O primeiro texto é de um amigo meu, que será conhecido por T. Há quase um ano, este meu amigo pensava sobre o universo num texto redigido para si e para o cuidado de si, tentando responder objetivamente perguntas existenciais, ligadas ao conhecimento e como, atualmente, nos relacionados com ele. Prezamos tanto o âmbito acadêmico como centro da verdade, mas não haveria, segundo T, algo a mais para ser conhecido além dos muros da academia produtora de ciência? Perguntei a T se ele se incomodaria se eu postasse seu texto. Ele achou que merecia correções e deve ter encontrado respostas ou até descartado perguntas que fez há quase um ano, de qualquer maneira, lhe pareceu válida a ideia de tornar público suas meditações. São elas:
"Sobre devermos ou não nos dedicar
apenas ao estudo das diversas ciências à nossa volta.
Recentemente foi-me perguntado se
acho correta a atitude de um amigo que deixou sua vida social totalmente
abandonada. Dedicar-se apenas ao estudo, seja das ciências naturais, sociais ou
exatas, é algo passível de admiração, pena, ou qualquer outro adjetivo cabível.
Se formos entrar no mérito da questão
"precisamos ou não da ciência para sermos felizes?" ficaremos uma
noite, um dia, uma semana ou um mês em uma discussão infindável. Apesar de
experiências mostrarem que a maioria das pessoas muito ignorantes geralmente é
mais feliz, (talvez haja relação com a famosa frase de Sócrates : - “Só sei que
nada sei”.
Pessoas muito inteligentes tendem a
fazer questionamentos cujas respostas não existem para seu pequeno mundo,
levando-os a um sentimento de inferioridade perante o universo como um todo.
Creio que as pessoas que preferem dedicar sua vida à paz emocional e espiritual
conseguem atingir a serenidade de forma mais fácil e menos brusca e forçada do
que uma pessoa extremamente culta e inteligente que pretende apenas abdicar das
respostas que precisa (quer) mas não possui.
Buda dizia que o desejo é a causa do
sofrimento.
Desejo de qualquer natureza expõe a pessoa a
uma sensação de incompletude, seja um desejo material, sexual ou intelectual.
Nos martirizamos constantemente por não nos acharmos aptos a possuir aquilo que
desejamos ou, de forma inconsciente, projetamos tal inaptidão em outras
pessoas, objetos, ocasiões, aumentando a ignorância pessoal. A falta de
autoconhecimento é a porta para uma vida de poucas experiências novas e
alternativas.
Por uma pessoa fazer parte de uma
sociedade, deve ela agir como a maioria da sociedade age? Frequentar eventos
cheios de gente, festas, encontrar os amigos para ir a um bar, se permitir
fazer coisas “banais” durante um tempo? Por que uma hora deitado em um gramado
olhando para o céu e as aves voando a centenas de metros de altura, obtendo uma
experiência momentaneamente deliciosa, deve valer menos do que uma hora de
absorção de conhecimentos gerais?
O conhecimento, assim como qualquer
outra coisa, pode vir a se tornar um vício. O precisar saber. Então, quanto e o
que deve uma pessoa ao cosmos por sua existência?
“The
cosmos is also within us, we are made of star stuff. We are a way for the
cosmos to know itself.” - Carl Sagan
Acho que é a frase mais bonita que já ouvi, aquela que
sobrepõe todas as mínimas questões, as mínimas preocupações, as mínimas
decepções. É a frase que me diz tudo e nada ao mesmo tempo. Me dá um objetivo e
não me diz o que fazer com ele. Devo conhecer o meu universo profundamente, pra
quê? Dane-se a física, a matemática, a filosofia, e todas as áreas quadradinhas
determinadas pelo ser humano, por que não ir a uma selva, montar minha casa de
pau-a-pique e devotar minha vida à auto-observação?
We
are a way for the cosmos to know itself. Faz todo o sentido. Faz mais sentido que qualquer outra frase
que tente explicar a origem e o sentido de nossa existência. Seguindo a lógica,
qualquer, absolutamente qualquer sentido satisfaz a sentença. A sensação de uma
abertura de pálpebras, observar uma paisagem, crescer pelos em seu corpo, ouvir
um som, são informações atribuídas a você, que nada mais é que uma parte do
cosmo.
