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domingo, 12 de junho de 2016

Scientia felix

O primeiro texto é de um amigo meu, que será conhecido por T. Há quase um ano, este meu amigo pensava sobre o universo num texto redigido para si e para o cuidado de si, tentando responder objetivamente perguntas existenciais, ligadas ao conhecimento e como, atualmente, nos relacionados com ele. Prezamos tanto o âmbito acadêmico como centro da verdade, mas não haveria, segundo T, algo a mais para ser conhecido além dos muros da academia produtora de ciência? Perguntei a T se ele se incomodaria se eu postasse seu texto. Ele achou que merecia correções e deve ter encontrado respostas ou até descartado perguntas que fez há quase um ano, de qualquer maneira, lhe pareceu válida a ideia de tornar público suas meditações. São elas:

"Sobre devermos ou não nos dedicar apenas ao estudo das diversas ciências à nossa volta.
Recentemente foi-me perguntado se acho correta a atitude de um amigo que deixou sua vida social totalmente abandonada. Dedicar-se apenas ao estudo, seja das ciências naturais, sociais ou exatas, é algo passível de admiração, pena, ou qualquer outro adjetivo cabível.
Se formos entrar no mérito da questão "precisamos ou não da ciência para sermos felizes?" ficaremos uma noite, um dia, uma semana ou um mês em uma discussão infindável. Apesar de experiências mostrarem que a maioria das pessoas muito ignorantes geralmente é mais feliz, (talvez haja relação com a famosa frase de Sócrates : - “Só sei que nada sei”.
Pessoas muito inteligentes tendem a fazer questionamentos cujas respostas não existem para seu pequeno mundo, levando-os a um sentimento de inferioridade perante o universo como um todo. Creio que as pessoas que preferem dedicar sua vida à paz emocional e espiritual conseguem atingir a serenidade de forma mais fácil e menos brusca e forçada do que uma pessoa extremamente culta e inteligente que pretende apenas abdicar das respostas que precisa (quer) mas não possui.
Buda dizia que o desejo é a causa do sofrimento.
 Desejo de qualquer natureza expõe a pessoa a uma sensação de incompletude, seja um desejo material, sexual ou intelectual. Nos martirizamos constantemente por não nos acharmos aptos a possuir aquilo que desejamos ou, de forma inconsciente, projetamos tal inaptidão em outras pessoas, objetos, ocasiões, aumentando a ignorância pessoal. A falta de autoconhecimento é a porta para uma vida de poucas experiências novas e alternativas.
Por uma pessoa fazer parte de uma sociedade, deve ela agir como a maioria da sociedade age? Frequentar eventos cheios de gente, festas, encontrar os amigos para ir a um bar, se permitir fazer coisas “banais” durante um tempo? Por que uma hora deitado em um gramado olhando para o céu e as aves voando a centenas de metros de altura, obtendo uma experiência momentaneamente deliciosa, deve valer menos do que uma hora de absorção de conhecimentos gerais?
O conhecimento, assim como qualquer outra coisa, pode vir a se tornar um vício. O precisar saber. Então, quanto e o que deve uma pessoa ao cosmos por sua existência?
“The cosmos is also within us, we are made of star stuff. We are a way for the cosmos to know itself.” - Carl Sagan
  Acho que é a frase mais bonita que já ouvi, aquela que sobrepõe todas as mínimas questões, as mínimas preocupações, as mínimas decepções. É a frase que me diz tudo e nada ao mesmo tempo. Me dá um objetivo e não me diz o que fazer com ele. Devo conhecer o meu universo profundamente, pra quê? Dane-se a física, a matemática, a filosofia, e todas as áreas quadradinhas determinadas pelo ser humano, por que não ir a uma selva, montar minha casa de pau-a-pique e devotar minha vida à auto-observação?
We are a way for the cosmos to know itself. Faz todo o sentido. Faz mais sentido que qualquer outra frase que tente explicar a origem e o sentido de nossa existência. Seguindo a lógica, qualquer, absolutamente qualquer sentido satisfaz a sentença. A sensação de uma abertura de pálpebras, observar uma paisagem, crescer pelos em seu corpo, ouvir um som, são informações atribuídas a você, que nada mais é que uma parte do cosmo.
Muitos textos, argumentos, trabalhos, só possuem alguma credibilidade por conta da citação a trabalhos já feitos anteriormente por outras pessoas. Trabalhos que foram filtrados, selecionados, e aceitos pela sociedade. Até que ponto uma informação adquirida por meios prontos é útil, válida, correta ou aplicável à você? Por que uma informação dita valiosíssima é mais importante do que as informações corriqueiras ditas banais? Saber o funcionamento de um buraco negro me deixa extasiado pela maravilhosa engenhosidade e complexidade do universo, mas não muda o fato de que minha vida presa à terra e à limitação tecnológica não me permite fazer nada com tal informação (atualmente). Então por que ela deve ser uma informação mais valiosa do que saber, por exemplo, o preço do pão? O conceito de informação está enraizado em nossa sociedade como um meio para chegarmos a algum lugar, sempre tentando avançar. Mesmo a vontade inata do ser humano de fazer ciência, a curiosidade desde a infância, pode não passar de um modo inconsciente de tentar ir além da nossa cabeça virgem.  A competição pelo conhecimento. Eu, pessoalmente, prefiro muito mais saber sobre um buraco negro do que sobre o preço do pão, mas se uma pessoa pensasse o contrário, seria ela inferior a mim por não se importar com questões acima de sua existência "curta e simples"?
Talvez a valiosidade de uma informação esteja relacionada com a complexidade de coisas que se pode fazer com ela. Ora, saber o preço do pão apenas te ajuda a fazer uma análise mental relacionada à vantagem de comprá-lo ou não. Entender como a luz funciona aumenta em muito os horizontes tecnológicos da humanidade. Mas ainda assim, parece haver uma falha, algo faltante, quando perguntamos infindavelmente "por que?"( ou "pra que?") para algo. Se iterarmos praticamente qualquer afirmação que prega um dever humano chegamos a algo inconclusivo no final. Comece com uma afirmação e pergunte a si mesmo “por quê?” repetidas vezes, sempre obtendo novas respostas. Em algum momento você não terá mais o que responder, deverá simplesmente aceitar sua existência e o curso da vida como ela é.
Qual é o máximo que você pode atingir? Ser presidente de um país? Um astronauta? Um inovador na área de empreendimentos? Alguém que vai unificar a quântica e a relatividade? Mas, quem pediu para você dar o seu máximo? Um deus? É uma pura realização pessoal?
De acordo com a frase citada, todas as suas vontades são também vontades do cosmos, por você ser parte dele. A vontade pelo conhecimento pode vir daí. Mas, se a única "missão" cósmica fosse o autoconhecimento, por que então desenvolveríamos áreas do cérebro responsáveis pelas vontades marginais? Por que evoluímos de forma a querermos seguir diferentes rumos, carreiras, estilos de vida, e ao invés disso não nos unimos com uma meta de aprender a aprender e propagar conhecimentos acumulados? É difícil de pensar nesse conceito pois raramente paramos para pensar sobre o assunto, por que as coisas são como são? Creio que se desenvolvemos tais vontades, não devemos reprimi-las. Todas as vontades são válidas. Talvez tenhamos desenvolvido tais áreas do cérebro justamente porque uma mente mais abrangente absorve com mais facilidade os conhecimentos de qualquer área da vida. E, já que o estudo, da forma que o fazemos, não passa de uma pequena fração de nossas vontades e capacidades, reprimir as outras com a ilusão de que seremos grandiosos não parece ser o melhor meio de se viver. " - T.

