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segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Argumento de autoridade: falta de respeito ou falta de amor?

       Uma das maiores falácias que circulam no mundo da racionalização dos saberes é o argumento de autoridade, que é quando um interlocutor recorre a imagem de um terceiro que estaria numa posição privilegiada e distinta para indicar um saber que funciona como um poder, ou, um terceiro que possui o intuito de intermediar a situação funcionando como um tipo de capital cultural institucionalizado (termo bourdiesiano). Em outras palavras, poderíamos encurtar o argumento de autoridade em “Não sou eu que estou falando que a democracia é uma péssima forma de governo, é Aristóteles!” ou “Você tem algum diploma em Música para dizer se a música é boa ou não?”, respectivamente.
            Numa conversa, entendo que este tipo de falácia clama pelo poder, pelo afirmar-se acima dos outros, por querer por um ponto final e sair vitorioso (ou não sair perdendo). Uma discussão, um debate, uma conversa e situações semelhantes deveriam funcionar por argumentos, seguidos pela aceitação ou negação. A aceitação de um argumento é compreendida como uma correspondência entre a ideia apresentada e as experiências de quem ouve ou um encadeamento lógico plausível. A negação de um argumento consiste no oposto da negação, sua não compreensão ou um encadeamento ilógico do pensamento.
            O argumento de autoridade pode muito bem ser aceito, neste caso, evidencia-se uma sensibilização de ambos os interlocutores ao poder, ambos reconhecem uma força que leva a obedecer o discurso. Não interessa que o discurso seja familiar, que você o compreenda, mas são depositadas confianças em um terceiro que autentica o conteúdo, fazendo surgir uma autoridade a qual todos devem se submeter.
            No caso da negação, não há a possibilidade de refutar o que foi dito, visto que o discurso está armado sob uma hierarquia organizada de especializações que deixam subtendido quem possui a competência de executar aquele saber. Em todo o caso, esta falácia trabalha o poder na forma de exclusão, controlando o emissor, o receptor, a informação que pode ser veiculada, o espaço e o tempo do discurso.
            Há uma confiança cega neste tipo de argumento de que impede que o usuário desse recurso possua liberdade de pensamento, cria barreiras para um conversa sincera e que preza o que o outro tem a falar. Se alguém diz que a democracia é uma excelente forma de governar, acredito que ela possua seus motivos para isso, e são eles que deveriam ser ouvidos. A autoridade, aqui, é massacrante, despreza a experiência no mundo e induz ao pensamento de que alguns saberes são mais certos que outros, assim, os saberes que eu possuo são uma forma errada de pensar, e a forma como eu penso é decorrente de minhas experiências e dos sentidos (no seu sentido semiótico) pelos quais significam a vida, chegando a conclusão de que se vive de uma forma errada, se conhece de uma forma errada e se pensa de uma forma errada.
            Esta desconstrução do argumento de autoridade traz a preocupação acerca dos diplomas e de sua validade. Se eu estudo ciências sociais e a clássica barbaridade de que política é opinião aparece em uma determinada situação, naturalmente recorre-se aos estudos da academia para denotar uma ideia mais concisa de política, diferenciando-a da opinião, mas não basta que este estudioso das ciências políticas saiba algo sobre política, ele deve sensibilizar seu interlocutor a compreender aquilo que ele compreende. Se aquele que aduz a política como opinião está convencido de sua posição, não basta apenas humilhá-lo ou subssumi-lo ao argumento de autoridade – “Eu que estudo política, você não sabe de nada.” -, deve haver o esforço de fazer o interlocutor compreender sua posição, de apresentar um argumento e estar disposto a explicar suas nuances e suas vastas implicações.
            Um discurso deve compartilhar o espaço discursivo sem gerar indícios de soberania. Deve pressupor a continuidade, que virá algo a seguir (aceitação ou negação, e assim sucessivamente), por mais pobre que pareçam as refutações. Neste caso há de explicar porque o argumento é pobre (como é o argumento de autoridade). A inadequação do argumento de autoridade está em criar um regime de verdade, como diria Foucault, de fazê-la última e predominante; não se utiliza um argumento de autoridade porque ele faz sentido, porque é uma ótima resposta ou á algo que seria interessante que todos soubessem, utiliza-se o argumento de autoridade por sua força de destruição e seu caráter disciplinador. O argumento de autoridade possui o poder de esterilizar um conteúdo, transformando-o numa casca vazia. Num argumento de autoridade, pouco importa o que o outro diz se não está em conformidade com o que eu penso.
