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sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Os preceitos do capital para a educação de qualidade

Introdução
           
            A educação que será tratada aqui vai de encontro com a educação do futuro de Morin (2000):

Educar para compreender a matemática ou uma disciplina determinada é uma coisa; educar para a compreensão humana é outra. Nela encontra-se a missão propriamente espiritual da educação: ensinar a compreensão entre as pessoas como condição e garantia da solidariedade intelectual e moral da humanidade. (p.93).

            A educação pretende ser multicultural; encontra na complexidade das relações a unidade e não se dá o prazer de extinguir a diversidade, pois é nesse conjunto de identidades que as vivências encontram o sentido daquilo que é humano; os conhecimentos globais passam a ser essenciais para a compreensão dos conhecimentos locais; as relações mútuas e a reciprocidade são preceitos para a compreensão da totalidade e do mundo complexo: a parcialidade e a simplicidade são oposição à educação do futuro; o estudo da incompreensão é favorável para o desenvolvimento da compreensão e diminuição das discriminações e da barbaridade e promoção da diversidade e das identidades; compreender que por mais que a sociedade possua controle sobre o indivíduo, este consiste numa relação bilateral em que o indivíduo também controla a sociedade, o que traz a ideia de espécie humana num pensamento planetário (tríade indivíduo/sociedade/espécie) (MORIN, 2000).

Partindo disso, esboçam-se duas grandes finalidades éticopolíticas do novo milênio: estabelecer uma relação de controle mútuo entre a sociedade e os indivíduos pela democracia e conceber a Humanidade como comunidade planetária. A educação deve contribuir não somente para a tomada de consciência de nossa Terra-Pátria, mas também permitir que esta consciência se traduza em vontade de realizar a cidadania terrena. (MORIN, 2000, p. 17-18).

                Outro objetivo deste artigo consiste em mostrar como que esta educação (uma educação de todos para todos) é limitada pelo capitalismo, que não procura desenvolver o respeito mútuo e a reciprocidade, a consciência, a compreensão, a diversidade ou preservar identidades, e como esse sistema trabalha para colapsar todo e qualquer tipo de relação que tende à complexidade, ao encontro do todo, para limitá-la à obediência, conformidade, passividade, docilidade, dominação, hegemonia e ao combate numa arena simbólica, sendo estes os preceitos da educação do capital para o futuro, em que o público não se expande para atender a todos, torna-se cada vez mais privatizado, atendendo a poucos.
O público é a abertura para a complexidade, a educação que tenta encontrar formas de ser pública e complexa encontra entraves no privado e simples, presente no discurso que enaltece o capital. A defesa que será feita à democracia tem a intenção de defender uma distribuição do poder que não o torne um sistema retroativo às classes políticas dominantes; busca garantir direitos de forma que todos consigam atuar como cidadãos; privilegia o espaço público e democrático como forma de educação essencial a toda e qualquer pessoa; menciono ainda a importância da escola pública, gratuita e de qualidade como instituição fundamental para garantir uma educação que promova a dignidade e o autoconhecimento de seus sujeitos históricos, nunca se esquecendo que por mais fundamental que ela seja, não se encontra isolada contribuindo para a educação do futuro.
Sabendo que vários preceitos do capital acontecem sob uma perspectiva do mundo do trabalho, é visto a importância de elenca-lo à discussão público/privado, pois se entende que o trabalho nessas duas situações tende a acontecer de forma diferente e com valores diferentes. Um segundo preceito é de que o trabalho corrobora para a manutenção de um sistema econômico que barra a possibilidade da educação acontecer em sua diversidade. Em contrapartida, entende-se aqui que a educação pretende ser democrática porque esta forma de organização das decisões visa a complexidade das relações e a abertura ao complexo acontece em situações que favorecem o espaço público.
                                   