Muitos textos, argumentos, trabalhos,
só possuem alguma credibilidade por conta da citação a trabalhos já feitos
anteriormente por outras pessoas. Trabalhos que foram filtrados, selecionados,
e aceitos pela sociedade. Até que ponto uma informação adquirida por meios
prontos é útil, válida, correta ou aplicável à você? Por que uma informação
dita valiosíssima é mais importante do que as informações corriqueiras ditas
banais? Saber o funcionamento de um buraco negro me deixa extasiado pela
maravilhosa engenhosidade e complexidade do universo, mas não muda o fato de
que minha vida presa à terra e à limitação tecnológica não me permite fazer
nada com tal informação (atualmente). Então por que ela deve ser uma informação
mais valiosa do que saber, por exemplo, o preço do pão? O conceito de
informação está enraizado em nossa sociedade como um meio para chegarmos a
algum lugar, sempre tentando avançar. Mesmo a vontade inata do ser humano de
fazer ciência, a curiosidade desde a infância, pode não passar de um modo
inconsciente de tentar ir além da nossa cabeça virgem. A competição pelo conhecimento. Eu,
pessoalmente, prefiro muito mais saber sobre um buraco negro do que sobre o
preço do pão, mas se uma pessoa pensasse o contrário, seria ela inferior a mim
por não se importar com questões acima de sua existência "curta e simples"?
Talvez a valiosidade de uma
informação esteja relacionada com a complexidade de coisas que se pode fazer
com ela. Ora, saber o preço do pão apenas te ajuda a fazer uma análise mental
relacionada à vantagem de comprá-lo ou não. Entender como a luz funciona aumenta
em muito os horizontes tecnológicos da humanidade. Mas ainda assim, parece
haver uma falha, algo faltante, quando perguntamos infindavelmente "por
que?"( ou "pra que?") para algo. Se iterarmos praticamente
qualquer afirmação que prega um dever humano chegamos a algo inconclusivo no
final. Comece com uma afirmação e pergunte a si mesmo “por quê?” repetidas
vezes, sempre obtendo novas respostas. Em algum momento você não terá mais o
que responder, deverá simplesmente aceitar sua existência e o curso da vida
como ela é.
Qual é o máximo que você pode
atingir? Ser presidente de um país? Um astronauta? Um inovador na área de
empreendimentos? Alguém que vai unificar a quântica e a relatividade? Mas, quem
pediu para você dar o seu máximo? Um deus? É uma pura realização pessoal?
De acordo com a frase citada, todas
as suas vontades são também vontades do cosmos, por você ser parte dele. A
vontade pelo conhecimento pode vir daí. Mas, se a única "missão"
cósmica fosse o autoconhecimento, por que então desenvolveríamos áreas do
cérebro responsáveis pelas vontades marginais? Por que evoluímos de forma a
querermos seguir diferentes rumos, carreiras, estilos de vida, e ao invés disso
não nos unimos com uma meta de aprender a aprender e propagar conhecimentos
acumulados? É difícil de pensar nesse conceito pois raramente paramos para
pensar sobre o assunto, por que as coisas são como são? Creio que se
desenvolvemos tais vontades, não devemos reprimi-las. Todas as vontades são
válidas. Talvez tenhamos desenvolvido tais áreas do cérebro justamente porque
uma mente mais abrangente absorve com mais facilidade os conhecimentos de
qualquer área da vida. E, já que o estudo, da forma que o fazemos, não passa de
uma pequena fração de nossas vontades e capacidades, reprimir as outras com a
ilusão de que seremos grandiosos não parece ser o melhor meio de se viver. " - T.
KOFLER, Dan. s/n; s/d. |
Minha resposta, tanto quanto esotérica, a todas essas perguntas, que também me puseram a refletir, foi um diálogo que buscou expressar a um físico - meu amigo T - sobre outras perspectivas para que essa relatividade pudesse ajudá-lo na sua reflexão quântica. Dirigi o diálogo por meio da seguinte carta:
"Campinas,
29 de Agosto de 2015.
Bom dia T.
Como prometido: um diálogo.
Venho através dos signos que nos são comuns,
discutir estranhezas que despertam o que temos de mais vivo em nós: as dúvidas.
Contorcionistas da mente, de energia desmedida que tira o sono, inquietações
que desgastam nossas unhas e dentes, maléficas à ordem por natureza. E para
provar meu ponto, pergunto – quem é feliz sem saber o que deseja? Convivemos
com pessoas que são capazes de se sujeitar a dúvida como guia espiritual e
moral? Mesmo Sócrates em sua máxima “Só
sei que nada sei” se entrega a dificuldade que todos temos em assumir
nossas dúvidas? Se for, representa uma desistência de nós sobre nós mesmos.
