Num quarto iluminado pela lua crescente, depois de uma
discussão séria, esposa e marido oram em desespero, cada um a sua maneira, cada
um a seu Deus, para que um milagre amalgame o amor do casal: ela de joelhos ao
chão, cotovelos na cama e mãos unidas em frente ao rosto; ele, sobre o tapete,
ajoelhado, de cabeça curvada. Atendidas as preces, um anjo de túnica celeste,
membros musculosos, asas volumosas e rosto escultural é enviado para a mulher, enquanto
uma djin seminua de vestes transparentes sobre o corpo esguio, um véu cobrindo
a parte inferior do rosto, com colares e braceletes dourados, ampara o homem.
“Minha
senhora” diz o anjo “em tua doce tristeza, acredito que desejas algo que eu
possa dar-lhe”.
“Rogo-lhe,
dá-me o amor de meu marido. O primeiro traiu meu coração, não posso ficar
sozinha outra vez. Sem ele sou nada”.
“Pois bem,
toma aqui esta semente que trago nas flores de meus cabelos. Coma-a junto com
teu marido num campo de girassóis e garanto que serás mais feliz”.
Neste mesmo
instante a djin conversa com o homem.
“Vejo que
estás em sofrimento, deveria alguém passar por tamanha confusão?”.
“Ó djin,
que sei eu? Apenas liberta-me desta tortura que é o que sinto”.
“Neste
caso, fica de jejum por uma semana. No início do oitavo dia dá do teu leite a
tua mulher”.
Assim, o
anjo e a djin desaparecem. O homem jejuou por uma semana inteira. Sentia-se
renovado. No oitavo dia encontra sua esposa no campo de girassóis atrás de seu
humilde lar, ela lhe apresenta a semente da flor que crescia na cabeça do anjo.
Numa contagem regressiva dada pela mulher, as sementes são ingeridas. Seus
olhos castanhos encontram-se acidentalmente. Seus corpos diminuem tanto a
distância entre eles que chegam a sublimar-se um no outro. Às provas do amor
louco cedem seus desejos à estranheza da vida. Nesse ínterim, ele derrama nela
sua mais absoluta substância. Ela, resoluta, aceita o calor preenchê-la. Os
girassóis ao redor, comovidos com o acontecimento, balançavam seus caules para
acariciar o casal. Sete meses depois, nasce uma menina de cabelos da cor de
girassóis e olhos lunares, cujo nome vem a ser Hana. A criança cresce saudável,
destemida e feliz.
Um dia, no aniversário de sete
anos da filha, a família põe-se a conversar sobre as virtudes as .virtudes
dela.
“Se não
fosse minha djin” dizia o pai “nossa filha não teria os olhos tão lindos e vida
tão boa”.
“Disto não
há como discordar” concorda a mãe “mas tão belos cabelos e forte atitude só podem
ser dons angelicais”.
“Bom,
digamos que isto pouco importa mundo a fora, onde deverá estar coberta dos pés
à cabeça e demonstrar obediência”.
“Mas que
cabeça essa! Quem algum dia sonhou em cobrir tamanha beleza e subsumir toda
esta vontade divina a costumes rigorosos? Deverá ter modos, isto sim, mas
torná-la-ia uma aberração ao enfiar-lhe panos desnecessariamente”.
“Acredito
que não raciocinas direito, portanto, presta atenção: a virtude que nossa filha
carrega é do tipo mais impressionante, será necessário escondê-la dos olhos
maliciosos, daqueles que desejam ter da beleza dela e da vontade que carrega.
Garanto que estas coisas ruins acontecem o tempo todo, seria grave permitir que
lhe fosse tirado todo o dom de seu nascimento”.
“Mais uma
vez, só mantenho acordos convosco, não posso ignorar que além dos muros de
nosso lar existem experiências pavorosas para uma criança, porém, não seria a
virtude que estaria sendo tomada dela caso este mal aconteça, será apenas sua
graça e inocência, que nada tem a ver com a beleza e a vontade”.
A conversa
continuou até tornar-se uma discussão tão feia quanto aquela que os levou a
convocar o anjo e a djin. Hana escutava tudo atentamente, sabia mais do que sua
mãe e seu pai imaginavam, mas se manteve silenciosa durante toda a situação. Em
algum momento seu pai investiu contra sua mãe num surto de fúria, daqueles que
fazem as pernas de qualquer pessoa tremer de medo. Sua mãe alcançou a faca no
armário, também assustada, mas com olhar determinado, apontava a lâmina de brilho
opaco para o marido. Travava-se um impasse entre eles, o qual foi prolongado
através de xingamentos, baixarias e insinuações de trazer os sentimentos a flor
da pele.
Hana corre
com medo para seu quarto iluminado a luz de velas. Agarra o tapete de seu pai e
faz a oração que sua mãe lhe ensinou. Milagrosamente aparecem o anjo e a djin
para socorrê-la.
“Ajudem-me,
mamãe e papai estão brigando de uma forma que nunca vi antes, alguém pode
machucar-se! Acabem com isso”.
“Minha
querida” diz o anjo “acredito que isto seja impossível, visto que nenhum deles
deseja a paz do outro”.
“Portanto”
continua a djin “você seria capaz de escolher entre um de teus criadores para
salvá-lo da violência de seu cônjuge?”.
“Claro,
seria capaz de qualquer coisa para dissipar meus medos!”.
