Quando Leonel
acordou a luz invadia a persiana da janela de Alice para repousar em seus
olhos. Estava exausto pela briga do dia anterior. Não queria levantar-se, teria
de lidar com a filha, mas estava com fome. Por um instante parou para pensar
como não percebera que Jéssica estava bêbada quando lhe telefonou. Sua fome o
venceu, ele resolveu descer à passos cautelosos, tão silenciosos quanto os de
um gato.
Não encontrou ninguém no andar
de baixo. O ambiente estava mudo. O chão estava limpo, sem manchas de vinho ou
o que quer que Jéssica tivesse derramado no chão no dia anterior. Admirou o
relógio de ponteiro na parede, eram 9h43. Arrastou os pés até a cozinha, estava
completamente desanimado. Adentrando o cômodo avista Jéssica tomando seu café
numa caneca de plástico, como sempre o fazia. Ela ou não o percebe ou ignora-o.
Como se estivesse sem alternativas, ele pede desculpas.
Ela parece não escutá-lo. Dá um
gole no seu café e põe-se a encarar seu reflexo na pedra da mesa. O telefone
quebra o silêncio antes dele se tornar constrangedor. Nenhum dos dois se move
para atendê-lo.
- Não vai ver quem é? – Jéssica
é a primeira a falar.
- Não, vou deixar tocar.
O telefone continua bipando
insuportavelmente, como a maioria dos telefones.
- Pode ser pra você. – fala
Leonel mirando os próprios pés.
- Deve ser o banco de novo, já
disse que não vou negociar nada.
Os bipes incessantes parecem
querer participar da conversa.
- Não é culpa sua o que
aconteceu ontem – Jéssica anuncia.
- Olha filha, eu não estou bem
com aquilo...
- Sei que não, você fez pela
Alice, eu entendo.
O telefone parou. Eles
continuavam sem se olhar, pareciam estátuas apreensivas por se mexer.
- Eu te machuquei?
- Não.
- Não precisa mentir, me fala se
eu te fiz algum mal.
- Você nem me empurrou com
força, eu escorreguei no vinho do chão.
- Ah, sim. – Leonel não
acreditou – Então você está bem? – Ele levantou os olhos timidamente para a
filha que continuava a encarar a mesa.
- Uhum. Não foi isso que mais me
machucou, sabe? – Ela lhe devolveu um olhar gelado, ele não soube como
interpretá-la.
Leonel mexeu na barba. Isso
ajudava-o a ter mais confiança, por alguma razão desconhecida.
- Ele passou aqui de manhã para
pegar a Alice, devem estar indo ao cinema ou algo assim. Não contei o que
aconteceu, mas não sei se Alice vai guardar segredo.
- Por que você fez isso? –
Leonel parecia recuperar parte de sua coragem com o que soou como um insulto
vindo da boca de sua filha. Era quase como se sua honra tivesse sido tocada.
Ela olhou o pai com descaso.
- Não fica fazendo pose, você se
mete demais.
- Aquele homem não vai ficar
levando a Alice de um lado pro outro.
- Aquele homem é seu irmão, não
sei porque isso te incomoda tanto.
Leonel ficou pasmo, não
conseguia acreditar no que ouvia.
- Como você pode ser tão cega? É
exatamente por isso que me incomoda. Não é óbvio para você?
- Não foi essa minha pergunta. –
Jéssica não esboçou reação. – O que realmente te incomoda? Por que ele é um
problema? Por que só ele é um problema? Você nunca foi ciumento assim.
- Não é ciúmes, cazzo! Você não acha estranho vocês
terem uma filha?
- Por que somos da mesma
família? Por que ele é meu tio?
- Como você consegue agir assim
com tanta naturalidade?
- Parece até que eu cometi um
crime – Jéssica revira os olhos, ela sabia que isso enfurecia Leonel.
Ele apenas respirou
profundamente, procurando conter-se. Jéssica emitiu um riso e levou as mãos ao
rosto, como se o limpasse ou fizesse uma massagem.
- Não posso mais ficar aqui. –
ela disse.
- Como assim?
- Vou embora, parece que é a
melhor coisa.
- E como você vai se sustentar?
Do jeito que ela olhou Leonel
parecia que ele tinha feito uma pergunta idiota, o olhar era sarcástico com um
riso de vitória no canto do rosto.
- Do mesmo jeito que você,
trabalhando.
- Você já tem um emprego? E a
Alice?
- Não tenho, posso conseguir,
isso não é difícil.
- Você parece segura demais para
quem não tem muita coisa.
- Não estou pedindo conselho, já
disse o que vou fazer.
- Vai morar com ele?
- Se eu quiser, sim.
- Você está só querendo me
irritar.
Leonel caminhava freneticamente
pela cozinha, não conseguia esconder sua ansiedade.
- Trarei Alice para visitá-lo,
ela gosta das suas histórias.
Ele só conseguia agitar a cabeça
em sinal de negação. Olhava para os móveis como alguém buscando algo que
perdeu. Por azar, não encontrou nada.
- Me conta a história que você
contou para ela ontem.
- O quê?
- Por favor. – Jéssica estava
séria, de forma que deixou Leonel desconfortável.
Após um silêncio constrangedor,
Leonel começou sua história sem ser interrompido. Ele teve a impressão de ser
repreendido pelo olhar de Jéssica mais vezes do que ele gostaria, entretanto,
considerou sua atitude um tanto paranoica. Assim, entre a insegurança de um
olhar mortífero e a confiança em ser protagonista desse momento na cozinha, ele
começou seu conto.