            Não devemos esperar que o outro seja indiferente ao nosso discurso, devemos esperar que se alegrem, se enfureçam, se entristeçam, olhem com desconfiança, sintam aversão, mas o que importa é não subjugar um saber, mas apreender a situação em que ele é colocado, posicionando-se em relação a ele. Ainda que os sentimentos e as emoções tenham efeitos numa discussão, devemos esperar que eles apareçam pelo simples fato de um discurso ser também um afeto: ele provoca algo em nós.
            Recorrer a um diploma, por exemplo, é pura covardia, má-fé, manipulação e um amargo tom de dominação. Eu não quero acreditar num diploma, quero acreditar na pessoa que possui aquele diploma, quero que ela me diga os saberes que são relevantes para ela segundo o tema que discutimos porque ela dispendeu tempo se apropriando daqueles conhecimentos. E de todos os seus conhecimentos porque aquele que ela enuncia é o grande X da questão? O que se passa pela cabeça daquela pessoa? Não há outra forma senão ouvir.
            O diploma, bem como autores, são instrumentos para construirmos nossas próprias formas de pensar. Não passamos horas lendo ou indo às aulas para ser aquela aula, temos nossas próprias paixões e elas influenciam nossas formas de conhecer (de aceitar ou de negar um saber). Não é porque alguém é um cientista social que ele é a favor das cotas, mas ele não conclui isso do nada, ele investe tempo em buscar bons argumentos para sustentar sua tese. Da mesma forma, algumas feministas apontariam a importância de transformar-se individualmente para transformar a sociedade do que juntar-se a um coletivo para transformar a sociedade. Segue-se, também, o favorecimento a um Estado liberal em detrimento de um Estado centralizador. A discussão- modelo sobre isto está na existência ou não de Deus e na validade ou não das fontes do criacionista e da falta de espiritualidade do cientista.
            Voltando para o sujeito que menciona Aristóteles, ele parece extremamente convencido de sua posição, resta dirigir-nos a ele e questioná-lo: “E que diz Aristóteles a respeito da democracia, porque seria uma péssima forma de governar?”. O questionar torna-se fundamental para saber que o estagirita fala sobre virtude, que há poucos homens virtuosos, e com poucos homens virtuosos seria impensável permitir um governo de todos, visto que nem todos possuem a virtude para governar. E é aqui que desaparece o argumento de autoridade. É neste mesmo ponto que podemos esperar uma resposta de aceitação ou negação ao que foi falado.
            O problema não está em mencionar um título, uma profissão, uma pesquisa, uma forma de capital institucionalizado, mas em não explicar para que serve tal menção e aonde espera chegar com isso. Um biólogo, ao entrar numa conversa sobre genética (principalmente se for sua especialização), poderia apresentar-se como biólogo não para ser uma autoridade e instruir ou desmentir os interlocutores, mas para mostrar que ele possui contribuições importantes a serem feitas. O mesmo podemos dizer de um padeiro, de um atendente de caixa, de uma costureira, de um varejista, e demais profissões esquecidas que sequer seriam citadas na redação “o que você quer ser quando crescer?” do ensino fundamental. O que acontece numa cozinha de padaria, fluxo de clientes, tempo médio para costurar uma saia, compra de materiais e fornecedores, as conversas, as distrações, os acidentes, as verduras mais compradas, a burocracia dos estabelecimentos, como é trabalhar por conta própria.
            A profissão pressupõe habilidades que dependem da escolarização, em geral, e o argumento de autoridade acontece, também, quando alguém se diz mais educado do que seu interlocutor ou pressupõe tal absurdo. A escola cumpre seu papel institucional de autorizar saberes, habilidades e competências: concluir o ensino fundamental, o ensino médio ou ensino superior são abismos entre aqueles que estão autorizados a falar e aqueles que não estão. O argumento de autoridade, como neste caso, não precisa nem ser argumento, possui um caráter simbólico mais puro, incorporando a autoridade no próprio indivíduo, não apenas no discurso. De igual forma, afeta o discurso.