KOFLER, Dan. s/n; s/d.
Minha resposta, tanto quanto esotérica, a todas essas perguntas, que também me puseram a refletir, foi um diálogo que buscou expressar a um físico - meu amigo T - sobre outras perspectivas para que essa relatividade pudesse ajudá-lo na sua reflexão quântica. Dirigi o diálogo por meio da seguinte carta:
"Campinas, 29 de Agosto de 2015.

Bom dia T.

Como prometido: um diálogo.

Venho através dos signos que nos são comuns, discutir estranhezas que despertam o que temos de mais vivo em nós: as dúvidas. Contorcionistas da mente, de energia desmedida que tira o sono, inquietações que desgastam nossas unhas e dentes, maléficas à ordem por natureza. E para provar meu ponto, pergunto – quem é feliz sem saber o que deseja? Convivemos com pessoas que são capazes de se sujeitar a dúvida como guia espiritual e moral? Mesmo Sócrates em sua máxima “Só sei que nada sei” se entrega a dificuldade que todos temos em assumir nossas dúvidas? Se for, representa uma desistência de nós sobre nós mesmos. Platão ilustra em A República o binômio forte/fraco, duas figuras que existem nas pessoas e dirigem suas vontades e desejos. Todos são dotados da capacidade de exercitar suas virtudes, sendo a temperança uma das virtudes mais importantes para o bom cidadão, pois ela é o domínio sobre si mesmo. O intemperante não tem domínio sobre seus desejos como o temperante para decidir como realizará seus prazeres, em que circunstâncias e a quem direciona suas vontades. A necessidade torna-se submissa da vontade, o poder de ser forte para si, e, portanto, para os outros, o que garante um governo de excelência para a pólis, para os cidadãos que ainda não alcançaram a virtude da temperança para governar-se e governar os demais.
Se quando falas da ciência refere-te às possibilidades inovadoras que são as explicações de situações, da natureza das coisas, d’um desconhecido atormentador, então podemos nos inserir num processo dinâmico da vida não só de questionamento, mas também de pensar o impensado, recriar o velho, criar algo novo, meditar sobre o conhecimento que é libertador. Se aqueles que se enfurnam em livros são amigos nossos, direi eu, é para libertar-se de si mesmo. Se o fazem por qualquer outra razão, encontrarão essa libertação no final de suas leituras. Não poderia ser o estudo o exercício da temperança? A liberdade da alma requer dedicação e paciência, é um processo lento, mais lento ainda quando o caminho da liberdade é retardado pelas más escolhas que nos dirigem a hábitos, portanto, maus hábitos. Não seria seu amigo, querido T, uma imagem virtuosa que ascende ao conhecimento e, portanto, à felicidade, já que sabe interpelar o mundo com o que sabe e não sabe, e cada segundo a mais ele sabe mais, o que levará este formidável sujeito a explicar o mundo que ele conhece, comparará com o que sabia e ele perceberá que sabe que sabe mais. A alegria e satisfação do saber lhe parecem razoáveis desta forma, T?
Claro que ele não saberá sobre tudo e em algum momento isto pode desestimulá-lo ou motivá-lo a querer conhecer mais. Para representar as duas faces desta moeda que é a felicidade nas ciências, conversaremos com Sócrates e Santo Agostinho. Se não respondeste até agora o significado da máxima socrática “Só sei que nada sei”, dar-lhe-ei uma breve explicação de seus benefícios, que caracteriza uma das faces da moeda da scientia felix. Se tivermos certeza que sabemos tudo sobre tudo, porque continuar procurando respostas? Um onisciente continua estudando assim que atinge tal privilégio, o de saber sobre tudo? Não acredito na onisciência, me parece um território perigoso o das tantas certezas, e considerando o caráter mutante das verdade científicas, a onisciência parece mais um elemento arquetípico da personalidade humana, inalcançável. Mas enfim, Que gosto teremos pelo estudo, pelas pesquisas, pelas leituras, pelo refletir (e não há porque refletir sobre aquilo que se conhece, pois um onisciente saberia que isso é perda de tempo e não somos capazes de viver para sempre para pensar aquilo que já sabemos que pensamos, mas isto é outra discussão), pela satisfação de aprender, pela eloquência de apresentar nossas descobertas. Sem a ignorância, atingimos o auge das nossas vidas. Conseguimos viver com tantas coisas velhas, que não se renovam, não nos surpreendem? O bem-estar mental é realmente por em ordem nossas dúvidas? Por ordem entenda que elas – as dúvidas - estão satisfeitas, e, portanto, estás entregue à plenitude de seu ser quando alcanças a onisciência. Sendo assim, seu amigo descansará realizado, poderá morrer em paz, pois é isso que ele espera ao ser onisciente, e de tudo que ele pensar, será essa uma das primeiras coisas que lhe surgirá a mente quando se der conta de que não há nada que realize seus prazeres-saberes. Concordo com Sócrates que devemos aceitar que nada sabemos para garantir nossos esforços e (re)descobrir as mais variadas áreas do conhecimento e, assim, (meu adendo) evitar uma vida medíocre e com fim próximo.
Agora, se nos atentarmos para Santo Agostinho, não há razão que busque a felicidade nas coisas perenes, definháveis, externas e materiais. É terrível quando a felicidade acaba, é o que ele chama de felicidade de bêbado: enquanto estamos sob efeito da bebida, somos felizes, e quando ela acaba, retornamos ao estado anterior que nos levou a buscar um refúgio efêmero. Esta, alias, é uma péssima maneira de alcançar a felicidade, pois entendo a felicidade como a conquista máxima do indivíduo. Santo Agostinho não diverge muito do que eu lhe apresento, T. A felicidade deve ser encontrada no dia-a-dia, alcançada não só com bens eternos, mas no gozo que é capaz de nos satisfazer com o que temos, que não seja pouco, insuficiente para alcançarmos nossa felicidade, já que Santo Agostinho não nega que a infelicidade seja causada pelas conquistas e desejos não realizados. Que seja, também, moderado, suficiente, sem exageros e excessos, que como bem sabemos: gera o descontrole do desejo, tornando-nos gananciosos. O saber estaria sujeito à felicidade ou à infelicidade? O saber pode ser um prazer ponderado? Estamos sempre satisfeitos com o que conhecemos, vemos, ouvimos, sentimos, conversamos, vivemos, fazemos, nos encantamos e surpreendemos? Trancar-se num quarto e recusar os amigos em prol de bel-saber é ser feliz ou encaminhar-se à felicidade, visto que ansiamos por conhecer mais e mais, ou melhor, estamos sujeitos a conhecer sempre mais? Santo Agostinho é um hierofante, não é desconcertante pensar que dentro de sua sabedoria ele atribui a imagem do eterno que traz a felicidade à Deus.