Da divisão do trabalho à divisão da educação

Para explicar como a educação cinde frente ao capitalismo, entenderemos que a educação é incluída como essencial para o mundo do trabalho e será colocada próxima ao pensamento marxista sobre as relações de trabalho, e posteriormente deslocada para uma concepção pós-moderna do trabalho na educação.
Primeiramente, o trabalho “Trata-se antes de um modo de manifestar a vida, a sua maneira de viver. A maneira pela qual os indivíduos manifestam a vida é a sua maneira de ser” (PAOLI, 1980, p. 17). O trabalho toma outras proporções quando se compreende que ele gera um produto que pode vir a ser uma mercadoria de troca, por sinal, um elemento de suma importância no capitalismo é a mercadoria produzida pela força de trabalho; trabalhar para o capital é subsumir-se a valores de troca e alienar o valor de uso da mercadoria, pensando as mercadorias no processo de troca como valor: sendo comum a lógica de trocar dinheiro por mais dinheiro, umas vez que ele representa o valor da mercadoria que será trocado por outro valor. O capitalista se caracteriza por estar consciente do movimento do capital, não tratar do valor de uso ou do lucro isoladamente, mas do incessante movimento de ganho, que é sustentado pela mais-valia[1] (MARX, 1996).
Para produzir uma mercadoria é essencial que se conheça os meios de produção que a originam. Porém, o conhecimento sobre os meios de produção costuma ser detido por um proprietário que troca um salário pela força de trabalho de um agente transformador, o trabalhador. Essa separação entre o proprietário dos meios de produção e o trabalhador que vende sua força de trabalho individual para realizar uma atividade simples e genérica, segundo Marx (1996), acontece em sociedades onde a divisão social do trabalho não consegue transparecer todos os processos de produção e distribuição de um produto. As relações numa sociedade de produtores de mercadorias consistem em desconhecer o processo material de produção da vida, o que implica um desconhecimento entre o produtor e a natureza (MARX, 1996).
A educação complexa não se conformaria no trabalho pensando no processo de produção para a troca, seria muito mais coerente pensar a utilidade que o produto desse mesmo processo possui para as necessidades humanas.
É a partir da ideia de acumulação que o capitalismo torna-se uma ameaça à educação. A concentração dos meios de produção pressupõe dominação de um grupo sobre outro: os grupos que detém os meios de produção estão mais aptos a compreender a realidade com mais facilidade do que aqueles que desconhecem esses mesmos meios, daí, os detentores dos meios de produção estão em situação de privilégio e podem alienar as condições de trabalho dos seus subalternos (MARX, 1996).
“É um produto da divisão manufatureira do trabalho opor-lhes as forças intelectuais do processo material de produção como propriedade alheia e poder que os domina” (MARX, 1996, p.475) – criam-se funções específicas que requerem forças de trabalho específicas, o que culmina para extinguir o ambiente democrático. Separa-se teoria e prática, quando na verdade toda teoria (atividade intelectual) pressupõe uma prática (atividade mecânica) ou baseou-se em práticas para ser pensada e a prática provém de uma teoria ou a possibilita; elas estão inter-relacionadas e inseparáveis. As especializações ranqueiam os saberes, não auxiliando na construção de um ambiente aberto a todos, não considera todas as participações com peso de decisão igual por classifica-los e restringir sua participação ao espaço ao qual foram destinados pela classificação.
Passa-se a conhecer cada vez menos as condições de produção do mundo material e a considerar natural o que antes era explicado por uma etapa dos meios de produção. A naturalização das coisas, por conseguinte, é trabalhada pela inculcação de ideias que tendem a alienar o trabalhador, que alienado, desconhece os meios de produção necessários para compreender a totalidade ou complexidade de seu trabalho.
A classificação é inculcar a ideia num corpo sobre como deve ser natural a separação dos trabalhadores por tipo técnico. E mesmo que um curto período de aprendizagem dessa técnica seja o suficiente para qualifica-lo para o trabalho (o que demonstra a intensidade da fragmentação dos saberes) deve parecer banal que essa classificação em saberes seja sua alçada para posições de poder (PAOLI, 1980).
O que antes era a união de trabalhadores parciais tornam-se operações cada vez mais subdivididas e funções exclusivas de um trabalhador, assim “os processos de transformação levam cada trabalhador-artesão a perder pouco a pouco a sua capacidade de exercer o seu antigo ofício em toda a sua extensão, ficando sua atividade reduzida a uma operação específica típica de uma função apenas” (PAOLI, p.24, 1980). O trabalhador-artesão não é menos que um artista que com o tempo é luxado de suas técnicas criativas, como exemplifica Mészáros (2008). A educação possui uma concepção artística e criativa que é perdida em meio ao capitalismo pela fragmentação do trabalho.
Aos poucos as funções são hierarquizadas de acordo com o tempo necessário para realiza-las, o que passa a ser medida de valor e pede qualificação da força de trabalho, pois se entende que existem trabalhos “complexos”, “superiores”, “difíceis”, em detrimento dos trabalhos “simples”, ”inferiores”, “fáceis” (PAOLI, 1980). A qualificação da força de trabalho acontece mediante a passagem dos indivíduos pelo ensino, qualquer distinção de formação está entregue ao sistema de ensino: a diferença entre um aluno e um funcionário da mesma instituição é o tempo de estudo, o que não implica necessariamente num conteúdo a ser aprendido, preza-se o cumprimento de rituais (a passagem pelo sistema de ensino) (ILLICH, 1985); e entre os trabalhadores a estratificação da qualificação da força de trabalho tomam representações com pesos significativos, principalmente quando diz respeito entre os cargos de gestão educacional, professores e cargos administrativos, em que os primeiros são mais valorizados em detrimento dos últimos. Ou ainda, os professores serem diferenciados pelas suas disciplinas de acordo com o valor instituído por essa força de trabalho no mercado[2], ou seja, o quanto se consome essa mercadoria, o quão vital ela é no mundo, a demanda que ela gera. E não é nenhuma surpresa, pois quando se vende a força de trabalho ela é recompensada com um salário equivalente a força de trabalho num certo período de trabalho.
Entende-se que a instrução escolar, o tempo de estudo e de aquisição de conhecimento é o que agracia determinadas posições sociais com o poder de comandar. As relações horizontais da democracia foram transformadas em relações verticais, em que o prestígio das funções superiores justifica a distribuição diferencial do poder; “Despossuído do conhecimento, o trabalhador parcial torna-se um subordinado no processo de produção” (PAOLI, 1980). Pensando num processo gradual, a naturalização do processo de privatização não acontece com aqueles que experimentaram suas habilidades produtivas nos espaços democráticos não-classificatórios, são as pessoas que não participaram desses ambientes democráticos que estarão relegados à lógica do capital num sistema corporativista, que aceitarão de bom grado uma realidade que nunca se mostrou de outra forma. Se o ambiente não provoca desequilíbrios (PIAGET, 2001), se o capital é visto como ordinário, comum, normal, sempre esteve lá, como podemos esperar estruturas de pensamento diferentes?
Os ambientes democráticos não existem sem conflito (MIGUEL, 2011): são por excelência espaços desequilibradores. Os saberes são compartilhados, distribuídos, reformados, repensados, integrados nas relações entre agentes.

A qualificação da força de trabalho é avaliada pela escolarização de um indivíduo, consagrando-se sua força de trabalho individual. A escola funciona nessa lógica como filtro de habilidades e talentos, ou ainda, seleciona os alunos bem dotados possuidores do dom (BOURDIEU & PASSERON, 1975). A serviço do capital, a escola faz nada mais que separar a mão de obra qualificada da mão de obra desqualificada. Escolaridade, nesses moldes, é sinônimo de produtividade, definindo as condições de existência[3] dos grupos (PAOLI, 1980). Compreende-se pelo esquema da Ilustração 1 (Condições de Existência de Classe no Capitalismo) que são essas condições de existência que tornam natural desigualdades e põem igualdade de oportunidades sob um discurso que vê a escola como instituição neutra para todos que estão nela, fazendo com que as determinações de uma classe que não compartilhe das concepções discursivas dos saberes dominantes sejam excluídas automaticamente do sistema educacional ou estejam relegadas ao insucesso, ao adentrar o sistema. (PAOLI, 1980).


