas escolas públicas de Campinas (CÂMARA MUNICIPAL DE CAMPINAS, 2017a), sem mencionar as já mencionadas manifestações contra exposições de arte no MAM, sendo a religião uma justificativa importante para os atos (ROSSI, 2017).
[9] Judith Butler aproxima-se desta perspectiva ao propor que a repetição de um ato ou prática reafirma o gênero de um sujeito, o que denomina performatividade. Ver Sem medo de fazer gênero... entrevista de Judith Butler concedida à Úrsula Passos (2015).
[10] Ver <https://www.programaescolasempartido.org/>. Nesta página, o título que introduz o vídeo é “Entenda porque o PT e o sindicato de professores SÃO CONTRA A PROPOSTA”. O vídeo está hospedado na plataforma do You Tube e leva outro título, desta vez “Programa Escola Sem Partido: porque o PT é contra”.

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