E quanto mais escrevo, mais infeliz devo estar me tornando. Quem responderá a estas perguntas? Quem responderá a esta última pergunta? Quantos serão necessários? Poderíamos chamar todo esse discurso de Teoria da Infelicidade, que Schopenhauer adaptaria para Teoria do Vazio, se fosse de seu interesse. Mas ao invés de me apoderar das decisões de outrem como se o conhecesse, apresentar-te-ei alguém que tem autoridade para falar algo sobre Schopenhauer: Nietzsche.
Sobre a felicidade, o filósofo da suspeita tem muito a nos contar. Não numa abordagem direta sobre o que é a felicidade, mas o que nos desvia para o niilismo, quando os fundamentos que sustentam nossas crenças desaparecem e nos vemos perdidos, à deriva.
Sabemos ao menos o que é felicidade? Será que a felicidade que buscamos não é uma felicidade moralista? O valor que atribuímos para esse fim, a felicidade, é no fim das contas uma conduta de regras? Pense, T, nas circunstâncias mais comuns que tornam as pessoas felizes, como você mesmo apontou: “frequentar eventos cheios de gente, festas, encontrar os amigos para ir a um bar, se permitir fazer coisas ‘banais’ durante um tempo”. Em contrapartida, temos ocasiões que são menos felizes: quando se está “deitado em um gramado olhando para o céu e as aves voando a centenas de metros de altura”. Existem ações que são felizes em si? Ações cuja execução garantem a felicidade? O que nos leva a crer que somos responsáveis por nossa própria felicidade, que podemos escolher o caminho da felicidade apenas seguindo conceitos morais? E quanto o pensar o si mesmo? E aquela temperança que nos permite sermos donos de nós mesmos e não o contrário?
Em Nietzsche encontramos algo magnífico que ele chama de vontade de poder. Entende-se este conceito como o caráter fundamental de um ente. Pode não parecer muito claro, mas está presente a motivação, a força de vontade, o poder de transformação dos códigos. É a ética do indivíduo, que se curva ou não à vontade dos filosofastros que por aí vagueiam. Nietzsche nos presenteia não só com uma ideia de livre-arbítrio, a vontade de poder é também a forma que dispomos de repensar nossa liberdade. Atingimos o niilismo ativo, ou seja, percebemos que existem cores desbotadas na terra que atracamos nosso barco, talvez pouco visível pela neblina que nos impede enxergar, mas ao dissipá-la, encontramos outras coisas que não são como achamos que fossem. Não as queremos. Nem por isso precisamos tender ao suicídio por pensar que o mundo de densa neblina em que vivemos até agora se foi e é o fim. Há outras terras a serem buscadas.
Mencionei tanto o saber e o prazer, sendo o segundo na forma de felicidade, e nem trouxe à discussão o famoso pós-estruturalista de gola alta: Foucault. Se possuímos uma vontade-saber, podemos escapar dessa ilha que atracamos antes de conversar com Nietzsche. O problema do suicídio está em nossa vontade de saber abranger apenas o limite das terras translúcidas. O prazer contido em saber pode soprar ventos que garantem a nossas velas o que não conhecemos, que são as terras desconhecidas. Nem todas as terras são nubladas, o difícil é perceber a neblina. Quando se cresce em meio a ela, parece que a neblina é natural, não há com o que se incomodar. Nossa percepção habituou-se com essa sensação de ver com dificuldade. É como um míope que nunca usou óculos. Dê um óculos a ele e veja-o se impressionar com formas mais nítidas e detalhes que antes passavam despercebidos.
Nietzsche nos ensina a ver, mas quando vemos, nos desapontamos, nos aninhamos em nossas poucas certezas, até vê-las tornarem-se nada. Ao mesmo tempo, nós nos tornamos nada. E Santo Agostinho já nos advertiu sobre essa felicidade efêmera que procuramos. Eis que Foucault faz-se presente com a tríplice relação de saber-prazer-poder.
A moral é um poder discursivo que se inscreve nos corpos e os dociliza. Tem propriedades de lei, então ela interdita, nega, recusa e regula o comportamento dos grupos. O poder está longe de representar uma instituição ou um governo, então buscá-los não é a solução para nosso prazer-felicidade, tampouco a teremos se utilizarmos da força para conquista-la e derrubar essa moral que aflige de forma maciça vários grupos. Entende-se aqui, que ela não é uma energia, como acusei. Falamos de estratégias, para ser mais específico. Estratégias essas que buscam na rede de relações da felicidade o que lhe diz respeito e o que não lhe diz, para assim, podermos falar de um dispositivo de poder que permeia o prazer. É correto pensar que por dispositivo pode-se acioná-lo, uma vez que a unidade de dispositivo faz referência não só ao prazer-felicidade, mas o que suscita esse prazer. Como dito anteriormente, os códigos de conduta são estabelecidos por um poder jurídico-discursivo.
Parece que esclareci pouca coisa, se é que é isto que tentamos fazer aqui, T. Pois bem, quanto ao Nietzsche e ao Foucault, podemos nos deter na moral e suas possíveis formas, bem como suas estruturas, agindo sobre os corpos, ditando ações que em si possuem prazer inato, sendo a ética, a reflexão que um indivíduo faz de si mesmo, direciona-o numa subjetivação da moral. Os gregos faziam isso ao pensar os prazeres, pensada pelas virtudes. Eram definidas as virtudes dentro de seus grupos, seus comportamentos sobre determinados prazeres. As discussões mais comuns estão nos prazeres da bebida, da comida e do sexo.