As relações de produção estabelecidas são ideológicas, provindas dos aparelhos de hegemonia (GRAMSCI apud PAOLI, 1980), faz-se de cima para baixo na pirâmide de classes: os dominantes, no topo, direcionam intelectual e moralmente a base, os dominados. O que denota uma violência simbólica (BOURDIEU, 2003; BOURDIEU & PASSERON, 1975) sentida pelos dominados, que devem adorar os gostos, preferências, política e cultura de seus superiores. “(...) Ao internalizar as onipresentes pressões externas, eles [os dominados[4]] devem adotar as perspectivas globais da sociedade mercantilizada como inquestionáveis limites individuais a suas aspirações pessoais.” (MÉSZÁROS, 2008, p.45).
A escola não daria conta de diminuir o peso simbólico que a ideologia dominante faz recair sobre os dominados, pensar nessa possibilidade é acreditar que a instituição escolar pode resolver formalmente as questões da educação, porém, pensar que a escola é parte do sistema educacional nos permite ampliar a visão sobre as demais partes da educação, que comportam a totalidade da educação. É pensando numa alternativa concreta abrangente situada nas soluções essenciais (que comporta as soluções formais) que Mészáros (2008) situa a lógica do capital.
A realidade, desprovida de desequilíbrios, possui a seguinte natureza: “a qualificação torna-se o critério legitimador da diferenciação social, e a possibilidade de ascensão social via qualificação se torna a liberdade de fugir-se às determinações de origem” (PAOLI, 1980, p.31). Instalada a ideia de igualdade de oportunidades, as distribuições desiguais de saber e poder ficam turvas para os adeptos desse mito, que mais tarde formará afeições religiosas com essa superestrutura que normaliza as relações desiguais; as instituições tocadas pelo capital estão sujeitas a lógica do mercado, um Deus que vigia e pune seus pecadores e infiéis (ILLICH, 1985).
A partir daqui podemos ter uma ideia clara de dominação e sua realização a partir do acúmulo desigual de capital. Sabendo que o capital é extrovertido e possui o toque de Midas[5], toma para a sua lógica qualquer sistema, instituição, estrutura ou prática. O pensamento de Bourdieu torna-se mais que necessário para expandirmos a ideia de capital econômico para o capital social, o capital cultural e o capital simbólico. A exploração do trabalhador - do operário pelo seu superior - em Marx (1996) consubstancia-se com questões imateriais, construídas a nível de pensamento, mas que se formam na materialidade da realidade vivida. A hegemonia econômica não é somente econômica, é também uma hegemonia social e cultural, onde a moral, a linguagem, o comportamento, a estética e os valores daqueles que tiveram seu sucesso reconhecido pelas instituições sociais, podem circular no mercado de bens simbólicos (BOURDIEU, 2003). No mercado as trocas não acontecem apenas com dinheiro; no mercado circulam mercadorias com valor, e as bases para esse sistema econômico pressupõe que tudo tem potencial para se tornar mercadoria, inclusive a arte, que pode ser interpretado de forma mais abstrata, pelo senso estético de um grupo e a legitimação a um estilo artístico específico: criar o bom gosto por traços retos e não curvos, pela perfeição da imagem à sua distorção, retratos de momentos históricos a paisagens, situações políticas (público) a psicológicas (privado), antiguidade a modernidade. Com esses mercados invisíveis existe a disputa por determinados tipos de capital e tentativas de subverter a ordem estabelecida em prol de um capital mais legítimo. Mészáros contribui para a discussão ao dizer: “Aqui a questão crucial, sob o domínio do capital, é assegurar que cada indivíduo adote como suas próprias as metas de reprodução objetivamente possíveis do sistema” (MÉSZÁROS, 2008, p. 44), e do sistema dominante, nas palavras de Bourdieu, ou hegemônico, para Gramsci.
Passa-se a falar de uma internalização dos signos[6] e estruturas sociais, e falando num sistema capitalista, onde a competição, as desigualdades, o mérito e o pensamento individual são valorizados, ou são partes integrantes do ambiente, não podemos esperar que a educação não-formal das mentes e dos corpos não os adaptem as suas condições de existência – o habitus capitalista.
Dewey (2011) mostra que o indivíduo vive experiências num ambiente que é determinante para sua educação e como a experiência é insubstituível (viver ambientes democráticos provoca uma sensibilização maior do que estuda-los a distância); Montessori ([19-]) e Piaget (2001) estudaram a fundo as mudanças que o ambiente provoca ao longo do desenvolvimento infantil; Vigotski (1998) baseia o desenvolvimento do indivíduo na relação que este estabelece com o outro, uma perspectiva mais ontológica que a filogênese de Piaget; Freire (2012) reforça a educação libertária necessária de um sujeito que vive sob a coerção de uma educação dominante. A grande área da Educação possui em sua extensão trabalhos que ressaltam a importância do ambiente democrático (DEWEY, 2011) ou fazem alusão ao diálogo crítico (FREIRE, ), à reciprocidade e à moralidade ( VINHA, 2000), a construção de si em conjunto com outros sujeitos (VIGOTSKI, 1998), a um ritmo próprio da criança  (MONTESSORI, [19-]), ao desequilíbrio que desacomoda as estruturas internas perante novas assimilações (PIAGET, 2001). Por outro lado, a escola “(...) constitui uma forma de adestramento pela qual o imaturo adquire hábitos e incorpora concepções com as representações dominantes e sustentadoras da sociedade” (PAOLI, 1980, p.65).
A disputa no campo social da escola, que condiz com o presente recorte temático, situada por interesses de um grupo dominante, é capaz de estabelecer quais saberes são necessários para estipular o currículo. Pensa-se erroneamente que o currículo contém o núcleo de todo aprendizado e que independente da região ele é essencial, ele é um cânone cultural (TORRES, 2003); não se discute porque aprender português ou matemática, e para ser mais preciso, não é questionado o ensino da análise sintática e das operações básicas. É impressionante, por outro lado, pensar que o currículo não é pronto, acabado, finalizado, atemporal, pois ele serve a uma comunidade e, ao menos no Brasil, segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996), a construção do currículo passa por uma gestão democrática composta por gestores, professores, alunos e a comunidade (pais, moradores, alunos, interessados em educação).
A diversidade curricular e possíveis mudanças nele que beneficiem os estudantes a desenvolver suas habilidades, motivações, inteligências e a participar de seus espaços sociais, viver suas próprias culturas, são massacradas por uma extensa subdivisão dos meios de produção citadas anteriormente, que a este ponto, podem ser vistas como fragmentação da realidade e a criação de disposição a aceitar sua condição social e acolher a cultura dominante.  “(...) A educação deve promover a “inteligência geral” apta a referir-se ao complexo, ao contexto, de modo multidimensional e dentro da concepção global.” (MORIN, 2000, p.39).

