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quinta-feira, 19 de abril de 2018

O cavaleiro prostético


No conto arturiano Eric e Enide a primeira aparição da personagem Eric é apresentada como sendo “da Távola Redonda e tinha grande renome da corte. Nela nunca alguém foi tão louvado”. São ditos outros complementos, como a idade e as roupas nobres que vestia. Mas chama a atenção que este cavaleiro “não trouxera outra arma além da espada”, como se fosse intencional nos fazer crer que para todo perigo e conflito ela seria o suficiente, assim, o quão bem preparado está Eric em sua jornada?
O primeiro conflito de Eric é contra o anão, o qual enfrenta descuidadamente, sem espada alguma. “Eric empurra o anão que, furioso, chicoteia-o tão forte que as correias marcam-lhe o pescoço e o rosto”. Eric sofre a desonra por agir por descuido, mas ela não é o suficiente para abalar sua lucidez uma vez que retorna para perto da rainha e diz “ninguém deve censurar-me, pois estava sem armas”. Não somente isso, pois não era o anão que Eric temia, pois nem espada ele portava, reconhecia como perigo o cavaleiro dono do anão – portador de uma lança e montado num cavalo, logo, não cede à loucura, planeja seu contra-ataque.
Eric, ao encontrar-se novamente com o cavaleiro, tem sua espada em mãos, confia tanto nela que rejeita a oferta do anfitrião do burgo em emprestar-lhe armas – “não desejo melhor espada além da que trouxe, nem outro cavalo além do meu”. E acrescenta “dele me valerei bem”. Obtém a vitória esperada, encobre sua mancha com glória e honra, retornando com Enide para o castelo, mulher essa que Chréien de Troyes narrou trabalhar “não sei em qual trabalho de agulha”.
No combate de justa que sucede o episódio das núpcias, a espada de Eric demonstra mais uma vez seu valor quando “quebra os elmos dos vencidos”, pois “homem nenhum estava em tão boas graças; era como se ele tivesse o rosto de Absalão, a língua de Salomão, a alteza de Sansão”. Ainda que tivesse lutado com lanças era inevitável que elas lhe durassem pouco, eram quebrantáveis. Seu prestígio alcança o ápice no manejo da espada.
Em retorno ao palácio do rei Lac, Eric “torna-se o que chamam de ‘cansado de armas’”. Os prazeres entre Eric e Enide são desprovidos da prótese laminada, ela não encontra espaço no quarto, todos os abraços e beijos encaminhavam Eric a “negar-se portar armas”. A segunda mancha será do choro de Enide ao demonstrar sua insatisfação – “Por causa disso vosso mérito baixou”. Eric cativa Enide e os demais cavaleiros pela prótese, nada mais. Suas virtudes, da beleza à cortesia, dependem da coragem de assumir sua prótese-espada. Sem ela Eric não pode nomear-se cavaleiro, ele é suas vestes, é seus itens. Eric é um ciborgue. Em sua nudez, desmontado de seus apetrechos, ele parece receber alfinetadas de Enide, como se ela recobrasse seu antigo ofício costurando seu bom amigo, fazendo sua agulha sem linha perfurar um corpo nu parecido com o seu. Os buracos deverão ser fechados (ou preenchidos?). Aí está o desafio de Eric.
É oportuno considerar se o temperamento de Eric não se assemelha ao do leopardo do tapete sobre o qual está sentado, pois “manda atarem suas perneiras de aço claro; depois veste uma loriga de valor, com malhas muito apertadas. No direito como no avesso não havia sequer um grão de ferrugem do tamanho da ponta de uma agulha [descrição um tanto cômica se pensada como uma couraça psíquica contra as críticas que recebeu no/do corpo]. Era trabalhada de prata, tão levemente que quem a vestisse não ficaria mais à vontade e lânguido se tivesse posto cota de seda sobre a camisa. [...] Ele enverga pois a loriga. Um valete lhe ata à cabeça um elmo com aro de ouro ornado de pedreiras, que reluz como espelho [a luz que Eric deseja transmitir]”. E como se não bastasse essa montagem demorada, a drag queen “toma a espada, cinge-a e manda trazerem selado o baio da Gasconha”.
Eric parte com Enide “não sabe aonde mas em aventura” e já a adverte que se cale, como se tentasse proteger-se de mais agulhadas. Enide apenas pode lamentar pelo falo que um dia foi seu, mas somente emprestado – “fortuna que me estendera e mão logo a retirou”, pois, bem sabemos, que ela esteve proibida desde sempre a apossar-se dele senão na companhia de seu cavaleiro. A verdade é que ninguém miraria Enide e diria que esse falo que passa pelo seu corpo é seu, mesmo que ela fingisse. Uma crossdresser não é uma drag, os olhos atentos o sabem.
A esta altura do conto, Eric procura um falo não sabe aonde. Sua antiga espada perdeu o fio, é uma espada sem falo, há que amolá-la na jornada ao desconhecido.
O próximo confronto de Eric começa com mais agulhadas – “Eis que vêm cavalgando em vosso encalço três cavaleiros que vos perseguem”. Para tanto, a principal arma de Eric será seu escudo. Resta defender primeiro, atacar depois. Sem surpresa nenhuma, após vencido o combate, suas defesas contra Enide permanecem erguidas. Sua voz é seu escudo. Situação esta que se repetirá contra cinco salteadores: agulhas de Enide; vitória de Eric; defensiva de Eric contra Enide.