            As palavras revestidas de autoridade-poder servem apenas para comunicar quem está no controle, quem decide, quem é o guru e quem são os comandados, os obedientes e os seguidores. Quem se utiliza desse tipo de autoridade para se comunicar não comunica o que realmente importa, não busca alcançar um sujeito, espera que os outros se dobrem aos seus caprichos, esquece-se de exercitar seu próprio pensamento, acaba fadado a ser incompreendido.
            Há outro lado da autoridade, que é a mesma autoridade que um pai possui aos olhos de um filho: a de respeito.
Passamos então para uma relação de amor. Um ouvir para falar e ser ouvido. O sentir o outro para sentir-se. O aconchego de um ambiente que não é ameaçador, onde posso falar porque o que eu falo importa. Criar ideias sem espaços. Aceitar erros como um ato educativo. Ao invés de dissimulada, a conversa consegue ser tão sincera quanto duas pessoas que dizem eu te amo, que por confiança não pedem provas do amor, creem na fonte desse amor e aproveitam o tempo que perderiam tentando provar este amor nos prazeres de estarem juntos.  
É inevitável que as pessoas queiram saber as bases de um conhecimento quando estão determinadas a não aceitar a autoridade ou o descompromisso com as fontes científicas do conhecimento, logo não poderiam crer no que o outro diz por que se amam. Aí está, inclusive, a diferença entre o respeito e o amor: respeita-se alguém porque esse outro não sou eu, daí vem o ouvir, para saber com quem me comunico, quem está diante de mim, saber quem é esse outro.
No amor essa divisão não é respeitada, e falta de respeito é uma falta do outro, é uma proximidade que se criam entre os corpos a ponto de se confundir o eu e o outro. Falar não pressupõe mais aceitação ou negação, apenas convivência, viver de sabores. Esquece-se a verdade porque ela passa a ser criada por quem ama. Estar na relação é mais importante do que sobressair-se nela. Confiar é um princípio básico, sem ele não se ama. Ele traz segurança e conforto, e com isso um sentido para não separar-se do outro.
É pelo amor ser o que é que se torna tirania. Quem ama crê tanto que se esquece de duvidar, pois a mentira não seria possível entre os apaixonados. Quem ama não dispende energia se preocupando com o que não é falado, buscar nos bastidores é um infortúnio para o amante que se vê nessa situação de vasculha e questiona-se sobre se realmente ama alguém em quem não confia. Quem ama abre exceções, faz coisas pela pessoa amada que não faria a mais ninguém porque sente que a vida dela também é sua vida. Quem ama se desgasta suportando o poder que ela concedeu a pessoa que ama de machucá-la. Quem ama está exposto, sofre dores viscerais nos toques mais superficiais. Quem ama ama mesmo sem ser amado. Quem ama nomeia o amor autoridade. Quem ama confia poder porque confia no poder de amar.
O amor conjugal é uma expressão privada do argumento de autoridade, o que não torna todo argumento de autoridade, amor, embora evidencie que todo amor é um argumento de autoridade. Por isso falta respeito e não amor em conversas ou discussões. Todavia, é pelo respeito que passamos a amar, é pelo amor que nos encontramos em posições de poder, é por sermos poderosos que desrespeitamos, é por desrespeitarmos que acabamos sozinhos ouvindo sempre as mesmas palavras dentro de nossas cabeças. É encontrando alguém que respeita o que temos a dizer que nossa tautologia existencial volta a fluir e se renova em direção ao outro, talvez querendo adentrá-lo, talvez querendo que ele nos adentre.
O poder se inscreve num corpo com tal eficácia que não precisa ser amor para adentrá-lo, basta que o sujeito ame a prática que incentiva o poder, que tenha seus gostos direcionados ao poder, que seja levado a crer que a maior felicidade de sua vida encontra-se nesse poder que se traveste de tantas formas. Assim alguém é levado a crer que alguns saberes são melhores que outros: o saber que funciona como poder afeta corpos disciplinados, ou seja, corpos com predisposição a amar essa situação de tal forma que o amor se confunde com sensações desagradáveis que emanam do poder que subverte as expectativas que alguém possui pelo amor.