Capitalismo, democracia e poder

A lógica empresarial, meritocrática e tecnocrata, conta Mészáros (2008), divide a humanidade entre sujeitos e objetos, os primeiros são constituídos de intelectualidade, consciência de classe, padrões civilizados e esclarecidos, enquanto os últimos são anárquicos, alienados, manipulados, subvertem o sistema, e precisam que os sujeitos - uma minoria que detém quantia considerável de saber-poder -, atue como consciência dos objetos. Isto consiste numa inversão entre dominantes-sujeitos e dominados-objetos e preservação das funções do capital.
            Ainda segundo Mészáros (2008), as mudanças das concepções internalizadas pelos sujeitos nesses regimes de conformidade a serviço do capital surgem na medida em que se alimenta a contraconsciência, atividade e efetividade com uma educação abrangente, não restrita às instituições formais; devem sustentar-se em aspirações emancipadoras com objetivos concretos sustentáveis, basicamente: não limitar-se à utopia.
            Neto (2004) compreende que as forças econômicas do neoliberalismo desarticulam a formação de grupos políticos, interferindo na formação cidadã da sociedade. Ele faz uma defesa à educação pública para todos; ressalta inúmeras vezes como o terceiro setor não é suficiente nem adjacente às concepções universais de educação e outros direitos sociais, e como a democracia se desfaz realçando os direitos individuais em decorrência do bem-estar social. Como já foi mencionado neste texto, o capital transforma as condições de existência para impor sua própria realidade; quando o capital participa da lógica da realidade, adapta os corpos e mentes ao habitus capitalista com tamanha facilidade que tende a enraizar-se no cotidiano priorizando vontades individuais sobre as vontades coletivas.
            A cidadania, decorrendo de uma pedagogia participativa, ativa, engajada e autônoma, fracassa com o desmantelamento do debate político gerado pelos valores trazidos pela lógica da produtividade e competitividade ligada às empresas e a gestão privada. De forma mais concreta, as vias da privatização tendem a “transferir os gastos públicos do ensino superior para os outros níveis de ensino (principalmente o ensino fundamental) (...)”, culminando na “ (...) privatização do ensino secundário e superior e redução dos gastos por aluno em todo os níveis de ensino” (NETO, 2004, p.26). Com o pretexto das reformas educacionais sob o critério da equidade, “enfatizando o importante papel da educação como estratégia de mobilidade e igualdade social” (NETO, 2004, p.27), percebe-se uma tentativa de ajuste na base, que tenderia a igualar as condições de existência de classes, abarcando, entre tantas pessoas, aquelas que vivem com péssima qualidade de vida, que estão sujeitas a violência, à pobreza, a marginalização, à exclusão.
            O único inconveniente desse raciocínio é o ensino médio e o ensino superior convertidos em instituições privadas e inalcançáveis para as classes mais desfavorecidas, sabendo que a antiga medida de garantir equidade não acontece de forma imediata: a partir do momento em que se institui um novo sistema político-econômico. Por mais que se pense na educação como instituição de condições de igualdade, inclusive igualdade de oportunidades, há de se pensar na realidade social como diversa e múltipla, com inúmeras formas de atribuir sentido à realidade. A igualdade de oportunidades acontece com o estreitamento da significação sobre o mundo, que é claramente um açoite da violência simbólica sobre as formas de ser, de se constituir, de perceber o outro e de perceber-se por instituir um cerco curricular com conteúdos que se restringem a um número de significações pouco representativo comparado com a demanda perante a qual o Estado oferta educação.
“O Estado surge como a esfera das supraestruturas jurídico-políticas para  reprodução das relações de produção a partir da subsunção real do trabalho ao capital” (PAOLI, p.43, 1980). Seria de sua responsabilidade a administração do espaço público e de suas decisões, sobretudo, de responsabilizar-se com o que acontece nele. Porém, quando a máquina política que possui poder de justiça sobre a sociedade está nas mãos de pessoas que servem a interesses pessoais e a corporações, a justiça passa a agir com dificuldade.
A cidadania definha em conjunto com o debate político quando a internalização do capital não tende à diversidade, multiplicidade, pluralidade e ao estranho – a realidade externa a nós, outras realidades, o outro. Porém, é em alguma medida concreto o suficiente para ser inserido na realidade de quem estranha quando vivencia essa realidade-outro e estabelece uma relação dialógica com ela. Fazer acontecer um ensino de qualidade numa sociedade desigual (sem igualdade de oportunidades) não anula a história dos sujeitos, apenas diminui a carga da violência simbólica que eles sofrerão e que sua trajetória de vida não será suficiente para definir suas condições de existência; privatizar o ensino tende a impedir a continuidade da educação pela recusa em enxergar qualquer desigualdade, como se todos trabalhassem no mesmo ritmo, estivessem sincronizados, possuíssem a mesma história, vivências tão semelhantes a ponto de a igualdade concreta ser verdadeira.
Na privatização o mercado é o grande consultor da educação, já que o capital é seletivo e preserva a desigualdade de classes. É inconsistente uma educação pública que se compromete com excluir, criar limites, atuar como impedimento, reprimir, oprimir quem faz uso dos espaços públicos de educação, que acabam sendo os resultados de uma educação praticada sob a tutela do capital.
Pensando no capital como um disciplinador, no sentido atribuído por Foucault (2011), ele vigia e pune os indisciplinados pelas instituições responsáveis por fiscalizar o ensino, impedindo a convivência entre disciplinados (aqueles que obtiveram sucesso nas avaliações) e os indisciplinados (os que fracassaram nas avaliações). Aqui recai a estratégia da responsabilização apontada por Freitas (2012): as escolas recebem testes avaliativos feitos pelos estudantes, seguido da divulgação pública dos resultados; a bonificação dos melhores professores e das melhores escolas ressalta a competição profissional e estrutural das instituições escolares: focando nos resultados, adquirem processos mais eficazes para aumentarem os valores numéricos das avaliações, pondo de segundo plano a educação integral, substituindo-se os tempos variados de aprendizagem pelo tempo do produtivismo, arbitrariamente imposto pelos detentores de saber-poder dessas mesmas instituições; por fim, Freitas (2012) menciona o começo da privatização acontecendo nas escolas que não alcançam os resultados esperados, sendo responsabilizadas pelo seu fracasso no processo de ensino dos alunos e transferindo o bem público de incumbência do Estado para a iniciativa privada.

Diversos grupos, organizações ou mesmo indivíduos podem almejar a posição de porta-vozes de determinadas visões políticas ou interesses sociais. Nem todos, porém, têm capacidade de se colocar na esfera pública de maneira a reivindicar tal posição. São necessários recursos materiais e simbólicos, providos muitas vezes pelo Estado, por fundações privadas, por organismos multilaterais como o Banco Mundial ou por redes transnacionais de advocacy. Se, na ausência de mecanismos de controle e autorização, essas organizações não prestam contas àquelas cujos interesses dizem representar, devem prestar contas a seus patrocinadores (MIGUEL, 2011, p.51).