Platão ilustra em A República o
binômio forte/fraco, duas figuras que existem nas pessoas e dirigem suas
vontades e desejos. Todos são dotados da capacidade de exercitar suas virtudes,
sendo a temperança uma das virtudes mais importantes para o bom cidadão, pois
ela é o domínio sobre si mesmo. O intemperante não tem domínio sobre seus
desejos como o temperante para decidir como realizará seus prazeres, em que
circunstâncias e a quem direciona suas vontades. A necessidade torna-se
submissa da vontade, o poder de ser forte para si, e, portanto, para os outros,
o que garante um governo de excelência para a pólis, para os cidadãos que ainda não alcançaram a virtude da
temperança para governar-se e governar os demais.
Se quando falas da ciência refere-te às
possibilidades inovadoras que são as explicações de situações, da natureza das
coisas, d’um desconhecido atormentador, então podemos nos inserir num processo
dinâmico da vida não só de questionamento, mas também de pensar o impensado,
recriar o velho, criar algo novo, meditar sobre o conhecimento que é libertador.
Se aqueles que se enfurnam em livros são amigos nossos, direi eu, é para
libertar-se de si mesmo. Se o fazem por qualquer outra razão, encontrarão essa
libertação no final de suas leituras. Não poderia ser o estudo o exercício da
temperança? A liberdade da alma requer dedicação e paciência, é um processo
lento, mais lento ainda quando o caminho da liberdade é retardado pelas más
escolhas que nos dirigem a hábitos, portanto, maus hábitos. Não seria seu
amigo, querido T, uma imagem virtuosa que ascende ao conhecimento e, portanto,
à felicidade, já que sabe interpelar o mundo com o que sabe e não sabe, e cada
segundo a mais ele sabe mais, o que levará este formidável sujeito a explicar o
mundo que ele conhece, comparará com o que sabia e ele perceberá que sabe que
sabe mais. A alegria e satisfação do saber lhe parecem razoáveis desta forma, T?
Claro que ele não saberá sobre tudo e em
algum momento isto pode desestimulá-lo ou motivá-lo a querer conhecer mais.
Para representar as duas faces desta moeda que é a felicidade nas ciências,
conversaremos com Sócrates e Santo Agostinho. Se não respondeste até agora o
significado da máxima socrática “Só sei
que nada sei”, dar-lhe-ei uma breve explicação de seus benefícios, que
caracteriza uma das faces da moeda da scientia
felix. Se tivermos certeza que sabemos tudo sobre tudo, porque continuar
procurando respostas? Um onisciente continua estudando assim que atinge tal
privilégio, o de saber sobre tudo? Não acredito na onisciência, me parece um
território perigoso o das tantas certezas, e considerando o caráter mutante das
verdade científicas, a onisciência parece mais um elemento arquetípico da
personalidade humana, inalcançável. Mas enfim, Que gosto teremos pelo estudo,
pelas pesquisas, pelas leituras, pelo refletir (e não há porque refletir sobre
aquilo que se conhece, pois um onisciente saberia que isso é perda de tempo e
não somos capazes de viver para sempre para pensar aquilo que já sabemos que
pensamos, mas isto é outra discussão), pela satisfação de aprender, pela
eloquência de apresentar nossas descobertas. Sem a ignorância, atingimos o auge
das nossas vidas. Conseguimos viver com tantas coisas velhas, que não se
renovam, não nos surpreendem? O bem-estar mental é realmente por em ordem
nossas dúvidas? Por ordem entenda que elas – as dúvidas - estão satisfeitas, e,
portanto, estás entregue à plenitude de seu ser quando alcanças a onisciência.
Sendo assim, seu amigo descansará realizado, poderá morrer em paz, pois é isso
que ele espera ao ser onisciente, e de tudo que ele pensar, será essa uma das
primeiras coisas que lhe surgirá a mente quando se der conta de que não há nada
que realize seus prazeres-saberes. Concordo com Sócrates que devemos aceitar
que nada sabemos para garantir nossos esforços e (re)descobrir as mais variadas
áreas do conhecimento e, assim, (meu adendo) evitar uma vida medíocre e com fim
próximo.
Agora, se nos atentarmos para Santo
Agostinho, não há razão que busque a felicidade nas coisas perenes,
definháveis, externas e materiais. É terrível quando a felicidade acaba, é o
que ele chama de felicidade de bêbado:
enquanto estamos sob efeito da bebida, somos felizes, e quando ela acaba,
retornamos ao estado anterior que nos levou a buscar um refúgio efêmero. Esta,
alias, é uma péssima maneira de alcançar a felicidade, pois entendo a
felicidade como a conquista máxima do indivíduo. Santo Agostinho não diverge
muito do que eu lhe apresento, T. A felicidade deve ser encontrada no
dia-a-dia, alcançada não só com bens eternos, mas no gozo que é capaz de nos
satisfazer com o que temos, que não seja pouco, insuficiente para alcançarmos
nossa felicidade, já que Santo Agostinho não nega que a infelicidade seja
causada pelas conquistas e desejos não realizados. Que seja, também, moderado,
suficiente, sem exageros e excessos, que como bem sabemos: gera o descontrole
do desejo, tornando-nos gananciosos. O saber estaria sujeito à felicidade ou à
infelicidade? O saber pode ser um prazer ponderado? Estamos sempre satisfeitos
com o que conhecemos, vemos, ouvimos, sentimos, conversamos, vivemos, fazemos,
nos encantamos e surpreendemos? Trancar-se num quarto e recusar os amigos em
prol de bel-saber é ser feliz ou encaminhar-se à felicidade, visto que ansiamos
por conhecer mais e mais, ou melhor, estamos sujeitos a conhecer sempre mais?
