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sábado, 23 de dezembro de 2017

A ilha itinerante (parte 1)

Chove do lado de fora do laboratório. Leonel manuseia com cuidado um crânio recém- chegado do sítio arqueológico. Deve apenas enumerar a amostra e guardá-la em seguida, mas perde-se nos vestígios que as eras deixaram, permitindo-o fantasiar uma vida inteira naquele pequeno objeto que carregava em mãos. Sua neta, Alice, entra na sala, inquieta pela demora do avô que vinha prometendo terminar logo o trabalho e irem para casa comer os pães-de-queijo restantes na geladeira.
- Vovô, vai logo!
- Só mais um pouco...
- Você já disse isso da última vez – Alice interrompe impaciente – Eu quero ir embora! Não tem nada para fazer aqui!
Leonel não está tão motivado para voltar para casa, sua filha Bianca continua irritada. Sentir o olhar ameaçador dela ao dizer boa noite o exaure só de pensar. Alice coloca-o contra a parede com seu pequeno surto. Como esperado de alguém experiente, Leonel não dá atenção ao pedido da neta, ao invés disso, mantém a postura e fala com naturalidade, indicando o crânio em sua mão:
- Justo agora que eu ia te apresentar esta sereia?
Alice arregala os olhos e puxa a barra da calça do avô.
- Deixa eu ver, coloca na minha mão - ela estende o braço tentando alcançar o objeto.
Leonel solta uma exclamação.
- O que você acha que tá fazendo? Não posso te dar isso aqui não. Pega seu banquinho. Vai lá.
Num trote desengonçado, Alice alcança o banquinho do lado da sala, arrasta-o para perto do avô, senta-se nele e põe-se a sacudir as perninhas.
- Como eu ia dizendo, esta é a cabeça de uma sereia. Mas não qualquer sereia, ela é uma guerreira! Na verdade ela é mais que uma guerreira, Ali, é uma tritã. Sabe o que são tritões?
A menina diz baixinho que não sabe, ainda balançando as perninhas como se estivesse num balanço. Seus olhos grandes encontram os do avô.
- É um povo antigo vivendo nos mares. Se parecem muito com peixes, mas muitos deles têm a aparência de pessoas com nadadeiras, escamas, aquelas peles que os sapos têm entre os dedos...
- Então eles são meio sapos também?
- Não, são meio peixes.
- Mas você disse que eles têm pele de sapo.
- Não, meu amor, é parecido, eles não têm nada a ver com os sapos, só parece. Tá bom?
- Tá.
- O nome dela é um pouco complicado de lembrar, era Irmadhala, mas podemos chamá-la de Irma, é mais fácil de falar. Ela vivia num mar chamado Mar de Ravel. Era um lugar com ondas grandes, as águas eram agitadas e tinham monstros nela. Alguns barcos afundavam de tão fortes que eram esses bichos, e eram bem agressivos, bravos demais.
- Tem tubarões?
- Tem sim.
- Tem baleias?
- Não tem.
- Tem sim. No meu livro tem uma baleia e uma lula e a lula tá comendo a baleia.
- Mas como você sabe o que tem e o que não tem? Você já foi pro Mar de Ravel alguma vez?
- Não fui, mas tem no meu livro e ele é dos oceanos e tem que ter baleias nos oceanos porque todo oceano tem baleias. – Alice começa a brincar de morder os lábios - Eu nunca fui no oceano vovô.
Alice contava tudo pausadamente, como se separasse as partes mais importantes.
- Olha, tem lulas aqui sim, elas são enormes. Bem grandes. As baleias estão em outro lugar, não passam por ali. É verdade, existem baleias nos oceanos, mas esse aqui é um mar. Lembra que eu te disse que o mar é menor que um oceano? Um oceano é maior do que um mar.
- Então não tem baleias? – sua voz mingou com a pergunta.
- Não, mas têm lulas, tubarões, serpentes gigantes e, o principal, um palácio enorme de coral – Leonel, numa atuação, ergueu seus olhos para o alto e levantou-se da cadeira erguendo os braços.
Ele tomou a mão da neta e dispararam para um pedaço de coral numa bancada do outro lado da sala em cima de uma placa de madeira. Levantou Alice no colo. Sem dizer nada a menina aproximou as mãos do cnidário de calcário.
                - Essa pedra é bem dura.
                - Não é uma pedra, Ali, é um animal. A parte dura é o esqueleto dela. Elas comem peixinhos também, sabia? E animais menores ainda.
                - Ela não se mexe.
                - Alguns animais não se mexem.
                Alice continuou tateando o que a lembrava duma rocha, daquelas que ficavam na beira do rio e gostava de brincar de lançá-las à outra margem. Leonel, ao não receber nenhuma resposta, continuou.
                - Alguns corais são tão grandes quanto as baleias. Muito maiores. Alguns peixinhos usam os corais para se esconder de outros peixes maiores ou até para morar por lá. O palácio de coral da Irma não é diferente, também tem peixinhos vivendo por lá. Têm tritões, que são peixes grandes. A casa deles é um coral. Já pensou que legal se sua casa fosse um coral? Você moraria dentro de um ser vivo?
                - Só não quero que ele me coma – ela solta uma risadinha, escondendo o rosto no peito de Leonel.
Deep Sea Mermaid Spitpaint de Robert Powell