Até o presente momento, entende-se que a escola possui responsabilidades com a educação de seus estudantes e a queda do rendimento deles nas avaliações é responsabilidade dala. Os estudantes com seus diversos ritmos e aprendizados pré-escolares e não-formais não podem sofrer nas mãos das instituições pelos frutos de um ambiente social e cultural distante de como a escola percebe a educação, sobretudo a concepção de educação integral[7]. Ressalta-se que isso não pode acontecer pela obrigação que a escola possui de ser inclusiva e trazer para seu espaço formal qualquer educação informal ou não-formal que contribua para a educação, lato sensu, do usuário do espaço escolar.
As plataformas competitivas geradas pela bonificação dos resultados são impulsionadas pelos valores do capital. Quando o Estado abre mão de parte da educação pública e a confere a uma instituição privada, não o faz porque está acordado em Lei, mas porque os representantes públicos da educação possuem valores que convergem aos interesses do capital e sugerem a iniciativa privada sob o discurso dela ser a solução para evitar o fracasso escolar que se torna mais comum com a queda da qualidade do ensino público, temendo que esse fracasso se torne irreversível. Os interesses dos representantes nem sempre são os mesmos de seus representados, e isso não acontece apenas porque eles possuem perspectivas diferentes que afetam seus julgamentos e escolhas, a falta de mecanismos institucionais de controle visando a autorização e a accountability permite essa usurpação do poder (MIGUEL, 2011).
Retomando o tema do fracasso escolar, é um termo controverso para Charlot (2000). Ele prefere trata-las por situações de fracasso, pois não alimenta a ideia de que existem fórmulas para o sucesso escolar e por isso bastariam condições ideais gerais para todos os alunos. As situações de fracasso consideram as relações subjetivas que o aluno estabelece com seu mundo a seu tempo, que não são as relações esperadas pela instituição. As exceções ao fracasso escolar seriam os alunos que estabelecem relações próximas ou semelhantes àquelas esperadas pela instituição, sobretudo, não por uma força disciplinar da escola, mas por interesses e motivações particulares desse ser que possui experiências[8]. A escola lida com situações objetivas e subjetivas que não podem ser reduzidas a um ou outro termo, são ambas partes do processo de ensino-aprendizagem; o ensino depende substancialmente da aprendizagem do corpo sensibilizado por suas vivências, que levam o educando a apreender o mundo. Em comparação, um ensino que pouco busca saber sobre os conhecimentos desse ser e monta um currículo que lhe parece ser básico, que é imprescindível para sua vivência, aplicando a violência simbólica a esse corpo por não permitir que ele se eduque[9] de modo a privilegiar sua autonomia e sua autoria[10] com relação ao seu próprio conhecimento.
O capitalismo, inserido na educação, objetifica os corpos e nega os sujeitos. Constrói modelos, prepara formas, abusa do poder sobre as relações desiguais para uniformizar os seres. Freitas (2012) mostra isto claramente quando menciona o estreitamento do currículo que acontece como consequência das políticas de privatização – política salvadora da educação nacional pela incapacidade da educação pública gerir seus próprios recursos. Se a educação pública não consegue gerir seus próprios recursos é porque existem possuidores de saber-poder que veiculam discursos de verdade sobre o que é ou não é qualidade e tentam mostrar como a educação para o trabalho[11] em detrimento da educação integral é o que impedirá a miséria do país-nação, o que não é verídico, considerando que esse sistema que preza o trabalho compulsivo não contribui para a diminuição de desigualdades, incentivo a políticas afirmativas, autonomia dos sujeitos, diminuição das violências, desenvolvimento da moralidade e senso de coletividade; trabalha na contramão da educação que atravessa os documentos oficiais nacionais (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (1996) e os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997), por exemplo) e internacionais (Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948)) que visam a reciprocidade e cidadania.
Torres (2003) argumenta que uma das tensões existentes entre democracia e capitalismo é como os direitos pessoais e direitos de propriedade acarretam a expansão do capitalismo, mesmo que sigam uma lógica contraditória e conflitante entre esses direitos. O capitalismo na democracia funciona com base nos negócios, na mercadoria, na troca de bens, o que justifica a apropriação dos recursos sociais e, arguta, conforma a sociedade ao gerar padrões éticos de comportamento social. Neste sentido, segundo Torres (2003), democracia e educação não podem estar dissociadas, pois os padrões de conformidade dirigidos à população garantem que o capital possa continuar firme em desintegrar as interações entre classes, raças/etnias e gêneros; não podemos, ademais, pensar que a educação se restringe apenas às escolas, como insiste Mészáros (2008), pois isso seria pensar na educação formal. Bourdieu & Passeron (1975) não cedem em denotar na escola seu caráter distintivo, o filtro entre quem detém o capital cultural daqueles que são incapazes de continuar no sistema por não possuírem o capital exigido: a escola avalia um capital que é anterior a ela.
O capitalismo adentra a escola e encontra espaço nela para se reproduzir informalmente (e até formalmente, se esse for o desejo dos grupos dominantes); o capital mostra-se penetrante, capaz de absorver o que se encontre diante dele e aplicar sua própria lógica. Imediatamente concluímos que dentro e fora da escola a educação é permeada por um pensamento consumido pelo capital, e como ele é incapaz de democratizar as decisões, preferindo as divisões, estratificações, não-interações, heteronomia e uma consciência dominada, que exalta os direitos pessoais em detrimento dos sociais e vê em tudo uma propriedade, daí a possibilidade de afirmar seu direito de propriedade a tudo também, seja um bem material ou imaterial.
Vale ressaltar as palavras de Morin:

Estamos na era planetária; uma aventura comum conduz os seres humanos, onde quer que se encontrem. Estes devem reconhecer-se em sua humanidade comum e ao mesmo tempo reconhecer a diversidade cultural inerente a tudo que é humano (2000, p.47).

Em contrapartida, a educação do capital acontece por meio da violência simbólica, que por uma perspectiva foucaultiana seria tratado em termos de poder. Foucault (2011) mostra perfeitamente que a educação pode trabalhar pela punição, mas segundo ele não basta reprimir; a repressão deve possuir um conteúdo disciplinar, deve fazer o indisciplinado perceber-se como tal e interiorizar esse valor, ele deve sentir-se constrangido, envergonhado, como se tivesse feito algo imperdoável. Ele precisa ter em mente que a punição foi merecida. Se o indisciplinado acredita que sua ação é indisciplinada o poder de dominação de inscrever a verdade naquele corpo está cumprida. As greves nas universidades, por exemplo, com sua função homeostática nas políticas e normas aplicadas aos usuários desses espaços, possuem seu saudoso efeito equilibratório elidido pela visão dos grupos dominantes que a interpretam como um caso de indisciplina, somado, ainda, à pretensão de construir um futuro profissional que não constará no diploma se a greve for a escolha.
Esse valor é tão enraizado nos corpos que encontramos seus traços já na criança que ouviu suas figuras de respeito e grande parte das pessoas com que convive dizerem que ela precisa ser bem sucedida, conseguir um bom trabalho, ter dinheiro para comprar quinquilharias; ela não trabalha, só precisa estudar, e se já trabalha, pode conseguir um trabalho melhor - se não se resignar com sua posição social (como quem diz isso não é para mim; universidade é coisa de gente rica, gente inteligente, que quer estudar etc.; ou ainda, o trabalho que tenho é o máximo que posso conseguir com meu nível de estudo).