Santo Agostinho é um hierofante, não é desconcertante pensar que dentro de sua
sabedoria ele atribui a imagem do eterno que traz a felicidade à Deus.
E quanto mais escrevo, mais infeliz devo
estar me tornando. Quem responderá a estas perguntas? Quem responderá a esta
última pergunta? Quantos serão necessários? Poderíamos chamar todo esse
discurso de Teoria da Infelicidade,
que Schopenhauer adaptaria para Teoria do
Vazio, se fosse de seu interesse. Mas ao invés de me apoderar das decisões
de outrem como se o conhecesse, apresentar-te-ei alguém que tem autoridade para
falar algo sobre Schopenhauer: Nietzsche.
Sobre a felicidade, o filósofo da suspeita
tem muito a nos contar. Não numa abordagem direta sobre o que é a felicidade,
mas o que nos desvia para o niilismo, quando os fundamentos que sustentam
nossas crenças desaparecem e nos vemos perdidos, à deriva.
Sabemos ao menos o que é felicidade? Será que
a felicidade que buscamos não é uma felicidade moralista? O valor que
atribuímos para esse fim, a felicidade, é no fim das contas uma conduta de
regras? Pense, T, nas circunstâncias mais comuns que tornam as pessoas felizes,
como você mesmo apontou: “frequentar eventos cheios de gente, festas, encontrar
os amigos para ir a um bar, se permitir fazer coisas ‘banais’ durante um
tempo”. Em contrapartida, temos ocasiões que são menos felizes: quando se está
“deitado em um gramado olhando para o céu e as aves voando a centenas de metros
de altura”. Existem ações que são felizes em si? Ações cuja execução garantem a
felicidade? O que nos leva a crer que somos responsáveis por nossa própria
felicidade, que podemos escolher o caminho da felicidade apenas seguindo
conceitos morais? E quanto o pensar o si mesmo? E aquela temperança que nos
permite sermos donos de nós mesmos e não o contrário?
Em Nietzsche encontramos algo magnífico que
ele chama de vontade de poder.
Entende-se este conceito como o caráter fundamental de um ente. Pode não
parecer muito claro, mas está presente a motivação, a força de vontade, o poder
de transformação dos códigos. É a ética do indivíduo, que se curva ou não à
vontade dos filosofastros que por aí vagueiam. Nietzsche nos presenteia não só
com uma ideia de livre-arbítrio, a vontade
de poder é também a forma que dispomos de repensar nossa liberdade.
Atingimos o niilismo ativo, ou seja, percebemos que existem cores desbotadas na
terra que atracamos nosso barco, talvez pouco visível pela neblina que nos
impede enxergar, mas ao dissipá-la, encontramos outras coisas que não são como
achamos que fossem. Não as queremos. Nem por isso precisamos tender ao suicídio
por pensar que o mundo de densa neblina em que vivemos até agora se foi e é o
fim. Há outras terras a serem buscadas.
Mencionei tanto o saber e o prazer, sendo o
segundo na forma de felicidade, e nem trouxe à discussão o famoso pós-estruturalista
de gola alta: Foucault. Se possuímos uma vontade-saber, podemos escapar dessa
ilha que atracamos antes de conversar com Nietzsche. O problema do suicídio
está em nossa vontade de saber abranger apenas o limite das terras
translúcidas. O prazer contido em saber pode soprar ventos que garantem a
nossas velas o que não conhecemos, que são as terras desconhecidas. Nem todas
as terras são nubladas, o difícil é perceber a neblina. Quando se cresce em
meio a ela, parece que a neblina é natural, não há com o que se incomodar.
Nossa percepção habituou-se com essa sensação de ver com dificuldade. É como um
míope que nunca usou óculos. Dê um óculos a ele e veja-o se impressionar com
formas mais nítidas e detalhes que antes passavam despercebidos.