Retornando à ciência e seus prazeres-saberes, amigo T, vi que comentaste sobre o cosmos. E o que devemos a ele? Interpretei sua devoção ao cosmos não como uma entidade, mas seu objeto de fé. O que é admirável. Significa que encontraste teu objetivo? O cosmos é para ti tua vontade de poder e a ética da sua felicidade?
O autoconhecimento não traz só a felicidade, ele traz outras situações necessárias para encontrar esta felicidade. Na jornada do descobrimento, podemos representar-nos como o ego. Sim, a figura psicanalítica mediadora entre os desejos da psique e a realidade. O ego nunca compreende todos os meios possíveis que dispõem para encontrar uma solução nesse conflito de estruturas psíquicas, ele soluciona os conflitos a partir do que é conhecido, portanto, depende de uma maturidade para resolver determinadas situações. Se fosse possível ser eficiente a ponto de tornar prazeroso todos os tipos de mediações, mesmo na recusa do objeto-amor, seria onisciente, logo, não existiria desenvolvimento do pensamento, não sofreríamos traumas, por fim, seríamos felizes sem saber que somos felizes. A não ser que felicidade tenha sua validade em comparação com a tristeza e a angústia.
Falarei do Self, ou, Si Mesmo. Entramos aqui na Psicologia Analítica de Jung. É a partir dos arquétipos, diz ele, que somos capazes de nos reconhecer, alcançar nossas potencialidades, viver as faces que desgostamos e entrar em equilíbrio com elas, aprender sobre nós mesmos, que ele chega no Self, que é tudo o que sabemos sobre nós mesmos, quão profundo é nosso conhecimento sobre nós mesmos.
O amadurecimento de um indivíduo é inevitável, pois existem os arquétipos – estruturas básicas fundamentais para a vida, ao qual todos estamos sujeitos, pois são herdados de nossos antepassados; eles existem previamente ao nascimento e residem no universo. Vivemos os arquétipos o tempo todo, escolhendo apenas recusá-los ou vesti-los. A figura da mãe é inevitável para as mulheres, por exemplo, ou mesmo a do pai para os homens. Quanto ao seu amigo, não estaria ele vivendo um arquétipo dionisíaco: de busca pelos prazeres, desejo por mudanças, se entregando ao impulso das vontades naturais? Não sou a pessoa que deveria responder isso, mas se o saber é ou não é natural, não é de domínio da physis? Também é outra discussão. Caso seja, então permita ao seu amigo se entregar às pulsões de vida dele pelo prazer-saber. Ele poderia também, e bem provavelmente, estar vivendo de acordo com o arquétipo de Hades, o excluído, introvertido, recluso em seus domínios, sem percepção exata do tempo, tem a realidade distorcida pelos seus estudos; quem sabe Poseidon: de emoções destrutivas, às vezes introvertido, às vezes extrovertido, autoestima tendendo ao excesso, alguém que acessa seus sentimentos facilmente e por isso evita sair, pois conhece seu estado e utiliza o saber como um apoio, uma força contrária à conduta do seu arquétipo; sem falar no Apolo, que pode ser esse mesmo amigo seu, T: alguém que vê além do que é possível, determinado em seus objetivos, é esclarecido e certo das coisas e por isso extrovertido. Se ele vive um momento apolíneo, se ele reconhece isso no Self, ele estaria vivendo arquetipicamente à felicidade, uma vez que ele não recusa seu arquétipo, compreende seus pontos fortes e suas dificuldades, os aceita e é feliz sabendo quem é e o que pode vir a ser.
Não cheguei a mencionar, mas existem dois arquétipos importantes para compreender o que acabei de explicar. Existe, para Jung, a Persona e a Sombra. A primeira é como nos apresentamos aos outros, como queremos ser vistos, o que fica visível e exposto, enquanto a Sombra é o que escondemos dos outros e até de nós mesmos, mas ela sempre nos segue, pois existe uma força universal chamada enantiodromia, ela que é responsável pelo equilíbrio. Quanto mais fugimos de algo, recusamos, aplicamos uma força contrária à uma ação arquetípica, estamos sujeitos à enantiodromia para garantir nosso equilíbrio, para engrandecer o ego, torna-lo virtuoso, possível de atingir o meio-termo, numa leitura aristotélica dos arquétipos.
Volto a perguntar: quem está fugindo da felicidade, T? Seu amigo ou você? Quem está incorporando os arquétipos e aprendendo com eles? Talvez ele. Talvez você. Talvez nenhum.
Haverá dor de cabeça quando pensares num poder-arquétipo. Já advirto que não é esse o caminho. Se alcançamos a felicidade pelos arquétipos, eles não são um poder. Se são, então não há problema em viver segundo uma moral, pensando na função moralista que o arquétipo não possui, pois ele tem como característica principal a reflexão ética, em termos políticos da Grécia Clássica. Nos reservemos o direito de separar o arquétipo da moral e coloca-los numa relação dialógica.
No fim, precisamos ser livres para sermos felizes? Alcançar a felicidade significa alcançar a liberdade? A felicidade é o uso descomedido dos prazeres? A felicidade é alcançada pela vontade de poder? O saber é felicidade no final de contas? A vontade de poder está ligada ao prazer? Ser feliz é viver os arquétipos? A Persona é um problema? Reprimir a Sombra é a solução? Devo investir minha fé em Deus, pois ele é a única coisa eterna?
E mais uma vez não responderei nenhuma dessas perguntas, ao mesmo tempo que respondi algumas e acho difícil encontrar respostas para outras.