(...) estes confrontos devem ser institucionalizados, de maneira que possam ocorrer somente através de mecanismos, cujo funcionamento os faça parecer como não diretamente político, o que permite a sua “suavização” (PAOLI, 1980, p.38).

                Segundo Vinha (2000), a moralidade pode ser resumida em como eu devo agir perante o outro, está implícito que existe um julgamento e ele é considerado para pensar suas ações socialmente. Os estágios da moralidade seriam a anomia, heteronomia e autonomia, sendo a anomia associada ao egocentrismo[12] e a impossibilidade de seguir as regras; a heteronomia à obediência às regras por conceber o outro como um ser diferente de si; e a autonomia como situação em que o sujeito passa a criar regras no conjunto social. “Quando os indivíduos se respeitam mutuamente e elaboram uma regra sentem-se obrigados por ela” (VINHA, 2000, p.80), e é o bem-estar e a satisfação que deveriam estar associados a norma, enquanto a autoridade e a recompensa ao cumprimento da norma deveria ser evitado.
            Elaborar uma regra ou norma e cumpri-la é, para Vinha (2000), um reconhecimento ao sentimento do outro, prezar o respeito por si e pelos outros; o desenvolvimento da moralidade deve passar pelo sentimento interior de obrigação, diferente das medidas do capital que funcionam de forma a estabelecer a heteronomia por punições e recompensas constantes, de forma que os sujeitos nunca se tornam autônomos. Ser autônomo implica que “É preciso que eles [os indivíduos] pratiquem primeiramente, vivenciando relações de igualdade e democracia, para depois vir a consciência (e não esperar o contrário” (VINHA, 2000, p.80). Deste modo “Uma criança aprende o que vive e se torna o que experimenta” (VINHA, 2000, p. 40), e experimentar a conformidade e obediência exigidas do capital às estruturas sociais, políticas, economias e culturais está longe de ser um ambiente educativo capaz de desenvolver as potencialidades humanas.
Compreende-se que a existência de um poder que submete os envolvidos na relação alimenta uma consciência artificial, comandada por interesses dos grupos dominantes, não garante a criatividade e a espontaneidade necessárias para enxergar a complexidade do mundo. “O dever principal da educação é de armar cada um para o combate vital para a lucidez.” (MORIN, 2000, p.33).
A criança, forma primeira do sujeito, não trabalha apenas por imitação, coerção ou vigilância, ela possui desejos, iniciativa para satisfazer suas curiosidades, é uma exploradora nata, e assim ela segue para a fase adulta se o ambiente permitir, ou seja, “a moralidade seria resultante das relações estabelecidas pelo sujeito com esses ambientes” (VINHA, 2000), e Piaget (2001) e Montessori ([19-]) haverão de ressaltar as influências que o ambiente possui sobre o desenvolvimento infantil. Se um sujeito não possui uma educação esperada é porque o ambiente não foi favorável para o desenvolvimento dela. E tratando-se de uma educação pública, seria da responsabilidade do Estado garantir condições de uma educação que promova o bem-estar de todos e nunca abrir mão dessa educação, pois é de sua responsabilidade que ela aconteça. Enquanto o Estado garante educação ela precisa ser de todos, em caso de iniciativas privadas, não necessariamente.  
Aproximando-se da educação, os estudantes, não participando dos espaços democráticos, onde acontece a educação, ficam restritos a outros locais – os espaços privados. E quanto mais desaparece o espaço democrático, maior a possibilidade que haja regras sem importância para os estudantes nesses novos espaços (e que não seja possível modificar a regra), uma vez que eles não participam da elaboração da regra, podendo ela ser contrária aos valores de quem utiliza o novo espaço. Tenta-se separar os estudantes-trabalhadores de suas condições objetivas de existência. Segundo Vinha (2000), criar uma regra é atribuir valor a ela, é saber por que ela é importante. “A necessidade de ser respeitado, equilibra, por conseguinte, a de respeitar, e a reciprocidade que resulta desta nova relação basta para aniquilar qualquer elemento de coação” (VINHA, 2000, p.50). Se todos colaboram para criar a regra, se todos entendem porque ela está lá, compreende-se que ela é mais do que um controle externo, ela é uma autorregulação. Educar para a cidadania passa a ser um dos rudimentos de uma educação preocupada com a construção das relações (SILVA, 2004).
A moralidade é essencial para que concebamos humanidade no outro que vive as mesmas regras que nós e como é importante despertarmos solidariedade e respeito mútuo para conseguirmos perceber as diferenças, a diversidade, a multiculturalidade (MORROW & TORRES, 2003; TORRES, 2003) e como a meritocracia e a igualdade de oportunidade foram mitos vividos em favor do capital privilegiando os detentores de saber-poder, que por acaso são os criadores das regras, eles que atribuem valor à norma, e se há desobedientes é porque eles não compreendem seu valor.
A norma não precisa ser seguida apenas porque é norma, o que é um pensamento associado ao estado de heteronomia; deve ser possível que se questione a norma e o valor da norma. Quanto menos pessoas autônomas num mundo capitalista melhor para sua perpetuação, o mesmo vale para a consciência crítica (FREIRE, 2012) e a contraconsciência (MÉSZÁSROS, 2008): sem elas não há transformação.
Quando, neste trabalho, liga-se o capital ao poder, entende-se que:

Se o poder fosse somente repressivo, se não fizesse outra coisa a não ser dizer não você acredita que seria obedecido? O que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve−se considerá−lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir. (FOUCAULT, 2006, p.8).