Nietzsche nos ensina a ver, mas quando vemos,
nos desapontamos, nos aninhamos em nossas poucas certezas, até vê-las tornarem-se
nada. Ao mesmo tempo, nós nos tornamos nada. E Santo Agostinho já nos advertiu
sobre essa felicidade efêmera que procuramos. Eis que Foucault faz-se presente
com a tríplice relação de saber-prazer-poder.
A moral é um poder discursivo que se inscreve
nos corpos e os dociliza. Tem propriedades de lei, então ela interdita, nega,
recusa e regula o comportamento dos grupos. O poder está longe de representar
uma instituição ou um governo, então buscá-los não é a solução para nosso
prazer-felicidade, tampouco a teremos se utilizarmos da força para conquista-la
e derrubar essa moral que aflige de forma maciça vários grupos. Entende-se
aqui, que ela não é uma energia, como acusei. Falamos de estratégias, para ser
mais específico. Estratégias essas que buscam na rede de relações da felicidade
o que lhe diz respeito e o que não lhe diz, para assim, podermos falar de um
dispositivo de poder que permeia o prazer. É correto pensar que por dispositivo
pode-se acioná-lo, uma vez que a unidade de dispositivo faz referência não só
ao prazer-felicidade, mas o que suscita esse prazer. Como dito anteriormente,
os códigos de conduta são estabelecidos por um poder jurídico-discursivo.
Parece que esclareci pouca coisa, se é que é
isto que tentamos fazer aqui, T. Pois bem, quanto ao Nietzsche e ao Foucault,
podemos nos deter na moral e suas possíveis formas, bem como suas estruturas,
agindo sobre os corpos, ditando ações que em si possuem prazer inato, sendo a
ética, a reflexão que um indivíduo faz de si mesmo, direciona-o numa
subjetivação da moral. Os gregos faziam isso ao pensar os prazeres, pensada
pelas virtudes. Eram definidas as virtudes dentro de seus grupos, seus
comportamentos sobre determinados prazeres. As discussões mais comuns estão nos
prazeres da bebida, da comida e do sexo.
Retornando à ciência e seus prazeres-saberes,
amigo T, vi que comentaste sobre o cosmos. E o que devemos a ele? Interpretei
sua devoção ao cosmos não como uma entidade, mas seu objeto de fé. O que é
admirável. Significa que encontraste teu objetivo? O cosmos é para ti tua
vontade de poder e a ética da sua felicidade?
O autoconhecimento não traz só a felicidade,
ele traz outras situações necessárias para encontrar esta felicidade. Na
jornada do descobrimento, podemos representar-nos como o ego. Sim, a figura
psicanalítica mediadora entre os desejos da psique e a realidade. O ego nunca
compreende todos os meios possíveis que dispõem para encontrar uma solução
nesse conflito de estruturas psíquicas, ele soluciona os conflitos a partir do
que é conhecido, portanto, depende de uma maturidade para resolver determinadas
situações. Se fosse possível ser eficiente a ponto de tornar prazeroso todos os
tipos de mediações, mesmo na recusa do objeto-amor, seria onisciente, logo, não
existiria desenvolvimento do pensamento, não sofreríamos traumas, por fim,
seríamos felizes sem saber que somos felizes. A não ser que felicidade tenha
sua validade em comparação com a tristeza e a angústia.
Falarei do Self, ou, Si Mesmo.
Entramos aqui na Psicologia Analítica de Jung. É a partir dos arquétipos, diz
ele, que somos capazes de nos reconhecer, alcançar nossas potencialidades,
viver as faces que desgostamos e entrar em equilíbrio com elas, aprender sobre
nós mesmos, que ele chega no Self, que
é tudo o que sabemos sobre nós mesmos, quão profundo é nosso conhecimento sobre
nós mesmos.
O amadurecimento de um indivíduo é
inevitável, pois existem os arquétipos – estruturas básicas fundamentais para a
vida, ao qual todos estamos sujeitos, pois são herdados de nossos antepassados;
eles existem previamente ao nascimento e residem no universo. Vivemos os
arquétipos o tempo todo, escolhendo apenas recusá-los ou vesti-los. A figura da
mãe é inevitável para as mulheres, por exemplo, ou mesmo a do pai para os
homens. Quanto ao seu amigo, não estaria ele vivendo um arquétipo dionisíaco:
de busca pelos prazeres, desejo por mudanças, se entregando ao impulso das
vontades naturais? Não sou a pessoa que deveria responder isso, mas se o saber
é ou não é natural, não é de domínio da physis?
