Num excerto de Antoine de Saint-Exupéry
em A Terra dos Homens (1939), o homem
– como quem quer dizer humanidade - se mede “com um obstáculo” e “aprende a se
conhecer”. Autoconhecimento que só será possível com algo fora de si, daí vem
as menções à terra, à charrua, à plaina. O que significa, implicitamente, que o homem, enquanto
unidade, não é suficiente para conhecer-se, para amadurecer apenas pela sua
existência do seu próprio corpo. Seu ser advém de um ser externo, ou ainda, sua
consciência é formada “pelo milagre de uma consciência” que é o mundo visto de
cima de um avião. Essas consciências individuais são luzes ou estrelas que sem
saber de sua comunidade já podem dizer-se coletivos porque, como nos conta
Saint-Exupéry, “de longe em longe brilhavam esses fogos no campo”, mesmo “como
que pedindo sustento”. Para serem coletivos não precisariam de outros
semelhantes, bastava ser no mundo,
participar dele como faz o camponês – “arrancando lentamente alguns segredos da
natureza”. Mas com as luzes discretas –
as pessoas (entre elas “homens adormecidos”) – que é preciso comunicar-se.
O avião de Saint-Exupéry é
ambíguo: permite conhecer pequenos indivíduos pelas alturas e ao mesmo tempo
não permite “a gente se reunir” para estender laços. É também paradoxal, pois
coletiviza o aviador com histórias de suas experiências sobre outras pessoas
enquanto está só. Voa acompanhado de luzes
brilhantes sem que elas se deem conta, mas isto não faz dele um fantasma,
apenas mais uma luz brilhante no céu.
Ainda que seja possível imaginar que essas luzes se vejam à noite (o aviador as
pessoas e as pessoas o aviador), elas não podem perguntar se uma vê a outra. E
como a visão privilegiada da personagem de Saint-Exupéry já situa o que está
abaixo como outro, resta-nos usar seu ponto de vista exclusivo sobre alguém fora
de si, alguém no coletivo que “sondava o espaço ou se consumia em cálculos
sobre a nebulosa de Andrômeda”. Isto torna-se mais explícito quando surge o
“talvez” para demonstrar alguma incerteza sobre a “hora do amor” em algum
lugar, pois, se o aviador bem conhece seus semelhantes, alguém estaria a amar
uma hora dessas. Quem sabe os fazedores de amor imaginam um aviador a pensar
sobre quem faz amor? Essas pessoas talvez fossem as mesmas de “janelas
fechadas” (para a sensação de privacidade), que fossem “estrelas extintas” (com
pouco brilho na vida pública, mas intenso nos recantos do lar) e “homens
adormecidos” (pessoas cansadas demais para ser,
para viver o mundo lá fora).
Esse jogo de pressuposições do
que acontece acima e abaixo de nós, uma amostra da capacidade imaginativa da
linguagem, é um princípio comunicativo. Por tornar algo comum entre pessoas,
cria uma comunidade. O avião é representação da comunicação do individual e do
coletivo, mas apenas se sua viagem trouxer alguma incerteza entre o mais
interior e o mais exterior, de forma que o interior não possa ser completamente
exterior e o inverso também esteja impedido. Caso contrário, a comunidade –
essa aproximação estreita entre o eu e o outro, o individual e o coletivo, o
aviador e as luzes, seria a mesmice – repetição monótona do Mesmo. A comunidade
está na comunicação em pleno voo, que às vezes pode estar em meio ao “oceano da
escuridão”.
Pelo próprio desejo da personagem
de reunir-se com essa gente, caberia perguntar se há algo de comum entre elas.
Seriamos obrigados a dizer que sim, visto que “a verdade que ele obtém é
universal”, estando o avião encarregado de tornar evidente este lugar-comum de
onde tudo se conhece. Isto porque a distância entre o aviador e o solo não é
capaz de torna-lo ser de outro mundo,
mas ser no mundo como os pontos
pequeninos que as alturas lhe privilegiam.
Antoine de Saint-Exupéry pilotando seu Lockheed F-5B-1-LO Lightning. Imagem retirada daqui. |
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