            O poder, portanto, não se resume apenas a possuir uma posição de influência política, receber um salário maior que o de outra pessoa, tomar decisões que outras pessoas não podem; significa ser capaz de formar conteúdos nos corpos e nas mentes, ser totalmente invasivo, conseguir criar o certo e o errado, fazer cumprir interesses pessoais a partir de corpos docilizados pelo poder. Foucault (2006; 2011) vê o poder como uma rede de interações, e a sociedade está sempre acionando seus dispositivos e acabam tendo sua sensibilidade ao mundo induzida, pois as estruturas de poder reagem sobre os corpos docilizando-os: o poder não torna os sujeitos dos corpos livres para sentirem, ele conduz as sensações para que os corpos estejam programados a fazer o que é esperado que façam. De forma análoga, a violência simbólica de Bourdieu (2003) considera a existência de estruturas estruturantes que agem como estruturas estruturadas, culminando posteriormente no habitus. Dessas duas perspectivas percebemos como os corpos podem ser moldados no sistema capitalista para cumprir os fins deste último.
           
O capitalismo, por definição, exige representação diferenciada no poder e na política, promovendo a injustiça através do estabelecimento de hierarquias e do estímulo a interesses competitivos, e a desigualdade através da operação de um sistema que visa lucros. (TORRES, 2003, p. 68).

Considerações finais

As concepções dos grupos dominados muitas vezes aderem aos interesses daqueles que detém o conhecimento sobre o trabalho, portanto dos meios de transformar o mundo (MARX, 1996). E mesmo que os grupos dominados se libertassem do poder dos dominantes pela consciência crítica, nas palavras de Paulo Freire (2012), ainda teriam de enfrentar toda uma burocracia política e econômica de seu tempo que só podem ser reorganizadas com a materialidade que a realidade oferece e com a consciência que os trabalhadores ou grupos dominados dispõem, ou seja, dos meios de produção conhecidos ou possíveis de serem conhecidos (ou acessíveis) para transformar a desigualdade de classes num plano justo para todos, onde as relações de poder são mínimas.
O espaço público é primordial por ser o local onde todos decidem, e é um espaço democrático em potencial: é onde a acumulação acontece pensando sua posterior distribuição e a globalidade das relações; é onde a moralidade e bom convívio são prestigiados; é onde a responsabilidade social encontra eco em cada indivíduo participante, simultaneamente, o pensamento ético visando a cidadania colabora para que a justiça social garanta dignidade e bem-estar para todos: e espaço público é onde o eu encontro o outro e interagem estabelecendo relações, sejam elas de concordância, desacordo, conflito, consentimento etc. Já o privado é o espaço que não é de todos, está restrito aos interesses pessoais: está inserido no público, mas é para onde todos os cidadãos retornam quando não estão pensando nas suas responsabilidades sociais; é propriedade, logo, o direito de posse salienta que as decisões tomadas nesse meio não precisam ser democráticas; por uma questão de valores, é onde se estabelece mais facilmente o poder. O privado, nessa concepção, vê no público uma potencial propriedade.
O mundo capitalista e globalizado admite as desigualdades expostas pelo pensamento de Marx (1996), o acumulo incansável de capital perde de vista a responsabilidade social, a ecologia nas relações e a complexidade de uma era planetária (MORIN, 2000) para transformar o capital público em bem exclusivo, um troféu ou medalha de honra para grupos dominantes - detentores dos meios de produção que delimitam relações de desigualdade e vivem delas (MARX, 1996).
Pensar o trabalho próximo da educação é inextrincável pelo fato do trabalho influenciar a educação com valores voltados para a produtividade e competividade. Valores de uma economia capitalista. Educar hoje em dia é educar para o trabalho e educar para o trabalho é educar para manter um sistema econômico. A educação de qualidade, por outro lado, se interessa por capacitar o sujeito a ser autor de suas ideias, de conviver harmoniosamente com outras pessoas, de saber resolver conflitos de formas inteligentes, de experimentar seu corpo no mundo e produzir experiências duradouras ou promotoras de novas experiências. Na contramão da educação pretendida, podemos compara-la com uma guerra, como faz Illich (1985):

A guerra do Vietnã serve como exemplo ao nosso raciocínio. Seu sucesso é calculado pelo número de pessoas efetivamente servidas por balas baratas, entregues a um preço elevado. E este cálculo brutal é desavergonhadamente chamado “contagem de corpos”. Assim como negócios são negócios — um não acabar de acumulação de dinheiro — assim a guerra é matar — um não acabar de acumulação de cadáveres. De maneira semelhante, a educação é escolarização; e este interminável processo é quantificado em horas-aluno. Todos esses processos são irreversíveis e autojustificáveis. Pelos padrões econômicos, o país se torna sempre mais rico. Pelos padrões de contagem de cadáveres, a nação continua vencendo sua guerra eternamente. E pelos padrões escolares a população torna-se sempre mais instruída (p.55).


                Se a escolarização garante um trabalho para o cidadão isto é suficiente, pois o trabalho impulsiona o país na competição internacional e “Pelos padrões econômicos, o país se torna sempre mais rico” (ILLICH, 1985, p.55), como consta na citação anterior. O que não significa reverter todo esse sucesso em educação. É mais provável a criação de formas de avaliação de habilidades para qualificar o tipo de trabalhador necessário para fazer funcionar a máquina econômica, o que exige uma demanda de diplomas no mundo do trabalho. Em Illich (1985), podemos afirmar que as pessoas consomem educação para ter educação, da mesma forma como se tem um carro, roupas, casa, quinquilharias em geral. Conquistado um diploma, pensar no que você é não importa, pois ter o diploma é suficiente, mesmo que ele não reflita sua trajetória na educação. O diploma, em todo caso, é capital institucionalizado (BOURDIEU & PASSERON, 1975), é parte do Mito do Consumo Interminável de Serviços (ILLICH, 1985)

A escola se presta efetivamente ao papel de criadora e sustentadora do mito social por causa de sua estrutura que funciona como um jogo ritual de promoções gradativas. É muito mais importante a introdução neste ritual do que averiguar-se como ou o que é ensinado. É o próprio jogo que escolariza; ele entra no sangue e torna-se hábito (ILLICH, 1985, p.57).

