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sábado, 21 de abril de 2018

Praia de Cristais



Wassilir Kandinsky. Sketch for several circles. 1926. 

Deitado em minha cama, ouvindo o vento ralhar entre as folhas das árvores no meu jardim, debulhava pensamentos infames sobre o futuro e o presente, recriando cenas já vividas e fazendo pequenas mudanças em pequenos pontos da minha vida. Buscando uma luz que guia uma alma perdida, fui carregado pelas marolas de pensamento, logo me encontrei num oceano azul e límpido, com ondas acolhedoras. Nenhum ser vivo por perto para interagir. O céu eram traços de um pincel carregado pelas hábeis mãos de um artista que sabe se expressar, espalhando o laranja em cima do azul com uma maestria que me invejou.

Eu boiava a deriva, em meio às águas calmas e acolhedoras que não queriam me deixar encontrar meu destino, me confortavam para também não ficarem sozinhas naquela imensidão azul. O pintor dava atenção somente à sua arte, não se interessava com o oceano. Há quem diga que eram lágrimas choradas de um romance perdido. Outros sugerem ser a dor de uma espada cortando as esperanças de um samurai de retornar para casa. Se eram lágrimas eu não sei dizer. Não eram calmas demais, tampouco revoltas, tinham um movimento natural, muito parecido ao de alguém que anda por andar, que faz coisas porque elas são assim. Sem motivo, apenas porque sabe o que são e como são, e seu marolar não era diferente, era como qualquer outro, embora me sensibilizasse a não deixar o oceano sozinho.

Ao longe, surgiu a beira de uma praia, ou assim parecia ser. O oceano não permitiu que eu o deixasse, então prometi que voltaria com o pintor para lhe desenhar amigos com que todos sonham, amigos que nunca o deixariam. Viveriam e morreriam dentro do oceano, mas nunca o abandonariam. Muito pelo contrário. O estimariam tanto quanto fosse possível. As marolas, inseguras, me carregaram até a areia da praia, me desejaram adeus e boa sorte, então lhes disse - "Não é um adeus, voltarei ao tardar."

Meus pés sentiram as últimas ondas acariciar os calcanhares, então choraram e o oceano cresceu. Sabendo que não deveria crescer mais, reprimiu o choro e encolheu-se, deixando a areia mais presente.

Cristais descansavam na praia, tão azuis quanto o próprio oceano. Neles repousava uma sabedoria que me atraiu, já me esquecera sobre o que eu próprio pensava. Alguns eram esferas, outros pontiagudos, uns eram similares à rochas cavernosas e a diversidade de formatos crescia. Paredes cristalinas impediam minha visão de enxergar além, me obrigando a contornar o perímetro para continuar a apreciar a paisagem.

Os cristais brilharam todos de uma vez. Senti a areia sob meus pés vibrar. Uma dança de luzes começou e o crepúsculo estava estampado no céu, com o pintor preparando seus tons mais escuros para a noite. Eles estavam vivos como nunca estiveram, embora não andassem, falavam enfaticamente através do cintilar. Me transmitiram conhecimentos que nunca seria capaz de saber sozinho, mostraram lugares exuberantes, do mais profundo abismo até o mais alto pico, deduzi, através deles, enigmas que o mundo sonhava em decifrar. Eu tinha esse mesmo mundo em minha mente com esta única viagem, que por acaso, me trouxe até ali. Sabia inclusive como chegar ao pintor e negociar a felicidade do oceano, deixá-lo mais sossegado.

Antes de tomar meu rumo em direção aos céus, a Lua me chamou e me advertiu de encontrar o pintor. "Não espere poder mudar meu amigo, eu não deixarei que isso aconteça". Ela estava envolta por seu halo branco majestoso. Perguntei se ela gostava de ver Oceano triste, ela me respondeu que mudanças nem sempre acontecem como queremos. Ao pensar em mudar Oceano pensei que minhas experiências pudessem transformá-lo. A Lua estava certa. Como eu saberia que aquela mudança agradaria essas águas inquietas? Não podia perguntar nada a Oceano, ele rebelava-se contra tudo, querendo tomar toda a areia da praia para si, engolfando os cristais com suas ondas, desta vez gigantescas.

