No conto arturiano Eric e Enide a primeira aparição da
personagem Eric é apresentada como sendo “da Távola Redonda e tinha grande
renome da corte. Nela nunca alguém foi tão louvado”. São ditos outros
complementos, como a idade e as roupas nobres que vestia. Mas chama a atenção
que este cavaleiro “não trouxera outra arma além da espada”, como se fosse
intencional nos fazer crer que para todo perigo e conflito ela seria o
suficiente, assim, o quão bem preparado está Eric em sua jornada?
O primeiro conflito de Eric é
contra o anão, o qual enfrenta descuidadamente, sem espada alguma. “Eric
empurra o anão que, furioso, chicoteia-o tão forte que as correias marcam-lhe o
pescoço e o rosto”. Eric sofre a desonra por agir por descuido, mas ela não é o
suficiente para abalar sua lucidez uma vez que retorna para perto da rainha e
diz “ninguém deve censurar-me, pois estava sem armas”. Não somente isso, pois
não era o anão que Eric temia, pois nem espada ele portava, reconhecia como
perigo o cavaleiro dono do anão – portador de uma lança e montado num cavalo,
logo, não cede à loucura, planeja seu contra-ataque.
Eric, ao encontrar-se novamente
com o cavaleiro, tem sua espada em mãos, confia tanto nela que rejeita a oferta
do anfitrião do burgo em emprestar-lhe armas – “não desejo melhor espada além
da que trouxe, nem outro cavalo além do meu”. E acrescenta “dele me valerei
bem”. Obtém a vitória esperada, encobre sua mancha com glória e honra, retornando
com Enide para o castelo, mulher essa que Chréien de Troyes narrou trabalhar
“não sei em qual trabalho de agulha”.
No combate de justa que sucede o episódio
das núpcias, a espada de Eric demonstra mais uma vez seu valor quando “quebra
os elmos dos vencidos”, pois “homem nenhum estava em tão boas graças; era como
se ele tivesse o rosto de Absalão, a língua de Salomão, a alteza de Sansão”.
Ainda que tivesse lutado com lanças era inevitável que elas lhe durassem pouco,
eram quebrantáveis. Seu prestígio alcança o ápice no manejo da espada.
Em retorno ao palácio do rei Lac,
Eric “torna-se o que chamam de ‘cansado de armas’”. Os prazeres entre Eric e
Enide são desprovidos da prótese laminada, ela não encontra espaço no quarto, todos
os abraços e beijos encaminhavam Eric a “negar-se portar armas”. A segunda
mancha será do choro de Enide ao demonstrar sua insatisfação – “Por causa disso
vosso mérito baixou”. Eric cativa Enide e os demais cavaleiros pela prótese,
nada mais. Suas virtudes, da beleza à cortesia, dependem da coragem de assumir
sua prótese-espada. Sem ela Eric não pode nomear-se cavaleiro, ele é suas
vestes, é seus itens. Eric é um ciborgue. Em sua nudez, desmontado de seus
apetrechos, ele parece receber alfinetadas de Enide, como se ela recobrasse seu
antigo ofício costurando seu bom amigo, fazendo sua agulha sem linha perfurar
um corpo nu parecido com o seu. Os buracos deverão ser fechados (ou preenchidos?).
Aí está o desafio de Eric.
É oportuno considerar se o
temperamento de Eric não se assemelha ao do leopardo do tapete sobre o qual
está sentado, pois “manda atarem suas perneiras de aço claro; depois veste uma
loriga de valor, com malhas muito apertadas. No direito como no avesso não
havia sequer um grão de ferrugem do tamanho da ponta de uma agulha [descrição
um tanto cômica se pensada como uma couraça psíquica contra as críticas que
recebeu no/do corpo]. Era trabalhada de prata, tão levemente que quem a
vestisse não ficaria mais à vontade e lânguido se tivesse posto cota de seda
sobre a camisa. [...] Ele enverga pois a loriga. Um valete lhe ata à cabeça um
elmo com aro de ouro ornado de pedreiras, que reluz como espelho [a luz que
Eric deseja transmitir]”. E como se não bastasse essa montagem demorada, a drag queen “toma a espada, cinge-a e
manda trazerem selado o baio da Gasconha”.
Eric parte com Enide “não sabe
aonde mas em aventura” e já a adverte que se cale, como se tentasse proteger-se
de mais agulhadas. Enide apenas pode lamentar pelo falo que um dia foi seu, mas
somente emprestado – “fortuna que me estendera e mão logo a retirou”, pois, bem
sabemos, que ela esteve proibida desde sempre a apossar-se dele senão na
companhia de seu cavaleiro. A verdade é que ninguém miraria Enide e diria que
esse falo que passa pelo seu corpo é seu, mesmo que ela fingisse. Uma crossdresser não é uma drag, os olhos atentos o sabem.
A esta altura do conto, Eric
procura um falo não sabe aonde. Sua antiga espada perdeu o fio, é uma espada
sem falo, há que amolá-la na jornada ao desconhecido.
O próximo confronto de Eric
começa com mais agulhadas – “Eis que vêm cavalgando em vosso encalço três
cavaleiros que vos perseguem”. Para tanto, a principal arma de Eric será seu
escudo. Resta defender primeiro, atacar depois. Sem surpresa nenhuma, após
vencido o combate, suas defesas contra Enide permanecem erguidas. Sua voz é seu
escudo. Situação esta que se repetirá contra cinco salteadores: agulhas de
Enide; vitória de Eric; defensiva de Eric contra Enide.