Capitalismo é o contrário de uma educação de qualidade, e como se não fosse suficiente, não está interessado em discutir educação. Educação não é economia, por mais que toda cultura tenha sua economia e ela influencie na educação dessas culturas; educação não é trabalho, por mais que ele seja, atualmente, o fim da educação formal. Educação é o conhecimento sobre a Humanidade e um autoconhecimento que é direito inalienável, que confronta o mundo do trabalho e o mundo puramente econômico como conhecimento libertário.
A defesa à democracia como espaço público acontece nesse sentido: o de ser possibilidade de reinvenção das condições de existência das populações. Para não extinguir a educação de qualidade é de extrema coerência que se mantenha a educação pública e gratuita, pois sua qualidade, ainda que não garantida, só poderá ser pensada num ambiente em que a educação não possui origem. Ela é uma matemática complicada sobre várias culturas, é um processo histórico de seus sujeitos, é o pensamento das diferenças, são variações linguísticas de uma riqueza inegável, são estilos de vida que destoam, são tantas vozes, cores, formas, sabores e perfumes que propor a educação de viés capitalista é suportar um estilo de trabalho e um sistema econômico que não promove compreensão complexa da totalidade: está longe de ser educação.
A educação do futuro é uma educação que deve começar agora e deve estar atenta aos discursos que exaltam interesses particulares e de dominação sobre o espaço público. Defender uma educação do capital é conformar-se num estado de heteronomia; é dizer que está tudo bem que outros decidam por mim porque eles me mostraram através de um poder docilizante que eu não sou importante no processo de decisão. Como se isto não fosse suficiente, as estruturas burocráticas das instituições quase nunca favorecem o contato entre quem possui posições de poder e quem reivindica mudanças.
Seguindo o pensamento moriniano encontramos que “Cabe à educação do futuro cuidar para que a ideia de unidade da espécie humana não apague a ideia de diversidade e que a da sua diversidade não apague a da unidade” (MORIN, 2000, p.55).
Coadunando, Torres (2003) afirma:

Precisamos de uma teoria da cidadania multicultural democrática que leve a sério a necessidade de se desenvolver uma teoria da democracia que ajude a atenuar, senão eliminar completamente, as diferenças, desigualdades e injustiças sociais que permeiam as sociedades capitalistas, e capaz de abordar as tensões draconianas entre democracia e capitalismo, de um lado, e entre as formas democráticas sociais, políticas e econômicas, de outro (p.67).

                A educação do futuro não é uma utopia, é uma questão de tempo e de transformação das interrelações globais que se apresentam rotineiramente, sempre pensando somos todos agentes transformadores e que qualquer ação marca o mundo, transformando-o. Não vivemos isoladamente, vivemos socialmente, e justamente por isso convivemos, nos descobrimos convivendo e precisamos prezar a convivência para viver conjuntamente. A convivência, entretanto, deve ser reconhecida, experimentada com todas as energias de quem vive a relação, não tolerada ou aturada. Para alcançarmos isso podemos pensar como alternativa para a privatização do ensino uma educação para a humanidade e a globalidade das relações, que deverá acontecer na escola pública, gratuita e de qualidade.

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[1] “Esse incremento [de valor], ou o excedente sobre o valor original [de uma mercadoria], chamo de mais-valia (surplus value)” (MARX, 1996, p.271). Para que isto aconteça, Marx (1996) afirma que deve haver separação entre o trabalho e os meios de produção.
[2] O que gera diferenciações entre cursos “moles” (letras, filosofia, pedagogia) e cursos “duros” (engenharias, medicina, direito).
[3] As condições de existência podem ser lidas como habitus de classe, gênero e etnias/raças: são as condições subjetivas e objetivas que determinam como o sujeito se percebe, como ele probabiliza seu sucesso, suas metas, seus possíveis destinos, como ele enxerga sua trajetória social e se posiciona no futuro (sou capaz de fazer um curso superior?; provavelmente não me aceitarão como trabalhador naquele lugar; eu não deveria estar aqui, não sou como essas pessoas), sendo capaz de romper ou não com sua posição social dentro do campo. (BOURDIEU, 2003).
[4] Originalmente, Mészáros (2008) se refere aos trabalhadores. Como ele escreve sobre uma educação essencial (que compreenda a totalidade das práticas educacionais), entendo que a sensibilização das consciências ao capital aconteça nas mais diversas situações de dominação. Substituir trabalhadores por dominados me permite abranger os efeitos do capitalismo sem interferir na leitura que Mészáros faz da educação capitalista, que é ampliar o entendimento sobre a lógica do capital. Os trabalhadores são uma parcela da classe dominada atingida pelos efeitos do capital.
[5] Na mitologia grega, corresponde ao rei de Frígia que ao tocar os objetos, transformava-os em ouro.
[6] Podendo inclusive pensar a internalização pelo pensamento vigotskiano (VIGOTSKI, 1998).
[7] Educação integral como semelhança à solução essencial da educação em Mészáros (2008), educação para além do capital, como uma autogestão, atendimento às reais necessidades do ser, da automediação: expressão do “autocontrole e da auto-realização através da liberdade substantiva e da igualdade numa ordem social reprodutiva conscienciosamente regulada pelos indivíduos associados” (p.72-73). Ou ainda como a educação pela experiência de Dewey que deve proporcionar experiências que culminem na possibilidade de novas experiências (2010).
[8] Os alunos com capital cultural próximo dos interesses da instituição escolar não terão tantos problemas em assimilar os novos códigos, o interessante é ver como alunos com capital cultural distante dessa mesma instituição, por razões que apenas suas próprias experiências o explicam, podem se aproximar desses mesmos códigos por interesse próprio, assimilando-os mais comodamente por desenvolver um gosto verdadeiro por aquilo que esta conhecendo, em comparação com a violência simbólica, que possui a função de convencer o aluno que aquilo é o que ele quer.
[9] Maria Montessori ([19-]), em sua pedagogia, parte do princípio que a criança é o centro de sua própria educação, ou seja, ela é que dita os caminhos que ela precisa para os adultos, sendo responsabilidade deles organizar o ambiente para propiciar a educação que a criança mostra precisar. Desta perspectiva, a violência simbólica possui parte apenas em como o ambiente é mobiliado e adequado à criança pelo adulto, que é muito menor em comparação com as salas de aula e o currículo pré-estabelecido. Os conhecimentos vitais partem, para Montessori ([19-]), das necessidades situacionais da criança.
[10] Termo comum na pedagogia de Paulo Freire (2012), que considera que o sujeito cria conhecimentos a partir das interações com seu mundo. A ação gera transformação no mundo, e nessa mediação acontece a apreensão da transformação que foi produzida pelo ser capaz de realizar a ação, assim, a mudança possui um autor, que é um sujeito histórico capaz de pensar o mundo que transforma.
[11] A educação para o trabalho é pensada a partir do documento Uma Ponte para o Futuro (2015).

[12] Estado em que a criança percebe a realidade indissociada de si e de suas sensações, por isso, ela não se emociona ao ver uma criança chorando por ter se machucado. “Por que ela chora se eu estou bem?” traduz o pensamento da etapa egocêntrica na criança.

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