Também é outra discussão. Caso seja, então permita ao seu amigo se entregar às
pulsões de vida dele pelo prazer-saber. Ele poderia também, e bem
provavelmente, estar vivendo de acordo com o arquétipo de Hades, o excluído,
introvertido, recluso em seus domínios, sem percepção exata do tempo, tem a
realidade distorcida pelos seus estudos; quem sabe Poseidon: de emoções
destrutivas, às vezes introvertido, às vezes extrovertido, autoestima tendendo
ao excesso, alguém que acessa seus sentimentos facilmente e por isso evita
sair, pois conhece seu estado e utiliza o saber como um apoio, uma força
contrária à conduta do seu arquétipo; sem falar no Apolo, que pode ser esse
mesmo amigo seu, T: alguém que vê além do que é possível, determinado em seus
objetivos, é esclarecido e certo das coisas e por isso extrovertido. Se ele
vive um momento apolíneo, se ele reconhece isso no Self, ele estaria vivendo arquetipicamente à felicidade, uma vez
que ele não recusa seu arquétipo, compreende seus pontos fortes e suas
dificuldades, os aceita e é feliz sabendo quem é e o que pode vir a ser.
Não cheguei a mencionar, mas existem dois
arquétipos importantes para compreender o que acabei de explicar. Existe, para
Jung, a Persona e a Sombra. A primeira é como nos
apresentamos aos outros, como queremos ser vistos, o que fica visível e
exposto, enquanto a Sombra é o que
escondemos dos outros e até de nós mesmos, mas ela sempre nos segue, pois
existe uma força universal chamada enantiodromia,
ela que é responsável pelo equilíbrio. Quanto mais fugimos de algo, recusamos,
aplicamos uma força contrária à uma ação arquetípica, estamos sujeitos à enantiodromia para garantir nosso
equilíbrio, para engrandecer o ego, torna-lo virtuoso, possível de atingir o
meio-termo, numa leitura aristotélica dos arquétipos.
Volto a perguntar: quem está fugindo da
felicidade, T? Seu amigo ou você? Quem está incorporando os arquétipos e
aprendendo com eles? Talvez ele. Talvez você. Talvez nenhum.
Haverá dor de cabeça quando pensares num
poder-arquétipo. Já advirto que não é esse o caminho. Se alcançamos a
felicidade pelos arquétipos, eles não são um poder. Se são, então não há
problema em viver segundo uma moral, pensando na função moralista que o
arquétipo não possui, pois ele tem como característica principal a reflexão
ética, em termos políticos da Grécia Clássica. Nos reservemos o direito de
separar o arquétipo da moral e coloca-los numa relação dialógica.
No fim, precisamos ser livres para sermos
felizes? Alcançar a felicidade significa alcançar a liberdade? A felicidade é o
uso descomedido dos prazeres? A felicidade é alcançada pela vontade de poder? O
saber é felicidade no final de contas? A vontade de poder está ligada ao
prazer? Ser feliz é viver os arquétipos? A Persona
é um problema? Reprimir a Sombra é a
solução? Devo investir minha fé em Deus, pois ele é a única coisa eterna?
E mais uma vez não responderei nenhuma dessas
perguntas, ao mesmo tempo que respondi algumas e acho difícil encontrar
respostas para outras.
É tão importante assim que hajam respostas a
todas as perguntas? Não sou triste por não saber se existe vida além da Terra.
Não sou triste por não saber por que acontece o efeito da sonoluminescência.
Nem perderei meu sono pensando sobre a luz não respeitar as leis da velocidade
relativa. Ainda, se existe ou não existe Deus (que é um desperdício de energia
para qualquer um, a antropologia é suficiente para discutir isso). Mas me
incomodo com modelos escolares, motivação na aprendizagem, a didática
excelente, os processos de memória, a formação da mente, os símbolos nas
relações e as transformações de valores ao longo da história. Aqui sim eu não
durmo, tenho pesadelos acordado, me entrego ao niilismo ativo quando percebo
que a educação está consolidada em bases fracas, perdendo a convicção na minha
própria área. Me martirizo quando me pego condicionando alguém que não é uma
ameaça. E fico descontente quando vejo que se esquecem das relações para a
formação de si mesmos enquanto sujeitos pensantes. Fico triste quando me vejo
incapaz de aplicar o que eu sei, de saber como mudar e não conseguir mudar,
pois existem instituições mais poderosas do que eu, pessoas mais influentes,
que devo pisar com cuidado porque a fortuna
é o vento que acomete um príncipe arrogante, e faz com que perca todo seu
poder.
Cada dia que se passa, parece que estou mais
sábio, e por isso, T, cada vez mais incapaz de retornar a minha condição
medíocre e ignorante. Cada vez mais sei que posso mais do que eu podia antes e
me vejo obrigado a fazer uso do que sei, pois minha felicidade depende da
realização desses prazeres que estão na minha profissão. Cada vez que abro um
novo livro me deparo com novos problemas, situações diferentes. Acabo sendo
obrigado a renunciar alguns pensamentos que antes eram essenciais para mim.