Comecei minhas questões acerca de quem usa o argumento de autoridade e encerro em quem aceita o argumento de autoridade. Quanto ao primeiro, podemos ver que não há vantagens nesse tipo de lógica e já sabemos como nos posicionar diante deste tipo de argumento, mas para nos posicionarmos não podemos vacilar diante do poder. Se esta falácia possui peso numa discussão isto decorre de seu caráter simbólico no pensamento, de seu uso recorrente e do impacto que tem em nossas formações humanas. Rimos de uma piada porque está implícito os elementos humorísticos no discurso pela cultura; obedecemos ao discurso de autoridade porque estamos sensibilizados ao poder deste tipo de discurso.
Tratar com respeito é partilhar o poder sem destituir as pessoas da autoridade de poder falar. Amar as pessoas que falam requer denunciar o abuso de autoridade para reestabelecer a segurança da relação. O argumento de autoridade é falta de respeito, mas também é falta de amor, amor pelos outros e amor próprio, pois mostra que essa pessoa é tão vazia que ela precisa de medalhas para fazer brilhar um corpo morto. E mortos não amam. Mortos decompõem-se. Nutrem a terra para uma nova vida semeada apenas e unicamente com o respeito a ouvir o que esse novo ser tem a oferecer.
Um corpo vivo ama ser respeitado, mas sua maior virtude é a capacidade de amar: autorizar o poder dos outros sobre si pela confiança que ele possui na capacidade de ouvir do outro, fundada no respeito à vida e à diferença.

domingo, 4 de setembro de 2016

Numa roda de malandros machismo é madeirada!


          Imagine que numa roda de amigos, à noite, em meio a uma confraternização, estejam todos conversando despreocupados e de forma totalmente descompromissada. Surge um tema, há risadas, piadas incitam uma atmosfera divertida, faz-se uma pergunta, responde-se a pergunta, troca-se o tema, novas pessoas chegam à festa, amigos saem da roda, amigos entram na roda, outras rodas paralelas coexistem com esta repetindo esta unidade costumeira.
            Neste clima surge um conflito de ideias entre a conotação da música Malandramente, de Dennis DJ em conjunto com os Mc’s Nandinho e Nego Bam: qual a representação da mulher nesta música. Para as mulheres parecia claro que não se tratava de nenhum elogio à mulher, era explícito o machismo na letra. Para os homens a letra não fazia alusão a nada senão à esperteza da mulher, ou ainda, sua astúcia de tentar enganar o homem, pois ela se envolve malandramente.
            É compreensível que os homens demorem a compreender sua posição de poder e a escala de privilégios que possuem com relação ao seu sexo e a sua masculinidade, principalmente quando a discussão gira em torno de ser malandro, um atributo que poderia pertencer a qualquer pessoa independentemente de seu sexo: as pessoas podem ser malandras. O porém está na correlação mítica entre o homem malandro e a mulher malandra: o primeiro é parabenizado pela sua malandragem, pois é a malandragem no homem que garante o acúmulo de capital simbólico e infla sua masculinidade, tornando-o exemplar diante daqueles que reconhecem esta qualidade; o segundo refere-se a mulher sensual, hipnotizadora, feiticeira, a sereia cujo canto ludibria o ouvinte, ela se utiliza de uma magia malandra para enganar o homem e seduzi-lo.
            No mito comum, as mulheres sedutoras apresentam tanto perigo quanto Eva para Adão no Paraíso, por isso elas acabam encerradas em casas: para serem domesticadas. Isto implica numa naturalização dos mitos no dia-a-dia, a mesma natureza que atribui à passividade, fragilidade, beleza e pureza como atributos de uma mulher digna, em contrapartida da atividade, solidez, força e virilidade como indicadores de um homem a ser respeitado.