É tão importante assim que hajam respostas a todas as perguntas? Não sou triste por não saber se existe vida além da Terra. Não sou triste por não saber por que acontece o efeito da sonoluminescência. Nem perderei meu sono pensando sobre a luz não respeitar as leis da velocidade relativa. Ainda, se existe ou não existe Deus (que é um desperdício de energia para qualquer um, a antropologia é suficiente para discutir isso). Mas me incomodo com modelos escolares, motivação na aprendizagem, a didática excelente, os processos de memória, a formação da mente, os símbolos nas relações e as transformações de valores ao longo da história. Aqui sim eu não durmo, tenho pesadelos acordado, me entrego ao niilismo ativo quando percebo que a educação está consolidada em bases fracas, perdendo a convicção na minha própria área. Me martirizo quando me pego condicionando alguém que não é uma ameaça. E fico descontente quando vejo que se esquecem das relações para a formação de si mesmos enquanto sujeitos pensantes. Fico triste quando me vejo incapaz de aplicar o que eu sei, de saber como mudar e não conseguir mudar, pois existem instituições mais poderosas do que eu, pessoas mais influentes, que devo pisar com cuidado porque a fortuna é o vento que acomete um príncipe arrogante, e faz com que perca todo seu poder.
Cada dia que se passa, parece que estou mais sábio, e por isso, T, cada vez mais incapaz de retornar a minha condição medíocre e ignorante. Cada vez mais sei que posso mais do que eu podia antes e me vejo obrigado a fazer uso do que sei, pois minha felicidade depende da realização desses prazeres que estão na minha profissão. Cada vez que abro um novo livro me deparo com novos problemas, situações diferentes. Acabo sendo obrigado a renunciar alguns pensamentos que antes eram essenciais para mim. Cada vez mais surgem mais problemas que quero resolver. Na minha vivência já desfrutei de felicidade, algumas mais passageiras do que outras, mas no final, todas acabaram em algum momento. Mesmo as certezas não são sempre verdadeiras, pois não podem sê-las, por definição. O que seria da Verdade se ela se tornasse absoluta? Teríamos manuais de como viver, não duvido disso. Haveria apenas um livro de auto-ajuda, intitulado “As etapas da felicidade”, uma sociologia muito rasa sobre os indivíduos felizes e como vivem suas vidas felizes, que é algo que passa a ser a-histórico e portanto dispensa as transformações desses valores ao longo do tempo. Estudar-se-á apenas a infelicidade nos períodos anteriores a conquista da felicidade. A política e a filosofia serão campos diminutos, quase apetrechos.
Reduzi os objetivos de algumas áreas do conhecimento à felicidade, entendo qualquer controvérsia a respeito, mas no fundo, a maior bandeira que existe dentro dos estudos não é tornar o conhecimento útil para nós? Como Maquiavel faz d’O Príncipe o presente de seus conhecimentos para o Rei Lourenço de Médici, o conhecimento, em sua grande totalidade, tem sua utilidade dentro do possível, e não seria errôneo dizer que eles são a busca pela felicidade, por condições melhores de vivência, por explicações possíveis de sermos melhores, de tornar as coisas melhores, de entender se podemos melhorar.
Não que não existe o aprender a aprender, ou que o prazer do conhecimento pelo conhecimento seja um equívoco do desejo humano. Dentro da imperfeição do conhecimento humano, ele tende à perfeição. Se o mundo é caos e ordem, como diria Rolnik, a perfeição e a imperfeição são o caos e a ordem do cosmos, das verdades, dos saberes, dos prazeres, de praticamente tudo o que conhecemos. Se esse sistema dinâmico é aceitável, então aí está a explicação de sempre termos que aprender mais.
Finalizando, segundo Seligman, somos capazes de florescer, e não chegamos a este estado apenas buscando a felicidade. Existe um conjunto maior de metas que somente a felicidade, até porque a felicidade depende de outras coisas. Florescer pode ser entendido como bem-estar, e para estar bem, é necessário que sejamos alvos de coisas boas, intencionalmente ou não. E todos somos capazes de florescer, pois mesmo as situações que nos deprimem não nos impedem de crescer. São cinco fatores que nos tornam suscetíveis ao florescimento: emoções positivas, engajamento, relacionamentos positivos, propósito e realizações.
Apresentei aqui as possibilidades que o conhecimento nos oferece de sermos ou não sermos felizes. Acredito ter sido ponderado e imparcial na apresentação de ideias. Não digo que não estive sujeito a juízos de valores ou fui não maiêutico, não consigo realizar qualquer discussão sem estar sujeito ou fazer uso desses dois conceitos.
Digo que o problema não é não sermos grandiosos, pois isso não é sinônimo de felicidade, existem mais fatores, como o Seligman aponta, que são essenciais. Talvez somos grandiosos ou venhamos a ser e estamos sustentados sobre um único pilar. Não faço das palavras do criador da Psicologia Positiva uma verdade absoluta, ele pode estar errado quanto aos fatores, mas como já discuti aqui, e gostaria de esclarecer, o que menos importa é estar certo. Não são as verdades que nos conduzem à felicidade. Para isto, me reservo o direito de valorar a felicidade como meu objeto-resposta. Mesmo os virtuosos não são apenas temperados, são também justos, prudentes, amáveis, pacientes, criativos, humildes, tolerantes, honrados, firmes, respeitosos, responsáveis, moderados. Se a felicidade é o bem dos virtuosos, há um longo caminho para alcança-la, considerando que existe, que pode ser vivida, portanto, experimentada, que por sua vez é apreendida, aprendida, integrada e conhecida.
O saber é sempre construído, e não duvido que seja dele que podemos alcançar a felicidade, não que ele em si seja causa de felicidade, mas é o melhor meio de que dispomos para nos realizar, uma vez que o saber é o que amadurece os corpos, a alma, o divino e o cosmos.
Espero que este diálogo tenha contribuído para estimular seus pensamentos sobre a Ciência e seus objetivos em conjunto com os objetivos que os próprios cientistas traçam para si ao utilizar a Ciência. Por mais que eu não tenha tratado diretamente dos limites da ciência, imagino que a Ordem e o Caos nunca permitirão que a ciência tenha um limite estabelecido. Sem contar que a Ciência não existe por excelência, ela é fruto do investimento dos agentes do conhecimento. Nós, enquanto seres limitados, barramos a Ciência de continuar se expandindo, visto que ela não é um organismo vivo sujeito à adaptações evolutivas, ela é o meio que é transformado por nós, e por consequência, nós nos adaptamos conforme necessário as exigências que nós nos impomos.