Não perdi tempo e fugi das ondas enérgicas, caminhei por um deserto de areia perolada, guiado apenas por intuição até uma floresta de eucaliptos. A Lua não deixou de conversar comigo em momento algum, desculpou-se por sua rudez e me explicou que Oceano escolheu traçar seu destino, um destino que ele controla. Me parecia distante controlar minhas ações, ser dono de mim mesmo, visto que o tempo sempre esteve contra mim e outros interceptavam minha linha da vida. Não demorou para que eu notasse que era livre. Pela primeira vez eu não pisava em pegadas que outros haviam deixado, eu fazia novas pegadas que seriam pisadas por alguém (se é que mais alguém conhecia a Praia de Cristais).

Os cristais, mesmo longe, eram exímios na arte de ensinar, mostravam o que eu entendia, o que eu era capaz de entender e, inclusive, coisas que não compreendia e muitas que estou por compreender. Professores que não ensinavam o certo e o errado, mas de alguma forma me faziam entender que essa separação não existia e que acontecimentos eram acontecimentos e nada mais. Me ensinaram que não saber algo deveria ser mais gratificante do que saber tudo, sempre haveria uma espécie de mágica a ser revelada. Diziam que os sentimentos deveriam ser interpretados com cuidado, pois disfarçavam-se de truques e aparentavam não ser o que eram, escondiam sua verdadeira essência num casulo impenetrável longe dos olhos dos mortais. Aqueles que sabem desvendar truques complicados são mestres do incompreensível; capazes de compreender segredos em segredos, quase nada os surpreendem.

Me preocupei com minhas pegadas. Estaria eu pisando novamente em outras pegadas? Seguindo o caminho que outros já trilharam? Por mais que me sentisse confortável por saber tanto e poder conversar de igual para igual com novos seres inteligíveis, senti minhas pegadas se apagando, meu rastro não existia mais, olhei para trás e vi que a relva estava intocada. Eu passara por ali! Tinha plena certeza, não fiquei louco!

"Por que essa preocupação em ser importante? Não há mais ninguém aqui além de você" disse a Lua de forma generosa. Refleti em meio a cheiros que me distraíam sobre minha importância no mundo. Já não pertencia ao velho mundo, este era outro, era meu e somente meu, então por que me importava? Eu sabia a reposta. Queria ser lembrado. Mas por quem, se não havia ninguém para compartilhar meu sucesso e se inspirar em mim? Não diferente de Oceano, eu queria alguém, qualquer um! Oceano não me conhecia, e nem por isso hesitou em pedir para que eu ficasse com ele. Com minha ida sentiu-se fraco no início, assim como eu estava na floresta, e depois liberou sua cólera sobre os cristais aos quais eu dava tanta atenção.

Em momento algum me senti irado, fiquei curioso. Eu não era como Oceano, por que não explodia de raiva de uma vez? Não éramos iguais. Por alguma razão esbravejei e arranquei a casca de um eucalipto até vazar seiva.

Vi na seiva a imagem de uma pessoa furiosa agredindo uma árvore. Era eu. A imagem me paralisou. Olhei o eucalipto de cima à baixo e vi que se encurvara de medo. Besouros voaram dos galhos até o machucado da árvore e cobriram-no com os próprios corpos. Os mais brutos me cabeceavam, tentando me afastar do eucalipto ferido. Tentei me desculpar enquanto era empurrado pelos chifres dos insetos, a única resposta que obtive foi um farfalhar baixo e melancólico que me partiu o coração. Sentei-me no chão coberto por folhas secas e desatei a chorar. Não quis ser aquilo que eu não era. Soluçava freneticamente. Nisso os besouros me deixaram em paz e partiram para seus lares nos ramos dos eucaliptos.