            De todas as mulheres na roda, é somente uma que insiste na presença de machismo na letra, principalmente sobre o emprego da palavra malandramente. Em tantos homens que negavam a existência de qualquer depreciação ou valor social na letra, um homem que não estava na roda junta-se aos demais amigos e alfineta a discussão dizendo “ele [o cantor] não chama ela de safada?”.
            Falou-se em mitos. Negou-se a formação cultural, aparentemente distante para recair sobre a música. Afirmou-se a formação de discurso do sexo homem sobre o sexo mulher. Surgiram dúvidas. Apareceu a existência do plano de igualdades entre sexos. Seguiu-se uma refutação deste. A fatalidade de formar-se socialmente e não escolher os atributos que desejamos pensar, falar ou ouvir. Recorreu-se a discurso de autoridade por um diplomade alguém na roda que deveria encerrar a discussão naquele momento: mentira socializada sobre eficácia e competência dos saberes escolarizados. Recorreu-se a subjetividade: “todos pensaremos algo diferente sobre o tema, sendo impossível chegar numa conclusão, cada um pode ter sua opinião”. Questionamento: “Você diria para uma mulher que ela precisa levar uma madeirada?”. Resposta: “Claro que não, mas o contexto dele [do músico] é diferente”. “Infelizmente vivemos num mundo machista, mas...”. “Não te parece estranho que os homens não vejam nada na música e as mulheres percebam algo?”. “Tenho amigas que não se incomodam com a música”. Descompasso. Desperdício.
            Toda a peça caminha para uma inconclusão. Ao fim temos muitos ouvintes (incluindo aqueles que defendiam a ausência de machismo na música), um homem defendendo a ausência de machismo na letra da música, um homem e uma mulher defendendo a presença de machismo na letra da música.
            Encerramento: todos continuam com suas opiniões, a diferença está na percepção que temos sobre nossos amigos. De qual posição social expressam seus interesses, que capital simbólico carregam, como está constituída sua formação de identidade, como reconhecem sua linguagem, como significam as palavras, a importância que a divisão sexual possui em suas vidas. É sobre estes preceitos que se constrói a aclamada opinião, derrubada apenas por uma boa dose de contraste, de desnaturalização, de autoanalisar-se, de conseguir enxergar o poder das palavras, de comunicar-se com o prestígio que o sexo traz, de fazer ver o invisível, de acabar com o mito da malandragem. Ainda que tudo isto acabe apenas no campo da percepção, da intuição e mesmo da dúvida, serão estas impressões inexatas que formaram narrativas nossas com esses amigos.
            Esta não é uma história de opinião, é uma história de ideologia, mais precisamente, ideologias. Poderíamos em poucas palavras objetiva-las nos conceitos de machismo (discurso de poder que afirma de forma não explícita a predominância do universo masculino sobre o feminino) e feminismo (contradiscurso que adverte sobre a existência de uma soberania masculina num universo que poderia ser formado sem divisão ou hierarquização dos sexos num panorama geral). Não se trata de saber quem está certo ou errado, mas de assumir responsabilidade ética, de escolher a melhor forma de agir, ter uma conduta que beneficie a todos.
            Os fatos que se omitem acerca da performance de cada um desses amigos é a seguinte: se é consenso entre a maioria do grupo que não existe machismo na letra da música Malandramente, não há porque eles se sentirem envergonhados por expressarem suas defesas a música. Toco aqui no funcionamento da expressão pública desse capital simbólico: se minha crítica é aceita pelo grupo de pertencimento, não há porque eu duvidar do que eu penso, mesmo que isto signifique a continuação da ideologia dominante subterrânea na consciência deste defensor. Até porque esta é uma postura que reafirma todas as atitudes que este sujeito adotou para serem mantidas no seu campo social, visto que a longa discussão permitiu aos amigos perceberem-se como agentes no campo.
            Uma atitude demasiado masculina num debate tende a preservar sua imagem diante dos outros. É menos um conflito e mais um confronto: põe em risco sua imagem pública, a mesma que constrói sua honra – medalha conquistada pela aprovação de outras presenças masculinas já imersas no universo dominante ou identidades femininas que legitimem a posição dominante do masculino por conhecerem as regras deste jogo tão bem quanto eles, assim, assumem suas posições simbólicas numa arena de combate onde a masculinidade predomina sobre o feminino.