Eric quase falecerá no castelo de conde Limors, não sem antes matar conde Galoin e proteger Enide. O tapa que conde Limors desfere em Enide o faz “sentir grande tristeza e comoção ao ouvir a voz da esposa”, assim, “a dor lhe dá coragem, mais o amor que sente pela mulher”, podendo, enfim, usar toda a força de sua espada contra o conde Limors para “quebrar-lhe o crânio e fronte”, de forma que “sangue e miolos espirram”. Deixado o castelo num cavalo roubado, “Eric, que arrebatou sua mulher, abraça-a e a beija e reconforta”. O prazer do casal, desta vez, está embebido pela transformação pessoal do cavaleiro, não corre mais o risco de ser “folgado”.
As agulhadas de Enide, com algum desconforto (embora não fosse mortal), fizeram-no brilhar novamente. Recobrou sua personalidade fálica graças às pontadas sádicas de Enide capaz de exporem suas faltas, as quais houveram de ser preenchidas com a alquimia da dor em prazer, isto é, em práticas masoquistas. Tanto é verdade que ele diz – “Quero inteiro a vossas ordens estar doravante, como dantes. Se falastes mal de mim, eu vos perdôo e libero da falta e da palavra”, pois é pela falta e pela palavra que se recobrou o amor e a espada.
A transformação do herói alcança o esperado fim, embora Eric e Enide continuem seu caminho ao castelo de Brandigan, no qual o cavaleiro de personalidade restaurada encanta-se com a aventura pela conquista da Alegria da Corte. Enquanto algumas pessoas põem-se a dizer “nunca ninguém veio de outra terra buscar a Alegria da Corte sem ter desonra e dor e sem deixar a cabeça em penhor”, Eric já está afeiçoado às práticas masoquistas. O cavaleiro ouvir “Amanhã será o dia de sua morte!” é, assim vejo, a promessa de um gozo alucinante que o fará “extinguir-se!”, pois “o grande temor que vê em tantos rostos não o perturba”.
Apesar do fascínio pornográfico, Eric prova sua transformação não cedendo ao prazer como antes: em momentos que normalmente comeria e beberia, como na presença do escudeiro de Galoin, agora com o rei Evrain ele “abreviou o comer e o beber”. Eric buscava os prazeres mais destrutivos, como lhe advertia o rei – “sentiria profunda tristeza se vos visse retornar percluso, ferido e mutilado”. No dia seguinte, parece que as pessoas continuam duvidando daquilo que Eric se tornou ao não cessarem as advertências. Como uma verdadeira drag, “arde por ver finalmente o que causa tanto pavor a essa gente”.
Ao derrotar Mabonagran e tocar a trompa, Eric retorna para ser tomado pela Alegria de roupas belas, bem ornadas, com fios finos e enfeites raros. Daí resultaria mais um rito de passagem que uma premiação, sua coroação como rei pelo rei, que “o comtemplou maravilhado e sem mais tardança colocou-o [o cetro] na mão direita de Eric, que foi então rei segundo a imagem do verdadeiro rei”. Enide, ao ser coroada, desfruta desse falo que não é seu, como se sua coroa se justificasse pela coroa de Eric.
Como se tivesse aprendido algo com Mabonagran e sua doce amizade à donzela-sem-nome, Eric, agora rei, deu “mui largamente cavalos, armas e moedas, lãs e sedas, pois era mui bondoso e queria cumular Eric a quem tanto amava”, sua amiga Enide. Ao menos é o que esperamos, pois que outra razão teria servido seu combate com o cavaleiro vermelho senão ouvir seus lamentos de uma promessa que deveria ser cumprida porque amava uma dama, para, finalmente, completar a transformação pessoal de Eric fazendo-o perceber que o amor por Enide justificava sua bravura?
Mabonagran não é lá muito diferente de Eric. O cavaleiro vermelho também está perdido, diz ele “prometi-lhe [à donzela] não sabia o quê”. Acaba que seus combates justificam-se também pelos pedidos de uma donzela. Por ela combate para fazer algo de si, para somente assim ela ser algo também. Se Mabonagran também recebe pontadas, parece cumpri-las de forma mais desesperadora que Eric, pois se apresenta incapaz de deixar o vergel, como se estivesse paralisado de amor e de dor.
Cumpre-se que em Eric e Enide a narrativa vai da espado ao escudo, da dor ao prazer, do amor à falta e da Alegria a Enide. Figuras estas ligadas à categoria narrativa da virilidade e da masculinidade que vistas por uma perspectiva queer bem entende a personagem como sujeito de ações performativas de um ciborgue sem gênero que se faz homem ao reafirmar a conduta daquilo que deve ser um homem ao se montar para ser deslumbrante e afiada. Preparada para atacar com um dildo.
Vejam Eric, enfim, toda cortês!

Eric e Enide. Imagem retirada daqui.


Referência: Chrétien de Troyes. Eric e Enide. In: Romances da Távola Redonda. Tradução: Rosemary Costhek Abílio. 2ª ed (Coleção Ghandara). São Paulo: Martins Fontes, 1998.

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