Páginas

segunda-feira, 26 de março de 2018

A ilha itinerante (parte final)


Rapidamente a menina aconchegou-se entre suas cobertas e o avô deu início à aventura:
                - Em algum lugar existe um vasto oceano chamado Ravel, como o do compositor do bolero. Nesse oceano vive um povo tritão, os Nami, num imenso palácio de coral. Eram criadores de artefatos mágicos, músicos eloquentes - principalmente o canto, apreciadores do movimento calmo do mar e alfaiates incríveis. Até que um dia Thamis, espírito das nuvens, irado com o comportamento de seus irmãos, desce para Ravel. Seu temperamento era contagioso, o que induziu mudanças de hábitos nos tritões Nami, como a agressividade da guerra. A magia deles passou a encantar suas lanças, tridentes e arpões. A música manteve-se sem muitas alterações, mas passou a ser mais comum nas despedidas dos soldados para o campo de batalha e antes de iniciarem seus confrontos. As águas tornam-se mais agitadas com a vinda de Thamis, muito apreciado pelos tritões Nami. Seus alfaiates, que antes faziam roupas mais longas, encurtam-nas para melhorar a natação.
                “Este cenário se mantém por 461 marés - que é a forma como os Nami contam o tempo.  Então nasce Irmadhala, filha de Rinanf - general das tropas Nami, a oeste do oceano Ravel. A tritã, nascida longe dos encantos provindos da presença de Thamis, não possui impulsos combativos. Ela possui um ímpeto diferente, motivado pelo seu desejo de ser cartógrafa das águas, de tanto que adorava ver o pai trabalhando em suas estratégias. Ele, de bom grado, imaginando sua filha uma futura guerreira, ensinava-a pacientemente e com afinco, não poupava detalhes. Ela, em resposta, aprendia rápido, orgulhando o pai. Sua ambição em ser cartógrafa era bem recebida por ele.
                “Nessa mesma história existe um homem chamado Fael, ele é o irmão mais velho dos cinco filhos de sua mãe, Luci, sendo seu irmão Rael o segundo mais velho e suas outras três irmãs, Gina, Tina e Mina, as mais novas. Fael e Rael são pescadores, aprenderam o ofício com o pai e assim sustentam suas famílias. O pai morreu no mar, uma tempestade pegou-o de surpresa. Ele nunca mais voltou. Os novos homens da casa logo lançarem-se ao mar, com seus 10 anos.
                “Fael é uma pessoa letrada: escritor de poemas, contemplador do mar e da água, também das belas pedras. Aprende aquan – a língua que fala Irmadhala e seu povo, por conta própria para ler alguns livros dos povos tritões que por acaso vem parar em sua rede de pesca. A princípio vendia-os para os colecionadores da cidade, com o tempo percebe que deixa passar algo importante ali, segredos que ele mesmo poderia desvendar, e dedica-se a aprender o aquan. Sua intenção é muito bem recebida por missionários de terras nobres – posso dizer que eram como padres e sacerdotes, os quais instruem Fael em seu tempo livre.
“O primeiro encontro de Irmadhala – que chamarei de Irma a partir de agora, foi na praia de Aratur, um pequeno banco de areia, quando ainda eram crianças. Porém, ela sente-se intimidada com a presença de Rael, irmão de Fael, o qual desenvolve uma paixão doentia pela imagem da tritã. Num segundo encontro, no mesmo trecho de praia, Fael entrega a lápis-lazuli para Irma. Desde então ficam muito próximos. Ela interessa-se por ele, e ele por ela.
“Não demora muito para começarem a encontrarem-se às escondidas - Irma de seu pai, Fael de seu irmão. Para os namis Irma comete um terrível crime de inter-racialidade – um tipo de casamento que não pode acontecer, enquanto para Fael é uma discrição necessária para não enervar o irmão psicótico e apaixonado - que desde criança tinha um certo gosto por torturar animais.
“Irma detestava Nami, por isso adorava sair com o pai para suas expedições. Nunca mencionou esse incômodo para o pai, fazendo-o pensar que a vocação para a guerra irradiava da filha. A sensação de agressividade era o que impelia Irma para fora de Nami. Ela não era imune aos efeitos de Thamis, apenas é presenteada com um olho de Abbu – espírito irmão de Thamis, bem cedo. O olho, que nada mais era que a lápis-lazuli com a qual Fael lhe presenteara, emanava a tranquilidade que ela precisava. A aura deste objeto era sentida por Thamis e causava-lhe irritação, o qual ficava mais irrequieto com a chegada de Irma e Rinanf, descontando sua ira nas águas tranquilas. Pai e filha, a essa altura, já eram prestigiados pelos demais namis com um carisma provocado por essas místicas coincidências.
“A pedra em questão é abandonada na praia por Jin, um terceiro irmão de Thamis e Abbu. Seu comportamento é o de um sábio profeta, mas demasiado misterioso para ser compreendido de imediato. Assim, esperava que Fael encontrasse o olho de Abbu e entregasse-o a Irma, que viria a carregar esta joia preciosa para todos os lados, protegendo-a da aura de Thamis.