            Se é permitido que o macho seja malandro, é porque entende-se que a safada tem que levar madeirada quando ele queira. Colocar-se numa posição feminista, de fazer com que um amigo veja a bestialidade masculina, é expressar a falta de reciprocidade da madeirada. O homem dá a madeirada, a mulher se envolve, e ainda por cima é ingênua por pensar que pode recusar a madeirada. Chega a ser desnecessário traduzir a madeirada como o falo, a força, o peso, o impacto, a dureza, a invasão, a opressão, a imposição que ele significa. Quando um homem quer, a mulher cede, o contrário diminui o capital simbólico do homem, transforma-o num cachorro com coleira, em alguém mole, os amigos logo perguntam “vai deixar ela mandar em você?”, “seja homem e tome iniciativa! Ninguém decide por você!”.
E não estaria melhor se a mulher pudesse dar a madeirada no homem, pois os papeis se invertem. O velho dominante torna-se dominado e, por sua vez, o dominado dominante. E a lógica machista persiste, uma vez que as mulheres dispõem dos antigos atributos masculinos para submeter o homem, pois nada poderiam fazer com leveza, suavidade, docilidade e imanência. A dominação resolve-se no poder, na imposição, na força, nos músculos e, principalmente, na madeirada. Quem dá a madeirada, manda, quem é madeirado, obedece.
O machismo está tanto na mulher que possui o dom da cozinha e da faxina quanto do homem que possui o dom da direção de automóveis e da troca de chuveiro; além do que, o machismo só é constituído como tal quando se apaga o discurso da mulher e seus saberes para que os homens criem seus próprios discursos sobre a mulher e sobre os saberes que lhes são comuns. O feminismo está na ausência de dons, realocando-os para as habilidades humanas, podendo ser aprendidas por qualquer pessoa, restaurando um discurso de experiência.
A ação de evidenciar o machismo torna-se chato e desconfortável para uma roda de amigos. Todos estão lá para se divertir, para rir, compartilhar histórias do cotidiano, falar da universidade, do trabalho, dos amores, das baladas, dos bares. Mas é preciso somente uma denúncia para que todos fiquem atentos. Já é de conhecimento de todos nesse meio que machismo é um crime, não há de que se orgulhar. Resta apenas explicar-se, desculpar-se ou defender-se, sendo a negação seu melhor mecanismo. Na defesa não há qualquer motivos para a vergonha, visto que a maioria presente compartilha um capital simbólico bem parecido. Como fica a minoria de desajustados que se utilizam da crítica feminista?
A dificuldade em falar sobre machismo é que a conversa toma um curso pessoal, onde as atitudes apontadas como machistas são vistas como desqualificação do próprio machista, sem que ele perceba que o é. Na roda, a mulher sabe que sua posição é coerente com aquilo que viveu e aprendeu de suas experiências (seja com assédios clandestinos, rodas de conversa sobre a mulher, ajudando uma amiga a superar um episódio trágico em sua formação como mulher, pais lhes perguntado sobre um casamento, pessoas desconhecidas julgando suas roupas com o olhar, o dia em que percebeu que ela tornou-se mulher), embora o insucesso com fazer os amigos perceberem o mundo feminino seja tortuoso em decorrência de falácias que os outros amigos apontam e que às vezes são difíceis de refutar (como demonstrar que as palavras possuem conotações e não apenas denotações, extinguir um plano de igualdade entre os sexos no século XXI, ter todo o cuidado para não insinuar que seu amigo é machista e está sendo dominado por ideias que ele não percebe que estão lá – o que poderia irritá-lo e levá-lo a negar a afirmação).