Eu não enxergava a Lua, mas ouvia sua voz melódica invadir meus ouvidos e dizer que havia aprendido uma lição muito importante. Não precisava que me dissesse isso. Já o sabia. O que não sabia era como moldar meu comportamento para não machucar inocentes novamente.

O cheiro do ambiente ficou mais presente, mais forte. Chilreei o ar. Para minha surpresa era do eucalipto cuja casca eu havia arrancado. Não sabia o que os besouros haviam feito, mas seja lá o que fosse, havia curado o pobrezinho. Pelo farfalhar de suas folhas, pelo ranger de seu tronco, acredito que me dizia que sempre há surpresas em nossos caminhos e elas não tem a obrigação de serem completamente boas; disse também que eu não deveria me preocupar por ele, deveria primeiro cuidar de mim mesmo, e somente depois pensar em reparar o estrago causado. De que adiantava consertar algo se outra coisa seria quebrada logo em seguida?

Em muito tempo não me sentia estranho como naquela hora. As lágrimas escorriam sem parar, e eu nem sabia porque. Havia aprendido minha lição, o eucalipto não se chateou comigo. Porém, eu ainda chorava de tristeza, infeliz comigo mesmo, tomado pela insegurança.

Os besouros não gostavam de mim, sabiam do meu desejo de me isolar e me indicaram o caminho até uma gruta. A Lua desesperou-se em chamar-me, não aprovou a ideia de me tornar um recluso, insistiu que uma tarefa aprendida é carregada para sempre. Se eu tivesse dado ouvidos a ela, poderia ter aproveitado mais de mim mesmo, mas escolhi a cegueira. Adentrei as profundezas da gruta e lá permaneci.

Pensar era ao mesmo tempo luxo e escravidão. Por um lado, conseguia antecipar fatos dado minhas vastas experiências (emprestadas ou vividas), por outro era minha cruz, algo do qual eu carregava independente de querer ou não, ao qual eu fui acorrentado desde que nascera.

Meu escape foi a meditação. Esvaziei minha mente para fugir do vórtice mental ao qual estava aprisionado. O escuro me ajudou a inibir a visão; minha força de vontade tornou o uso do paladar e do olfato irrelevantes, bem como o tato, visto que nunca saía da mesma posição; não havia nada para ser ouvido, a gruta era tão profunda que nenhum som chegava até ela.

A gruta não sofreu transformações, mas a floresta mudou completamente. Árvores novas substituíram as velhas, as folhas que cobriam o chão não eram as mesmas, o próprio chão cansou-se da ordem de seus grãos e reordenou-os até dar-se por satisfeito. A Lua esperou pacientemente pela minha saída, ela não esperava que o escuro pudesse ser tão bem aproveitado quanto a luz, para ela, a luz era o único parâmetro a ser seguido, um leque de incontáveis possibilidades.

Achei que tivesse falhado em minha tarefa de me mudar. A meditação não funcionava, até que eu me senti vivo. Não como o fogo. Acontecia de forma mais estática. O escuro me cumprimentou e disse que estava na minha hora. Meus sentidos voltaram mais aguçados que antes, me sentia outro, e mal havia piscado os olhos. Foi quando saí da gruta e vi tudo diferente que entendi o que aconteceu. Numa das tentativas de meditar eu logrei realizar a tarefa e fui conduzido pelo tempo e vigiado pelas sombras.

Meu corpo não era o mesmo. Minha mente era calma. O volume de conhecimento crescia a cada instante e incontrolavelmente, mas eu não perdi o controle sobre mim. Renasci outro. Meu antigo eu teria dito que eu me escondi de mim mesmo. Me abrigava em algum lugar desse novo ser, protegido por uma segurança que não era minha. Não pude evitar um sorriso. Alisei os eucaliptos por onde passava e alguns até respondiam com a queda demuma ou outra folha. Os besouros eram outros, mas não se deram ao trabalho de me importunar, como disse antes: eram novos besouros e nada sabiam sobre o passado.