Abraço,

            Alan."


KOFLER, Dan. s/n; s/d.

Naquele momento em que escrevi a carta busquei nos textos a direção para a conversa, embora pudesse apenas apresentar minhas vivências físicas com o mundo. Me faço muito esotérico, como um rato de biblioteca, frente a postura exotérica de T, que vive intensamente o cosmos, possui sensibilidade em senti-lo com todo seu corpo e não apenas com os olhos. Quanto ao conhecimento que o corpo adquiriu, se mostra inacessível e sem referências para serem compreendidas, em outras palavras, não há como experimentar as sensações de um outro corpo (compartilhar as experiências de meu corpo), e isto não pude compartilhar com T, porém, achei importante compartilhar minhas referências de leitura com esse amigo; leituras que me fazem repensar minha própria existência frente a algo maior do que eu e do qual faço parte. Os livros são de certa forma compartilhamentos de impressões sobre o cosmos e buscam soluções para suas perguntas e questionamentos. É por esta via que vejo necessidade de apresentar as referências bibliográficas: de uma objetividade para a subjetividade de T, que leva ao diálogo com tantas outras vivências dele:

·         ARISTÓTELES. Ética à Nicômaco; Poética. Coleção Os Pensadores: Aristóteles, Vol. II. 4ª ed. São Paulo, Nova Cultural, 1991.

·  COELHO, Fabio Luciano Bueno; RODRIGUES, Ricardo Antonio. Educação e Felicidade em Santo Agostinho. Disponível em: <http://coral.ufsm.br/gpforma/2senafe/PDF/014e4.pdf>. 

·      FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade 1: a vontade de saber. 2ª ed. São Paulo, Editora Paz e Terra, 2015.

·         ________________. História da Sexualidade 2: o uso dos prazeres. 2ª ed. São Paulo, Editora Paz e Terra, 2015.

·   JUNG, Carl Gustav. A Natureza da Psique. Obras Completas de C. G. Jung – Volume VIII/2, 5ª Edição. Ed. Vozes, Petrópolis, 2000.

·         NIETZSCHE, Frederich. Além do Bem e do Mal. Hemus Editora, São Paulo.

·        PASSARELI, Paola Moura; SILVA, José Aparecido da. Psicologia positiva e o estudo do bem-estar subjetivo. Revista Estudos de Psicologia, Campinas, outubro-dezembro, 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/estpsi/v24n4/v24n4a10.pdf>. 

· PLATÂO. A República. Disponível em: <http://www.eniopadilha.com.br/documentos/Platao_A_Republica.pdf>. 

·         ROLNIK, Suely. Pensamento, corpo e devir: Uma perspectiva ético/estético/política no trabalho acadêmico. Cadernos de Subjetividade. Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade, 2012. Disponível em: <http://www4.pucsp.br/nucleodesubjetividade/Textos/SUELY/pensamentocorpodevir.pdf>. 

·    SANTO AGOSTINHO. Diálogo sobre a Felicidade. Edição Bilíngue. São Paulo, Edições 70, Janeiro, 2014.

·   SCARDUA, Angelita Corrêa. Psicologia Positiva. Blog: O Sentido da Felicidade. Disponível em: <https://angelitascardua.wordpress.com/sobre-mim/psicologia-positiva/>. 

·         SORG, Letícia. Martin Seligman: “Perseguir só a felicidade é enganoso”. Revista Época, On-line, 22 Maio de 2011. Disponível em: < http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI235007-15228,00-MARTIN+SELIGMAN+PERSEGUIR+SO+A+FELICIDADE+E+ENGANOSO.html >. 

·     POPPER, Karl R. A Lógica da Pesquisa Científica. Capítulo I – Colocação de alguns problemas fundamentais. Editora Cultrix, São Paulo.

·       VITORIANO, Lucas. Análise dos arquétipos masculinos dos deuses gregos. Blog: Deuse Antigos, 5 de Maio de 2012. Disponível em: <http://deusesantigos.blogspot.com.br/2012/05/analise-dos-arquetipos-masculinos-dos.html>. 