Cada vez mais surgem mais problemas que quero resolver. Na minha vivência já
desfrutei de felicidade, algumas mais passageiras do que outras, mas no final, todas
acabaram em algum momento. Mesmo as certezas não são sempre verdadeiras, pois
não podem sê-las, por definição. O que seria da Verdade se ela se tornasse
absoluta? Teríamos manuais de como viver, não duvido disso. Haveria apenas um
livro de auto-ajuda, intitulado “As etapas da felicidade”, uma sociologia muito
rasa sobre os indivíduos felizes e como vivem suas vidas felizes, que é algo
que passa a ser a-histórico e portanto dispensa as transformações desses
valores ao longo do tempo. Estudar-se-á apenas a infelicidade nos períodos
anteriores a conquista da felicidade. A política e a filosofia serão campos
diminutos, quase apetrechos.
Reduzi os objetivos de algumas áreas do
conhecimento à felicidade, entendo qualquer controvérsia a respeito, mas no fundo,
a maior bandeira que existe dentro dos estudos não é tornar o conhecimento útil
para nós? Como Maquiavel faz d’O Príncipe
o presente de seus conhecimentos para o Rei Lourenço de Médici, o conhecimento,
em sua grande totalidade, tem sua utilidade dentro do possível, e não seria
errôneo dizer que eles são a busca pela felicidade, por condições melhores de
vivência, por explicações possíveis de sermos melhores, de tornar as coisas
melhores, de entender se podemos melhorar.
Não que não existe o aprender a aprender, ou
que o prazer do conhecimento pelo conhecimento seja um equívoco do desejo
humano. Dentro da imperfeição do conhecimento humano, ele tende à perfeição. Se
o mundo é caos e ordem, como diria Rolnik, a perfeição e a imperfeição são o
caos e a ordem do cosmos, das verdades, dos saberes, dos prazeres, de
praticamente tudo o que conhecemos. Se esse sistema dinâmico é aceitável, então
aí está a explicação de sempre termos que aprender mais.
Finalizando, segundo Seligman, somos capazes
de florescer, e não chegamos a este
estado apenas buscando a felicidade. Existe um conjunto maior de metas que
somente a felicidade, até porque a felicidade depende de outras coisas. Florescer pode ser entendido como
bem-estar, e para estar bem, é necessário que sejamos alvos de coisas boas, intencionalmente
ou não. E todos somos capazes de florescer,
pois mesmo as situações que nos deprimem não nos impedem de crescer. São cinco
fatores que nos tornam suscetíveis ao florescimento:
emoções positivas, engajamento, relacionamentos positivos, propósito e
realizações.
Apresentei aqui as possibilidades que o
conhecimento nos oferece de sermos ou não sermos felizes. Acredito ter sido
ponderado e imparcial na apresentação de ideias. Não digo que não estive
sujeito a juízos de valores ou fui não maiêutico, não consigo realizar qualquer
discussão sem estar sujeito ou fazer uso desses dois conceitos.
Digo que o problema não é não sermos
grandiosos, pois isso não é sinônimo de felicidade, existem mais fatores, como
o Seligman aponta, que são essenciais. Talvez somos grandiosos ou venhamos a
ser e estamos sustentados sobre um único pilar. Não faço das palavras do
criador da Psicologia Positiva uma verdade absoluta, ele pode estar errado
quanto aos fatores, mas como já discuti aqui, e gostaria de esclarecer, o que
menos importa é estar certo. Não são as verdades que nos conduzem à felicidade.
Para isto, me reservo o direito de valorar a felicidade como meu
objeto-resposta. Mesmo os virtuosos não são apenas temperados, são também justos,
prudentes, amáveis, pacientes, criativos, humildes, tolerantes, honrados,
firmes, respeitosos, responsáveis, moderados. Se a felicidade é o bem dos
virtuosos, há um longo caminho para alcança-la, considerando que existe, que
pode ser vivida, portanto, experimentada, que por sua vez é apreendida,
aprendida, integrada e conhecida.
O saber é sempre construído, e não duvido que
seja dele que podemos alcançar a felicidade, não que ele em si seja causa de
felicidade, mas é o melhor meio de que dispomos para nos realizar, uma vez que
o saber é o que amadurece os corpos, a alma, o divino e o cosmos.