“Um dia, numa discussão com seu pai, o qual acusa a filha de comportamentos negligentes, Irma revela seu segredo. O pai entra num acesso de raiva e promete devastar a costa de Aratur – onde vive Fael. Com medo, ela corre para alertar seu amado. Ainda com medo de seu irmão, escreve uma carta e deixa-a presa na rede de pesca de seu barco junto com uma chave para abrir a caixa. Desesperada, nada velozmente para a ilha itinerante.
“Rael já desconfiava da furtividade do irmão - os longos passeios às praias e as refeições por fazer dununciavam-no – a verdade é que não as fazia na frente de Rael. Geralmente os irmãos dividiam tarefas no barco, alternavam os dias da limpeza, da pesca, da manutenção das velas e do casco. Irma conhecia bem essa rotina, sabia que Fael deveria pescar nesse dia, porém, uma infecção toma conta de sua saúde, causada pela mordida em sua coxa de um peixe venenoso. Nesse dia seria Rael a puxar a rede de pesca. Rael vê a carta escrita inteira em aquan – língua que ele desconhece, com exceção da última linha, na qual lê-se Sua princesa d’água na língua humana.
“Num dia no mar, Rael tira satisfações com Fael, sente-se traído. Acaba numa briga de punhos. Começa uma perseguição no convés: Rael com um machado em mãos, Fael com um pedaço de metal. Rael crava o machado na popa do barco numa tentativa de ferir Fael, o qual desvia por sorte. Logo mais, uma faca retirada do bolso de Rael corta a garganta de Fael. Um irmão está morto. Rael não se sente culpado, inventará histórias sobre o acontecido, saboreia a ideia de por a culpa na tritã. O vento carrega o barco bagunçado – com pedaços de vidro no chão, mariscos pelo convés, páginas de algas espalhadas, a carta molhada e o sangue no chão - de volta para a praia de Aratur – terra dos irmãos. Uma vez lá, Rael devolve o barco para as águas e conta sua versão da história para todo o povoado, que choram a lastimosa morte de Fael pelas mãos do monstro aquático.
“Na carta estava escrito exatamente o seguinte: Querido Fael, papai descobriu, entretanto, o contorno de nossas linhas serão fronteiras na incerteza do mar, das terras misteriosas e submersas que te suspirei. Eu navego pela encosta de corais guiada pelos ventos, pelas nuvens e pelos meus adventos. Sem demora, te espero onde a água cobre a areia, onde a ilha também é mar, onde provamos e entregamos nosso amor num mesmo corpo. Minha cartografia nos reunirá em traços líquidos como nossas formas. Se for impossível, afundarei tentando afogar-me, me estatelarei contra a água gentil, farei sua correnteza viva encaminhar-me à morte. Terminando com o já conhecido Sua princesa-d’água.
“Nessa mesma ilha itinerante, visitada por Irma e Fael várias vezes, ele encanta a tritã com histórias contadas pelos sacerdotes sobre a possibilidade de unirem seus corpos em um. Este tipo de união vinha a ser incomum para os tritões, que não viam vantagens em manter tal proximidade ou matrimônios duradouros. A nami, encantada com a ideia, toma uma poção retirada do palácio de corais dos Nami – direto dos aposentos de seu pai, para conseguir corpo humano temporário. Na ilha eles tornam-se íntimos, unem-se pela primeira vez, selando um compromisso sem volta. Irma pede que Fael guarde o frasco da poção com ele.
“De volta ao presente, Irma guarda sua joia numa caixa de conchas, presente de seu pai Rinanf. Cavando a areia para guardá-la, encontra uma escotilha. Uma escada de metal desce até a escuridão. No funda dela, um piso de granito. Irma deixa sua caixa lá, com a joia e algumas moedas. Ela usa uma varinha para encantar as águas e criarem elementais de água para vigiarem esse lugar – um verdadeiro templo.
“Irma parte para o povo de Aratur, avisa-os da chegada do exército de Nami. Os clérigos que ali estão prendem-na, levando-a para a escotilha encontrada mais cedo por ela e acorrentam-na numa das celas subaquáticas. Pegam a caixa na saída, enfrentam os elementais bravamente, retornando, por fim, a Aratur. Enquanto isso, Thamis caminha pela superfície do oceano acima dos Nami buscando as borbulhas que eclodem na superfície, de onde, crê ele, saem cantos capazes de preencher sua ira com um vazio tilintante.
Leonel não soube exatamente para onde postou sua mirada esse tempo todo. Parecia tão perdido em si mesmo que nem se deu conta que Alice dormira na metade da história. Deu um beijo de boa noite na menina e disse-lhe “Bons sonhos, Ali”. Desligou a luz do quarto. Fechou a porta do quarto da neta. Em direção ao seu quarto pensou “Talvez essa não seja uma história para crianças” e começou um longo processo mental de adaptação da história (considerando que na próxima vez Alice permaneceria acordada até o final).



O Farol, óleo sobre tela, de Déborah Netto

Nenhum comentário:

Postar um comentário