quarta-feira, 8 de junho de 2016

O Eu e a escrita

A palavra é o domínio que possuímos sobre o mundo que conhecemos. Aprender a palavra é apreender objetos, qualidades, situações, momentos, espaços de vivências, as relações cotidianas. No contato com o mundo aprendemos a palavra, buscamos em nós conteúdos para significar a palavra, o significado da palavra é inicialmente subjetivo. Das impressões mais íntimas do ser que a palavra ganha seu sentido.
A escrita da palavra é a exteriorização das impressões internas do ser que experimentou uma realidade. A intenção comunicativa da palavra é preservada apesar das impressões internas persistirem na expressão das coisas. Um teste que comprova isso facilmente é a associação de palavras, que consiste em interrogar uma palavra a uma pessoa e pedir como resposta outra palavra. Por exemplo: a palavra maçã, imageticamente, possui qualidades distintas para seus pensadores, interrogar alguém com a palavra maçã é esperar que a palavra em resposta seja mordida, vermelha, pera, árvore, campo, mercado, e dentre tantas outras palavras que evidenciam que as experiências são múltiplas, o que modifica as impressões particulares sobre a palavra. E é incrível que a palavra persista com a generalidade que lhe é própria o suficiente para estabelecer a comunicação e não nos encarcerarmos no nosso mundo de sentidos, e sejamos capazes de atravessar os significados para a linguagem e para um ouvinte – o outro. Se há um livro numa mesa e eu peço que alguém me dê o livro, essa pessoa, que compartilha dos mesmos códigos linguísticos, compreenderá o que quero, mesmo que numa análise associativa a palavra livro remeta à uma biblioteca e a mim a imagens daquilo que leio, ou ainda, a uma simples sensação de conforto e relaxamento.
As palavras mais concretas, os substantivos, são colocadas no âmbito do ordinário, do comum, e o significado aparente delas não é surpresa para ninguém. Aquele que confunde um garfo com uma faca está desatento, não é possível que não consiga assimilar o significado (o objeto faca em cima da mesa) ao significante (a palavra faca evocada pela fala). Independente da faca investir na pessoa um sentido de violência ou destinada a tarefas domésticas, a faca está em cima da mesa e a pronúncia imperativa do significante faca nesse contexto é suficiente para que se estabeleça compreensão da mensagem.
Projetamo-nos na palavra sem perceber. Quando pronunciamos sons eles são algo mais profundo do que aquilo que pretendemos falar. A comunicação lato sensu é a expressão do Eu, ao mesmo tempo objetivo e subjetivo. Na palavra não comunicamos tudo sobre nós, embora sempre comuniquemos algo de nós. Seria inconcebível que o outro compreendesse o sentido pleno da palavra que expressamos, a não ser que ele tivesse acesso a nossa alma, ao nosso imo, ao nosso núcleo de significações. Quando alguém compreende o que falamos, ele não o faz porque compreende exatamente o sentido que queremos dar a situação (e isto implica dizer que a palavra exige contexto), mas ele combina suas próprias vivências, ricas em sentido, para significar a palavra que ouve. Quando alguém ouve uma palavra, ouve a si mesmo. Compreender uma palavra é compreender-se.
Experiências muito distintas podem dificultar a comunicação. E quando pronunciam uma palavra que não possui sentido? Ou quando corrigem o sentido da minha palavra? O amor, o ódio, a arrogância, a justiça, a inteligência, a bondade, a perseverança, a estupidez, a beleza. Tudo isto pede uma abstração maior, não porque ela é desligada da realidade, do que é concreto, mas porque, mesmo na materialidade do mundo comum vivido por duas pessoas o que interessa são os sentidos que apreenderam em suas existências. Por isso os adjetivos possuem usos tão controversos, a beleza em especial, pois ela não possui a intenção de expressar algo comum a todos, apenas a singularidade de quem exibe seus desejos. E é curioso que o mundo globalizado seja capaz de dirigir essa variedade de significados a um mesmo significante quando se fala em moda, estética, música, relacionamentos, diplomas, trabalhos.


ESCHER, M.C. Drawing Hands (1948).