 Por outro lado, o homem na roda junto da mulher também compreende sua posição nesta rede de saberes. Entende como é glorioso informar seus amigos mais próximos sobre seus sucessos carnais e como levou/leva a mulher à volúpia. Entende como é engrandecedor chamar sua namorada primeiramente pelo título de namorada, seguido ou não do nome. Entende como é estupendo comentar sobre a carne das mulheres que passam e como se deitariam sobre elas. Entende como o pênis não é apenas parte de seu corpo, é um corpo a parte, requer uso frequente, sendo recompensado com aplausos quando o sêmen é bem utilizado, no sentido de ser dirigido a outro corpo, não sendo desperdiçado na solidão dos prazeres descompromissados da masturbação. Entende que ser homem implica em não ser mulherzinha ou viadinho. Entende que ser homem não é nenhuma opressão como dizem os feminismos por aí, ser homem é maravilhoso, provavelmente teria percebido qualquer conduta inadequada se fosse algo tão horrível como comentam.
Não é a masculinidade que se torna imperceptível, são alguns de seus efeitos. É mais do que obrigatório, para o campo simbólico, que os homens reconheçam a masculinidade uns dos outros e que avaliem os comportamentos morais de cada um, que julguem os efeitos de cada agente. O homem demasiado masculino não percebe sua agressividade, ela lhe parece tão natural quanto a docilidade para a mulher. Quando alguém desperta sua pulsão sexual, será esperado que ele não desista até cansar-se, pois algo lhe diz que ela quer, mesmo que uma ilusão inconvenientemente firme. Se a chama de puta, vaca, vadia, piranha, safada e não lhe parece estranho que haja tantos nomes mórbidos para referir-se a mulher e quase nenhum correspondente para o homem, arranjara alguma desculpa criativa para acobertar esta linguagem. Escutando Malandramente e não percebendo a malandragem da música, dará voltas para proteger seu capital simbólico e sua posição social numa arena em que jogam outros jogadores prontos para ocupar uma posição melhor.
É este homem na roda, incerto de como agir, que não quer prejudicar seus amigos (ou suas posições), e nem jogar-se num campo de masculinidade fétida, se pergunta se deveria ter agido como agiu, se deveria realmente ter questionado, qual teria sido o melhor jeito de questionar, se mesmo terminado a discussão deveria prosseguir com material visual para seus amigos, como ficaria sua imagem daqui para frente: seria rejeitado, tolerado, haveria ressentimentos? Quando não consegue dormir por juntar todas essas dúvidas e temores, pergunta-se se realmente quer ser homem num mundo masculino; será impelido ao escrutínio de outros homens; deverá rir de piadas que exigem a familiaridade com esse capital simbólico que ele carrega e tem por finalidade difundir-se; se poderá recorrer a uma estética diferente sem que isso gere cochichos e comentários embaraçosos dos outros sobre si (por mais que digam ser uma piada).
Malandramente não é apenas uma música com uma letra qualquer, ela simboliza todo o esquema da dominação de um sexo sobre o outro, resgatando os comportamentos socialmente naturalizados, de conotação eterna que devem ter. Se a dita menina inocente apresenta um comportamento sedutor e faz cara de carente, ainda que esteja só curtindo, é hora de tomar a madeirada. Mas é safada no momento em que meteu o pé pra casa e mandou um recadinho que diz: Nós se vê por aí! É como se a menina inocente devesse conhecer a regra não meterás o pé pra casa se for tomar madeirada, seu maior crime foi ser safada, se tivesse cumprido a regra receberia um nome menos vulgar.
            A mulher e o homem da história, ao perceberem o sentido escamoteado na linguagem, percebem que a ideologia é formadora de pensamento, ações e ideias, sendo que seu bom funcionamento se deve ao seu desconhecimento. O machismo resiste porque ninguém se diz machista, porque o mundo fora de mim é machista, não eu. Eu me faço implacável. Eu sou inatingível. Eu escolho quem quero ser. Basta estabelecer uma imposição a mim mesmo, como não serei machista, e isto bastará. Desta forma, torna-se facilmente dominado, pois não submete ao pensamento uma atividade reflexiva; não lhe passa pela cabeça que pode ser uma consciência contraditória: um dominado que luta contra a dominação na medida em que ela lhe parece menos um prestígio e mais um incômodo em sua imagem de si. As pessoas escolhem o que querem ser na medida em que possui consciência de si, consciência essa que é devir e deve sempre estar num eterno processo de autorreflexão.