- Você é muito grande para virar comida. De volta à história – Leonel devolve-a ao chão – Vou pular para a parte que importa. A tritã, num passeio a uma praia, encontra um humano. Ele não está sozinho, tem um outro garoto do lado dele. É seu irmão. Já viu aquelas pessoas que olham fixamente para você?
                - A mamãe olha bastante pra mim quando eu bagunço a sala.
               - Não desse tipo de olhar. Não é o olhar de quem está bravo, é um tipo de olhar de alguém que está enfeitiçado, meio paralisado, sem saber se mover direito.
                - Tem um menino da minha escola que olha assim pras pessoas. Ele é estranho.
                - Estranho como?
               - Ele tem medo de tudo. A tia sempre fala com ele. Ela pede pra gente brincar com ele, vovô. Eu não consigo ficar olhando pra ele, me dá medo.
                Leonel rumina alguns sons.
                - Não é bem um olhar de medo, mas é um olhar que incomoda. Quando Irma, a tritã, olha para esse outro garoto na praia, ela se assusta. Mas veja bem, o menino não está assustado. Ele quer a sereia.
                - Ele gosta dela?
                - Gosta, mas ela não gosta dele.
                - Então eles não vão casar.
                - Não mesmo, mas ele quer tanto que obrigaria a sereia, digo, tritã, a casar-se com ele, mesmo que isso a fizesse infeliz.
                - Ele é mau, vovô?
                Um desconforto atinge Leonel. Ele não quer responder essa pergunta, mas cede.
                - Um pouco. Bem, ela vai embora da praia, não quer ficar por ali. Os garotos também vão embora, não têm mais nada para fazer por ali. Alguns dias depois a sereia... Céus! Por que não lembro a porcaria da palavra? – Alice emite uma risada gostosa – Não repita essas coisas. Eu também não posso dizer, às vezes escapam.
                - Tá bom, vovô.
                - Bem, a tritã retorna à praia dias depois. O mais velho dos irmãos, o que não olhou assustadoramente para Irma, encontra ela. Ela não se sente ameaçada, ele parece ser uma boa pessoa. Eles conversam muito. Conversam sobre suas vidas, suas cidades, seus lares, seus trabalhos, seus sonhos, e ficam conversando por muito tempo, Alice. Eles só param quando anoitece, aí vão embora. Eles não podem se encontrar sempre, ele é um jovem pescador. Tem um barco e sobe nele todos os dias para pescar. Seu irmão participa da pescaria junto com ele, por isso Irma mantém distância do barco, nem se atreve a chegar perto dele.
                Um toque de celular interrompe a história.
                - Deve ser sua mãe.
                Leonel retira o celular do bolso e atende.
                - Alô.
                Uma voz feminina responde em tom inexpressivo.
                - Vocês estão voltando? – É sua filha, Bianca.
                - Não, estamos no laboratório...
                - Voltem logo então, estão demorando.
                A ligação é encerrada. Leonel passa alguns segundos olhando para o celular. A chuva do lado de fora se intensifica, chegando a bater na janela. Parecem pequenos pedaços de pedra contra o vidro. Num passe de mágica, Alice surge entre suas pernas grandes com as mãozinhas apoiadas na barriga do avô. Olha Loenel com alguma desconfiança e pergunta se ele está com fome. Leonel ri.
               - Estou sim, precisamos ir atrás daqueles pães-de-queijo. Fizemos muitos, não é?
              Leonel ergue Alice no colo. Guarda o crânio da suposta “sereia” no armário, tranca o laboratório e corre em disparada para o Gol cinza, cobrindo a cabeça de Alice com o jaleco branco. Leonel senta-a na cadeirinha no banco de trás primeiro para depois acomodar-se no banco do motorista.
                - Passe o cinto, Alice.
                - Aham. – Leonel ouve um clique no banco de trás.
                - O que ouviremos, meu amor?
                - Eu quero Pato Fu.
                - Hum, já estou me cansando desse CD, precisamos mudar a playlist.
                Leonel liga o rádio e pressiona o botão play. Alice vinha ouvindo o álbum Música de Brinquedo há quase um mês infatigavelmente. Seu gosto começa quando ela vai com o Leonel e sua mãe para uma apresentação do grupo na cidade. Ela fica encantada com a performance, como todas as outras crianças que estavam ali. Dançou as músicas a noite inteira, passando quase todo o show em pé em sua cadeira para ver o palco. Os fantoches a divertiam cantando ou fazendo bobagens sobre a cortina que escondia seus titeriteiros. Leonel comprou o CD, achou que fosse uma abertura para inseri-las no mundo da música. Um mês depois se arrepende de manter o CD o tempo todo no carro, já não consegue mais ouvir seu Tropicália como antes.
                “Misere nobis, senhor, dai-me o requiem dessa coisa” pensa Leonel revirando os olhos ao ouvir Love Me Tender na voz da Fernanda Takai. Alice acompanha a música baixinho, inventando algumas palavras, desvendando outras.