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Há uma dinâmica incrível entre o mundo estruturante – que forma o indivíduo - e o mundo estruturado – formado pelo indivíduo. O mundo nunca poderia formar os indivíduos da mesma forma, com as mesmas subjetivas, pois aqueles que foram transformados estão transformando o mundo, que volta a transformar os indivíduos. Essa atividade supera a dialética hegeliana sintetizadora por conservar nessa lógica todos os componentes que resultaram no produto final. Não existe exclusão ou somas que resultam num fim, existe uma diferença produtora de sentidos que cria história. Mesmo que o mundo não seja como antes, ele é tal como é porque já foi aquele mundo de antes. O mesmo vale para o indivíduo. Aí surge a história, e também a história da palavra. E seguindo a lógica, a história de uma palavra que sempre se constitui diferença.
A escrita é um recurso instigante para o autoconhecimento. Quando a palavra internalizada é materializada numa superfície, ela pode ser vista, pode ser compreendida. Não somente isso, ela pode ser mudada, ela pode ser reinventada, ela pode ser substituída, ou ainda, complementada. Externalizar a palavra é também se observar. Curiosamente, nós nos modificamos quando observamos aquilo que somos, pois toda interação pede transformação. O contato com o Outro modifica o Eu. E para sermos mais específicos, o Eu que externaliza a palavra, se encontra com o Mesmo, e é nesse encontro que ele percebe que o Mesmo (o Eu externalizado na palavra) torna-se Outro, e quem sabe, esse Outro seja primeiramente o Eu Passado.
Os gregos antigos, num exercício de avaliação da própria consciência, escreviam em cadernos seus sonhos, e esses cadernos recebiam o nome de hypomnemata. Os sonhos já eram elucidações de si mesmos com símbolos que eles deviam decodificar para se aprimorarem, serem temparados, equilibrados, por fim, virtuosos. Os hypomnematas, os cadernos dos sonhos, cumpriam muito bem sua função de armazenar as palavras oníricas numa tentativa de cumprir a máxima “Conhece-te a ti mesmo!”. Sonhar é, portanto, escrever uma carta para si mesmo (nas palavras de um professor de psicologia em minha graduação).
O Renascimento resgata esse sentimento de individualidade da Grécia Antiga nas cartas e na literatura. É na carta a um(a) amante que as palavras refletem seu verdadeiro ser, sua sinceridade e sua cumplicidade; as palavras são o Eu escrito no papel, acomodado nas linhas, embebido de um sentido que o(a) amante não quer apenas compreender, pois significaria cumprir o papel social da palavra, mas apreender a palavra como se ele apreendesse a amada ou o amado. É mais do que doar-se, é aniquilar-se na esperança que os dois corpos tornem-se uma única substância: o Eu e o Outro compartilhando a mesma individualidade, os sentidos, as experiências, as ideias, e acima de tudo, o parceiro(a), de forma que as cartas seriam desnecessárias para tentar expressar um sentido que nunca seria compreendido completamente. Expressar o amor torna-se uma virtude. Como algo tão íntimo, dimensionado na alma, poderia fazer sentido para quem lê uma simples carta? Como a literatura romântica poderia retratar perfeitamente um romance que não é sentido, mas cujo sentido se restringe ao que está na cabeça de quem lê?
Posteriormente, a psicanálise, com a interpretação dos sonhos, tenta prestar um serviço incompleto da forma como é feita. Interpretar um sonho (com Freud) pretende ser o esclarecimento sobre o Eu da pessoa que repousa no divã. Entretanto, torna-se uma interpretação frágil, pois tenta buscar uma origem baseada na interpretação de si mesmo que o paciente constata ao seu analista para que ele interprete um significado que tenta ir além de sua individualidade, o que não impede que a interpretação do analista sobre a interpretação do paciente seja uma combinação de palavras do analista.
E continua sendo incrível como os sentidos das palavras se desdobram, se desmancham, perder sua cor habitual quando se chocam com sentidos diferentes – sentidos-outros. Esse conflito traz uma nova perspectiva, que não é exatamente igual ao sentido da palavra ouvida, embora estabeleça proximidade entre a palavra e os sentidos em contraste.
O tradicional diário, estereotipado no público feminino e juvenil, é retratar-se dia a dia, colocar-se no tempo e ver nas páginas possibilidades de existência. De se ver escrito e pensar sobre si mesmo. A reflexão pode ser um simples folhear de páginas velhas e pensar no que já passou e como isso foi importante para a constituição presente. Precisar “o que eu quero me tornar” é um advento da palavra. A autoinvestigação pela leitura da palavra, da sua própria palavra, é por para fora o que está dentro de você. É escrever uma palavra que possui sentido completo, pois você é seu maior intérprete. Escrever para os outros é complicado, eles podem não compreender o sentido; escrever para nós mesmos é libertador, não estranhamos o que escrevemos, e se estranhamos é porque não nos identificamos com aquilo que exteriorizamos na palavra, o que pede mudanças de si.
Enxergar-se na palavra é ter cuidado de si. Cuidar de seu ser, de sua existência. Prezar a alma e o espírito. A palavra é tão nuclear que mesmo que ela não possuísse traços ou uma representação material, ela continuaria sendo uma palavra sentida, percebida pela sensibilidade do corpo e da mente. Os nossos pensamentos são nossas palavras na sua forma mais livre, desacorrentada da obrigação de fazer compreensível, ela apenas é. Descobrir a própria palavra é governar-se, cada vez menos você é um estranho para si mesmo. Sentir a palavra e saber conviver com seus significados encaminha o ser à individuação – a autorrealização de si mesmo.
No livro A Herança, de Christopher Paolini, o personagem Eragon deve descobrir seu verdadeiro nome na Ilha de Vroengard, um nome que existe na língua antiga, o idioma élfico e que subentende a subjetividade do falante, que evoca os sentidos singulares da palavra. Ao descobrir seu nome na língua antiga Eragon deve tomar cuidado para que O Rei Galbatorix, o tirano da história que o personagem principal deve destronar. Quando outra pessoa possui conhecimento de seu nome, ela possui total controle sobre você. E como alguém, transmutando a realidade do livro à nossa, não poderia nos controlar ao compreender como somos, nossos sonhos, motivações, nossa sensibilidade, nossos medos, nossas angústias? Ter seu nome revelado na língua antiga é sinônimo de um cuidado de si prestado com muito esmero, é uma autorrealização única.
Eragon não é controlado apenas por uma palavra pronunciada por Galbatorix. Manipular Eragon com seu próprio nome é inconcebível se o sentido do nome de Eragon é distinto para ambos. Ao longo d’A Herança e dos três livros anteriores (que juntos são denominados O Ciclo), os vínculos mentais são comuns entre os portadores da magia; invasões à mentes também acontecem, e é exatamente isso que acontece para Eragon perder seu nome para Galbatorix: o rei penetra do âmago do espírito de Eragon e vasculha todos os seus sentidos para achar o que chamo de a palavra, o força coligadora de sentidos, o Self do protagonista. A mente invasora de Galbatorix compreende Eragon, passa a fazer parte dele, por uma experiência violenta, e ainda assim é o suficiente para acessar seu nome, para senti-lo e experimentá-lo como se fosse o Eragon. Como a palavra permite sua autocracia e não há mais diferença entre Eragon e Galbatorix senão a diferença da posição dos corpos no espaço-tempo, Galbatorix comanda a palavra Eragon como se fosse a sua com tanta facilidade quanto é capaz de pronunciar uma ordem.


PAOLINI, Christopher. Livro A Herança (2011),


Com a permissão filosófica que todo sujeito possui para criar conceitos, me aproprio da palavra, de Paulo Freire, para aprofundar sua internalização pelo sujeito histórico. Aquele sentido, construído no contato com o mundo torna-se relativo ao definir mundo. Se o mundo externo possui materialidade concreta, nós possuímos materialidade internalizada em signos, e é na experiência com nossos próprios signos – esse mundo interno – que podemos criar sentido a partir de nós mesmos sem cair na premissa que a mente se separa do corpo, como propôs Descartes. A construção de sentido acontece a partir da relação que o corpo e a mente arquitetam com o mundo, que leva ao uso da palavra como instrumento mental, e, sobretudo, à possibilidade de autoconhecimento no ouvir e no falar, palavras importantes para Paulo Freire, que significam muito. Em ouvir está implícito a paciência e a escuta ativa, o ouvir verdadeiramente, permitir que o outro tenha voz, que pode muito bem ser a escuta de si mesmo, subentende- cuidado ao outro pelo cuidado de si; e o falar como humildade de saber que nossa palavra não será compreendida como nós gostaríamos, o que pede explicações, repetições, definições, uma atenção a quem eu dirijo a palavra. Falar é uma ação que denota responsabilidade, pode ser violenta se não nos autovigiamos, as palavras podem inculcar sentidos indesejados em quem ouve, são transformadoras da realidade, são uma espécie de ação que trabalha com um outro tipo de materialidade. A partir disso, falar e ouvir tornam-se essenciais para um cuidado de si que é indissociável do cuidado do outro, bem como qualquer forma de comunicar seu Eu.