Terminado sua eloquente
história, Jéssica passa a observá-lo com curiosidade, até que pergunta:
- De onde veio isso?
- Isso o quê?
- A história. Você tem noção do
que acabou de me contar?
Leonel estava confuso com as
perguntas.
- É uma história sobre você,
pai! E de como você está todo intempestivo por dentro e sentindo-se traído,
apunhalado e... não sei nem se quero continuar falando disso.
- Mas de onde você tirou isso?
- Todas as personagens que você
mencionou parecem fragmentos de você mesmo, não acha?
Se havia algo em que Leonel
confiava profundamente eram nas análises de Jéssica sobre as pessoas.
- Jé, eu não sei se é realmente
isso, não duvido que seja, mas não é o melhor momento para me convencer disso.
- Ravel, sério?
- Agora vai implicar também com
o nome que eu dou para as coisas na minha história? – Leonal começava a se
irritar com a petulância da filha.
- Não é isso, é só que o bolero traduz muito bem suas mudanças de temperamento. Me entende?
- De verdade, não muito, filha.
- Você poderia muito bem ser
Fael ou Rinanf nessa história, qualquer um dos dois. Ou melhor, são as duas
partes do seu desejo. Rael é claramente seu irmão. E a Irma, claro, sou eu, não
vejo como poderia ser de outra forma. Não te deitei no divã, e acho que nem preciso.
- Por que ela não pode ser só
uma história? Quer dizer, como chegamos nisso de parar para analisar histórias
que conto para a Alice?
Pela primeira vez, Jéssica olha
o pai com preocupação.
- Eu te causei tanto mal assim?
A pergunta pega Leonel de
surpresa.
Mais uma vez o silêncio
predomina.
- Veja, Jé, essa situação nossa
não está boa pra mim. Não foi isso que imaginei que aconteceria algum dia,
entende? – Jéssica faz um gesto positivo com a cabeça – Então tente entender
meu lado, se a história ajuda, ótimo, mas pense como eu me sinto. Obviamente eu
não posso impedir você de nada, nem quero. Só me dê tempo.
- Quanto tempo? Você percebe que
meu tempo está junto com o seu? Que eles têm a mesma duração, estão juntos e eu
não quero esperar você decidir se está bem ou não em permitir o que quer que
seja ou aceitar que esses problemas que você tem são apenas seus?
- Vá mais devagar...
- Devagar? - Jéssica assume um tom sarcástico - Eu não quero ir
devagar, eu quero só que você pare de se preocupar com problemas que não são
seus, não preciso te dar satisfação nem explicações sobre mim que você
considera um desastre. Sabe por quê?
Porque quem vê esse desastre todo é você, não eu. Está tudo bem para mim. Está
a muito tempo, quem causa desastres aqui é você.
Uma pontada de culpa cresce no
íntimo de Leonel. Uma dor subterrânea rasteja debaixo de sua pele empurrando
suas lágrimas para fora de seu corpo.
- Desculpa. – Jéssica, amiudada, mantém-se
sentada olhando para a mesa – Eu precisava dizer tudo isso.
- Tudo bem – diz Leonel secando
as lágrimas com a manga da camisa – Acho que é assim que você se sente.
Depois de alguns segundos
Jéssica anuncia:
- Vou sair agora.
Ela se levanta, abraça o pai e
diz baixinho:
- Eu te amo, não quero que você
se sinta mal.
- Também te amo, desculpa.
Jéssica beija o rosto do pai.
Por estar envergonhado, ele não levanta a cabeça para saber se ela lhe sorriu
ou dirigiu algum acena de despedida, apenas fixou o olhar numa mancha de café
no chão. Passou um tempo incontável na cozinha repassando seu conto mentalmente
incansavelmente até dar-se por satisfeito com sua própria análise. Dado o
cansaço pelo esforço de interpretação, adormeceu na mesa, esquecendo-se de ir
ao laboratório nessa tarde.
Acordou apenas quando a campainha tocou, anunciando a chegada de Alice,
que geralmente não precisava que Leonel lhe abrisse a porta. Ele se
recompôs, preparou sua melhor face e foi ao encontro da neta que tentava abrir
a porta da sala sem sucesso algum.
- Está conseguindo? – pergunta Leonel.
- Tá duro a chave, não gira!
- Deixa que eu abro deste lado.
Aberta a porta, Alice pula nos braços de vô e lhe presenteia com um
beijo e um abraço.
- Eu assisti um filme de sereias ontem, vovô.
- Ah é?
- Uhum, elas são bonitas! Suas sereias são bonitas que nem as que eu vi?
- Eu não sei que sereias você viu.
- Elas tinham cabelos coloridos e conchas aqui – Alice cobre os peitos
com as mãos – e rabos de peixe e o amigo dela era um peixe.
- Talvez minhas sereias não sejam tão bonitas, elas têm dentes mais
afiados e a pele é mais azul.
- As sereias que eu vi eram iguais a mim.
- Quer subir e ouvir o resto da história?
- Quero! Quero! – berra Alice aos pulos.
- Mas sem me interromper. Se me interromper eu preparo aquela couve-flor
fedida e faço você comer.
Alice sacode a cabeça para os lados com a língua para fora.
- Ótimo, então sem atrapalhar a história certo?
- Não quero couve-flor, não gosto.
Assim, Leonel carregou Alice até o quarto dela e preparava-se para
narrar o conto que tanto o atormentara nesse longo dia.
Sentimento de ilha, pintura de Dad |
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