Espero
que este diálogo tenha contribuído para estimular seus pensamentos sobre a
Ciência e seus objetivos em conjunto com os objetivos que os próprios
cientistas traçam para si ao utilizar a Ciência. Por mais que eu não tenha
tratado diretamente dos limites da ciência, imagino que a Ordem e o Caos nunca
permitirão que a ciência tenha um limite estabelecido. Sem contar que a Ciência
não existe por excelência, ela é fruto do investimento dos agentes do
conhecimento. Nós, enquanto seres limitados, barramos a Ciência de continuar se
expandindo, visto que ela não é um organismo vivo sujeito à adaptações
evolutivas, ela é o meio que é transformado por nós, e por consequência, nós
nos adaptamos conforme necessário as exigências que nós nos impomos.
Abraço,
Alan."
KOFLER, Dan. s/n; s/d. |
Naquele momento em que escrevi a carta busquei nos textos a direção para a conversa, embora pudesse apenas apresentar minhas vivências físicas com o mundo. Me faço muito esotérico, como um rato de biblioteca, frente a postura exotérica de T, que vive intensamente o cosmos, possui sensibilidade em senti-lo com todo seu corpo e não apenas com os olhos. Quanto ao conhecimento que o corpo adquiriu, se mostra inacessível e sem referências para serem compreendidas, em outras palavras, não há como experimentar as sensações de um outro corpo (compartilhar as experiências de meu corpo), e isto não pude compartilhar com T, porém, achei importante compartilhar minhas referências de leitura com esse amigo; leituras que me fazem repensar minha própria existência frente a algo maior do que eu e do qual faço parte. Os livros são de certa forma compartilhamentos de impressões sobre o cosmos e buscam soluções para suas perguntas e questionamentos. É por esta via que vejo necessidade de apresentar as referências bibliográficas: de uma objetividade para a subjetividade de T, que leva ao diálogo com tantas outras vivências dele:
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ARISTÓTELES.
Ética à Nicômaco; Poética. Coleção
Os Pensadores: Aristóteles, Vol. II. 4ª ed. São Paulo, Nova Cultural, 1991.
· COELHO,
Fabio Luciano Bueno; RODRIGUES, Ricardo Antonio. Educação e Felicidade em Santo Agostinho. Disponível em: <http://coral.ufsm.br/gpforma/2senafe/PDF/014e4.pdf>.
· FOUCAULT,
Michel. História da Sexualidade 1: a
vontade de saber. 2ª ed. São Paulo, Editora Paz e Terra, 2015.
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________________. História da Sexualidade 2: o uso dos
prazeres. 2ª ed. São Paulo, Editora Paz e Terra, 2015.
· JUNG,
Carl Gustav. A Natureza da Psique.
Obras Completas de C. G. Jung – Volume VIII/2, 5ª Edição. Ed. Vozes,
Petrópolis, 2000.
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NIETZSCHE,
Frederich. Além do Bem e do Mal.
Hemus Editora, São Paulo.
· PASSARELI,
Paola Moura; SILVA, José Aparecido da. Psicologia
positiva e o estudo do bem-estar subjetivo. Revista Estudos de Psicologia,
Campinas, outubro-dezembro, 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/estpsi/v24n4/v24n4a10.pdf>.
· PLATÂO.
A República. Disponível em: <http://www.eniopadilha.com.br/documentos/Platao_A_Republica.pdf>.
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ROLNIK, Suely. Pensamento, corpo e devir: Uma perspectiva ético/estético/política no
trabalho acadêmico. Cadernos de
Subjetividade. Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade, 2012.
Disponível em: <http://www4.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/pensamentocorpodevir.pdf>.
· SANTO
AGOSTINHO. Diálogo sobre a Felicidade.
Edição Bilíngue. São Paulo, Edições 70, Janeiro, 2014.
· SCARDUA,
Angelita Corrêa. Psicologia Positiva.
Blog: O Sentido da Felicidade. Disponível em: <https://angelitascardua.wordpress.com/sobre-mim/psicologia-positiva/>.
·
SORG,
Letícia. Martin Seligman: “Perseguir só a
felicidade é enganoso”. Revista Época, On-line, 22 Maio de 2011. Disponível
em: < http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI235007-15228,00-MARTIN+SELIGMAN+PERSEGUIR+SO+A+FELICIDADE+E+ENGANOSO.html
>.
· POPPER,
Karl R. A Lógica da Pesquisa Científica.
Capítulo I – Colocação de alguns
problemas fundamentais. Editora Cultrix, São Paulo.
· VITORIANO,
Lucas. Análise dos arquétipos masculinos
dos deuses gregos. Blog: Deuse Antigos, 5 de Maio de 2012. Disponível em: <http://deusesantigos.blogspot.com.br/2012/05/analise-dos-arquetipos-masculinos-dos.html>.