Era dia e nem por isso a Lua se recolheu, me esperou com toda a calma do mundo. Para uma imortal como ela, alguns anos eram segundos. Pela primeira vez fui humilde e reconheci meu erro. Preocupada comigo ela lamentou não ter me ajudado quando precisei. Respondi que não era sua culpa, eu era culpado por mim mesmo, afinal, que poderia ela ter feito? Se o escuro foi capaz de me ensinar algo que a Lua desconhecia, não poderia ter sido doutra forma senão pela gruta.

Eu só me compreendi porque busquei o caos. Contrapondo a luz às sombras. Sombreando o caminho iluminado. Foi depois de um período de dificuldade que fui capaz de ser mais do que a Lua esperava de mim. Ou mais do que qualquer outro ser ali esperava de mim.

Retornei à praia para visitar os cristais. Eles estavam incandescentes e tímidos pelo que eu era. Contei a eles minha história. Todos apagados. Iluminados somente pela luz da Lua. Terminada a história o brilho dos cristais se tornou verde e constante. A areia perolada agitou-se num redemoinho. Grãos juntaram-se a outros grãos, aumentando cada vez mais seu tamanho. Por fim, uma esfera polida se formou desse acontecimento. Ela não tinha brilho. Quando a toquei foi que o azul celeste iluminou-a. Os outros cristais acompanharam a esfera numa luz forte.

Dei uma boa olhada na praia de cristais e fiquei surpreso por não ter percebido isso antes. Todos os cristais eram a cristalização de algum aprendizado. As pegadas com que me preocupei em não pisar vinham sendo pisadas desde que encontrara a Praia de Cristais. Isto não era mais preocupante para mim, mesmo pensando como outros sábios, acompanhando seus saberes, desenvolvi um saber novo, original, um conhecimento que eu poderia chamar de meu. Eu tinha minha particularidade, mesmo que ínfima. Minha outra preocupação de precisar dos outros também estava sanada. Eu não poderia obrigar ninguém a seguir o mesmo caminho que o meu, mesmo que tivesse certeza de que este era um bom caminho. Eu deveria ser eleito por alguém que estivesse interessado e motivado a ouvir o que eu tinha a dizer. Meu legado seria aquela esfera, não muito maior que meu punho, mas mesmo assim, um conhecimento a ser dividido com uma outra alma que estivesse perdida no oceano.

Lembrava-me muito bem do movimento do oceano, e as ondas que me pareciam lamurias, agora estavam revigoradas; o brilho disperso estava belíssimo refletindo a luz do Sol. O Oceano mudara, assim como eu. Não pude deixar de rir alto e me encher de animação. Continuava a ser surpreendido mesmo depois de sair da gruta. Teoricamente, eu era mais sábio do que a pobre criança que um dia machucou um eucalipto.

Nem sempre enxergar significa que não somos cegos. Vemos aquilo que nos agrada? Que nos satisfaz? Que nos marca? Que podemos ver? Visão e memória passaram a ser para mim o mesmo elemento quando descobri um presente passageiro. Um único segundo de minha vida foi presente. E ele passou. Passou. Passou. E torna a passar ainda que se renove. Por isso, vivo do passado, de acontecimentos acontecidos, não do que acontece. Nada acontece. Aí encontrei um porque no futuro, a melhor forma de me aproximar do presente. A memória me mantém humano para funcionar sem perder meu fim, pois é nele que me armazeno. No passado eu me guardo, me olho com carinho. Me relembro para não esquecer de mim. Vendo dessa forma pareço tão vazio, tão sem sentido. Sou frágil demais para ser alguma coisa. Dessa fragilidade eu vou me sentindo vivo. Dessa vã fragilidade eu vou fazendo sentido. Sendo preenchido para me sentir puramente esvaziado. Com um sentimento de vazio tão íntimo que chega a ser uma arte que me permite ser.












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