“Então,
toma este presente” diz o anjo ao transformar as unhas da criança em garras
enormes e afiadas como as de um lobo “deverás usá-la para banir todo o mal que
te aflige”.
“Eu serei
mais generosa” interrompeu a djin fazendo crescer dentes gigantescos e
serrilhados na boca de Hana, ficavam a mostra o tempo todo, eram assustadores
como suas garras “Isto te servirá para comer do espírito bom que reside o corpo
que destroçarás”.
“Mas
lembra-te” bradou o anjo “Não deverás tirar a vida de sua mãe e de teu pai,
deverás escolher sabiamente qual deles deverá sonhar eternamente”.
“Quebrar
esta condição” profere a djin como num sussurro “trará consequências duras
demais para uma criança como tu, quereis descobri-las? Creio que não”.
O anjo e a
djin sumiram num piscar de olhos. O fogo da vela crepitava no quarto invadindo
os pensamentos de Hana. Suas emoções mais vivas foram amortecidas pelo ímpeto
sanguinário trazido pelas dádivas. Furar, cortar, rasgar, desmembrar,
despedaçar e estripar eram imagens acolhedoras para a menina. Sem pensar duas
vezes, avançou pela casa em direção ao pai. Com a surpresa a seu favor,
perfurou-o com as garras para abocanhá-lo em seguida, triturou-o com seus
dentes. Ao engoli-lo sentiu o sangue ferroso descer da língua para a garganta,
depois para o estômago. Sentiu enjoo. Não imaginara que este gosto horrível
pudesse ser o de seu pai. Ponderou por um instante se o sabor correspondia à
bondade da pessoa. Não tinha certeza.
A mãe, sem
reconhecer a filha, foi tomada de espanto. Hana chamou pela mãe, ela
apavorou-se e correu para abrir a janela para tentar escapar. A menina chamou
outra vez pela mãe, que respondeu com meio corpo dentro da casa e a outra
metade fora da casa “Mentes para mim! Minha pequena não possui esses dentes e
estas garras, fostes enviada pelo demônio. Quem não garante que tu engolistes
minha pobre criança?”. Os insultos movidas pela desconfiança continuaram, Hana
não suportava ouvi-los e foi encontro a mãe para chorar em seu colo. A mulher, ouvindo
grunhidos sinistros ao invés do choro da filha transformada, desfere um golpe
com a faca, cravando-a no ombro esquerdo da menina. Ela urrou de dor. Toda sua
melancolia virou fúria incontrolável. Decapitou a mãe com um único movimento de
garras. Em seguida devorou o corpo dela, dessa vez mais lentamente do que
fizera com o pai. A cabeça foi a última parte a ser mastigada. A mãe também
possuía um gosto ruim de sangue, não sabia o que pensar disso.
Ventos
sibilantes penetraram a janela com a luz da lua crescente acompanhando o voo do
anjo e da djin casa adentro. Desta vez foi a djin que falou primeiro.
“Como te
advertimos, não deveria haver matado a ambos, agora quem lhe dará de comer e de
beber? Quem afastará os fantasmas e todos os males que vem de fora da casa?
Quem a instruirá nos ofícios da leitura e da álgebra? Quem tornar-te-á adulta
neste mundo frígido? Que pensastes que fosse acontecer?”
“Eu fiz o
que me foi mandado” defendeu-se Hana “Tive de proteger-me, estava em perigo!”.
“As garras
e os dentes serviam a um único propósito” retorquiu o anjo “descartar sua dor,
mas pela dor fostes tomada, agora deves sofrer pelo que fizestes, estás
condenada a viver como um animal para sempre. Não haverá nada a ser ensinado
daqui em diante, pois tudo o que necessitas está dentro de vós, sente vossa
natureza apossar-se de quem fostes até agora para cair no esquecimento de si
mesma”.
“Perderei
as memórias que tenho do amor de meus pais?” Hana perguntou assustada “Sinto-os
tão vivos dentro de mim, de uma forma esquisita, mas estão aqui, posso
senti-los, estão comigo, não morreram!”.
“Como isto
seria suficiente para manter-te viva?” pergunta a djin.
“Poderás
repetir isso quantas vezes quiser, isto não muda em nada a maldição que
carregas por merecer” diz o anjo.
Hana
chorava compulsivamente. Ao tentar secar as lágrimas cortou parte de seu rosto,
o que lhe traria uma enorme cicatriz. Os dentes não faziam mais que torná-la
assustadora, o que viria a impedir que outras pessoas aproximassem-se dela. Não
era mais humana. Hana deixa o lar para aventurar-se alhures, com o tempo passou
a caminhar
O lar
antigo de Hana também se animalizava ao ser tomado por gramíneas, cipós e
pequenos animais, transformou-se para servir de exemplo para todas as pessoas
que por ela passavam. Famílias inteiras temiam a história dessa casa. Toda vez
que um uivo ressoava na calada da noite, os ossos tremiam de pavor como os de
Hana tremeram ao perder o pai e a mãe. Até onde se sabe, nessa região essa história
é contada por pais e mães para seus filhos com alguma frequência. Ninguém nunca
viu ou ouviu anjos ou djins, apesar de acreditarem profundamente neles. O que
interessa é que o espírito selvagem de Hana corre livre por entre nós e algumas
famílias, e não são poucas, rezam pela proteção contra o mal que ela
representa, às vezes usando dos rituais mais esdrúxulos que alguém poderia
imaginar.
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