                Love me tender, love me true.

                O coração de Leonel se aperta. Alice não consegue percebe, está distraída com a chuva e a música, mas seu avô sente-se diminuir a cada palavra cantada, a cada metro mais perto de casa.

                And we will never apart.

                Leonel atravessa um sinal vermelho. A injeção do carro continua ruim, é melhor não parar. Quer chegar rápido em casa, mas não quer ver Bianca indiferente, preferia que ela estivesse brava, irritada ou o que fosse. É sempre pior quando ela está séria: o silêncio torna-se navalha, as palavras causam arrepios. Atrapalha-se todo ao responder as perguntas.
A música está acabando.

                For my Darling, I love you and I always will.

                Um breve silêncio acompanha o pensamento de Leonel antes de ser quebrado pelos batuques de Sonífera Ilha e sons irritantes de um ratinho. Alice canta “ué, ué” fora do tempo da música e usando a mesma nota, embora tente acompanhar as crianças da música enquanto bate na cadeirinha para marcar o ritmo, também descompassado.

                Não posso mais viver assim ao seu ladinho
                Por isso colo meu ouvido no radinho

              Leonel deixa de prestar atenção na música até Alice voltar a acompanhar a música sem mudar a nota a ser cantada.
                - Sonífera ilha!
                O carro para lado de fora da casa. Chegam antes de terminar a música. Quando ela termina Leonel desliga o carro. Ele não sabe se dormirá ali esta noite.
                - Vamos pegar os pães-de-queijo, meu anjo.
                Retira o cinto de Alice. Tranca o carro. Abre o portão da entrada. Atravessa a garagem e destranca a porta da sala sem maiores expectativas.

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