            Não é porque a mulher e homem na história estão cientes de uma ideologia que se conhecem perfeitamente e já escolheram todas as diferenças que querem carregar consigo para o campo social, resistindo ao jogo e aos supostos privilégios que lá podem encontrar. A ideologia não cessa por acha-la, ela é o próprio corpo de quem possui ideias, pode inclusive fazer parte do pensamento reflexivo, dessa autoconsciência.
            Admitir a possibilidade do erro é crucial. O erro se resolve muito menos com discriminação de sua qualidade errática do que recorrendo a uma reavaliação de si mesmo enquanto avalia os critérios que utiliza para conhecer-se. O erro não é um homem masculino, mas um homem masculino que ignora e reduz o sentido de uma música a umas tantas palavras de significado definido, uma harmonia e uma ritmo, esquecendo-se de sua complexidade; o erro nunca desaparece e acompanha o pensamento aonde quer que vá, uma vez que inexiste uma ideologia pura. O erro acompanha, inclusive, aqueles que falam sobre o erro e descortinam uma racionalização do machismo, dando espaço a uma racionalidade ciente de suas ilusões, embora sem saber onde se escondem esses fantasmas.
            Apontar o machismo entre amigos só é visto como chatice porque todos nos pensamos desconstruídos e esquecemos que nossos habitus são construções sociais, culturais, ideológicas. Formamo-nos formando e sendo formados, tudo ao mesmo tempo, sem ordem para acontecer ou hora para acabar. Se não aponto o erro tanto para o feminismo como para o machismo é porque não há nada de benéfico neste último conjunto de práticas e saberes: são pessoas em enfrentamentos simbólicos por curtos momentos de satisfação e aceitação, sempre temendo tomar madeirada.
            É a chatice do feminismo que vê numa música a desigualdade entre os sexos, e é essa chatice que queremos para vivermos mais harmoniosamente, mesmo que tenhamos que sofrer o olhar inquisidor de amigos para que numa descoberta de si desses mesmos amigos, proporcionada pelo choque de discursos, o poder seja vertido em diálogo. Parece-me, também, que há dois problemas fundamentais para alcançar tais objetivos: os conhecimentos que o homem e a mulher possuem de seus corpos são cindidos pela experiência, como o conforto do homem com seu próprio corpo bloquear algo de sua compreensão sobre o corpo-carne amaldiçoado da mulher; por não viver como mulher, o homem não conhece as sutilezas do poder masculino sobre o corpo feminino, mas do poder masculino sobre seu próprio corpo, e só terá experiências desagradáveis se for contra esse poder, já a mulher está sujeita às experiências desagradáveis mesmo seguindo a tradição (como no sexo, quando se diz que tornasse frígida a mulher que sofre uma penetração violenta, ou em locais públicos, quando sente estar sendo perseguida, ou da própria natureza histérica da mulher, como se a histeria fosse particular das mulheres). Em todo caso, a mulher da história parece determinada em seguir os projetos que criou para si sobre sua liberdade, ainda que deva passar por angústias e crises existenciais. O conhecimento impede o retorno à ignorância. Saber onde reside o erro impede que ele se torne invisível novamente. Já ambos os homem da história podem se preocupar a tal ponto que se sintam fazendo tantos sacrifícios que se veem sacrificados, perguntar-se-ão se possuem tantos erros assim, se deveriam sofrer tanto e receber tantos sermões, advertências, olhares de espanto, viver na desaprovação e numa reforma tão árdua do próprio pensamento que é capaz não se reconhecerem depois. Têm medo de ser livres dos caprichos do mundo masculino, pois a liberdade é angustiante, ela pede que sejam feitas coisas diferentes do que se fazia antes, que haja uma nova rotina, novas relações, nova consciência. Sem contar o poder que a masculinidade inscreve.
Viver sem poder deve ser angustiante.
Será que é por viver na angústia de seu próprio sexo que são as mulheres e não os homens quem puxam o carro chefe da desconstrução?


Referências:

BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. 2003.

CHAUÍ, Marilena. Ideologia e Educação. Educ. Pesqui. vol.42 no1, São Paulo jan./mar. 2016.

MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários para a educação do futuro. 2ª Ed. São Paulo : Cortez ; Brasília, DF : UNESCO, 2000.