Eric quase falecerá no castelo de
conde Limors, não sem antes matar conde Galoin e proteger Enide. O tapa que
conde Limors desfere em Enide o faz “sentir grande tristeza e comoção ao ouvir
a voz da esposa”, assim, “a dor lhe dá coragem, mais o amor que sente pela
mulher”, podendo, enfim, usar toda a força de sua espada contra o conde Limors
para “quebrar-lhe o crânio e fronte”, de forma que “sangue e miolos espirram”.
Deixado o castelo num cavalo roubado, “Eric, que arrebatou sua mulher, abraça-a
e a beija e reconforta”. O prazer do casal, desta vez, está embebido pela
transformação pessoal do cavaleiro, não corre mais o risco de ser “folgado”.
As agulhadas de Enide, com algum
desconforto (embora não fosse mortal), fizeram-no brilhar novamente. Recobrou sua
personalidade fálica graças às pontadas sádicas de Enide capaz de exporem suas
faltas, as quais houveram de ser preenchidas com a alquimia da dor em prazer,
isto é, em práticas masoquistas. Tanto é verdade que ele diz – “Quero inteiro a
vossas ordens estar doravante, como dantes. Se falastes mal de mim, eu vos
perdôo e libero da falta e da palavra”, pois é pela falta e pela palavra que se
recobrou o amor e a espada.
A transformação do herói alcança
o esperado fim, embora Eric e Enide continuem seu caminho ao castelo de
Brandigan, no qual o cavaleiro de personalidade restaurada encanta-se com a
aventura pela conquista da Alegria da Corte. Enquanto algumas pessoas põem-se a
dizer “nunca ninguém veio de outra terra buscar a Alegria da Corte sem ter
desonra e dor e sem deixar a cabeça em penhor”, Eric já está afeiçoado às
práticas masoquistas. O cavaleiro ouvir “Amanhã será o dia de sua morte!” é,
assim vejo, a promessa de um gozo alucinante que o fará “extinguir-se!”, pois
“o grande temor que vê em tantos rostos não o perturba”.
Apesar do fascínio pornográfico,
Eric prova sua transformação não cedendo ao prazer como antes: em momentos que
normalmente comeria e beberia, como na presença do escudeiro de Galoin, agora
com o rei Evrain ele “abreviou o comer e o beber”. Eric buscava os prazeres
mais destrutivos, como lhe advertia o rei – “sentiria profunda tristeza se vos
visse retornar percluso, ferido e mutilado”. No dia seguinte, parece que as
pessoas continuam duvidando daquilo que Eric se tornou ao não cessarem as
advertências. Como uma verdadeira drag,
“arde por ver finalmente o que causa tanto pavor a essa gente”.
Ao derrotar Mabonagran e tocar a
trompa, Eric retorna para ser tomado pela Alegria de roupas belas, bem ornadas,
com fios finos e enfeites raros. Daí resultaria mais um rito de passagem que
uma premiação, sua coroação como rei pelo rei, que “o comtemplou maravilhado e
sem mais tardança colocou-o [o cetro] na mão direita de Eric, que foi então rei
segundo a imagem do verdadeiro rei”. Enide, ao ser coroada, desfruta desse falo
que não é seu, como se sua coroa se justificasse pela coroa de Eric.
Como se tivesse aprendido algo
com Mabonagran e sua doce amizade à donzela-sem-nome, Eric, agora rei, deu “mui
largamente cavalos, armas e moedas, lãs e sedas, pois era mui bondoso e queria
cumular Eric a quem tanto amava”, sua amiga Enide. Ao menos é o que esperamos,
pois que outra razão teria servido seu combate com o cavaleiro vermelho senão
ouvir seus lamentos de uma promessa que deveria ser cumprida porque amava uma
dama, para, finalmente, completar a transformação pessoal de Eric fazendo-o
perceber que o amor por Enide justificava sua bravura?
Mabonagran não é lá muito
diferente de Eric. O cavaleiro vermelho também está perdido, diz ele
“prometi-lhe [à donzela] não sabia o quê”. Acaba que seus combates justificam-se
também pelos pedidos de uma donzela. Por ela combate para fazer algo de si,
para somente assim ela ser algo também. Se Mabonagran também recebe pontadas,
parece cumpri-las de forma mais desesperadora que Eric, pois se apresenta
incapaz de deixar o vergel, como se estivesse paralisado de amor e de dor.
Cumpre-se que em Eric e Enide a
narrativa vai da espado ao escudo, da dor ao prazer, do amor à falta e da
Alegria a Enide. Figuras estas ligadas à categoria narrativa da virilidade e da
masculinidade que vistas por uma perspectiva queer bem entende a personagem como sujeito de ações performativas
de um ciborgue sem gênero que se faz
homem ao reafirmar a conduta daquilo que deve ser um homem ao se montar para
ser deslumbrante e afiada. Preparada para atacar com um dildo.
Referência: Chrétien de Troyes. Eric e Enide. In: Romances da Távola Redonda. Tradução: Rosemary
Costhek Abílio. 2ª ed (Coleção Ghandara). São Paulo: Martins Fontes, 1998.
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