Uma das maiores falácias que circulam no mundo da
racionalização dos saberes é o argumento de autoridade, que é quando um
interlocutor recorre a imagem de um terceiro que estaria numa posição
privilegiada e distinta para indicar um saber que funciona como um poder, ou,
um terceiro que possui o intuito de intermediar a situação funcionando como um
tipo de capital cultural institucionalizado (termo bourdiesiano). Em outras
palavras, poderíamos encurtar o argumento de autoridade em “Não sou eu que estou falando que a
democracia é uma péssima forma de governo, é Aristóteles!” ou “Você tem algum diploma em Música para dizer
se a música é boa ou não?”, respectivamente.
Numa
conversa, entendo que este tipo de falácia clama pelo poder, pelo afirmar-se
acima dos outros, por querer por um ponto final e sair vitorioso (ou não sair
perdendo). Uma discussão, um debate, uma conversa e situações semelhantes
deveriam funcionar por argumentos, seguidos pela aceitação ou negação. A
aceitação de um argumento é compreendida como uma correspondência entre a ideia
apresentada e as experiências de quem ouve ou um encadeamento lógico plausível.
A negação de um argumento consiste no oposto da negação, sua não compreensão ou
um encadeamento ilógico do pensamento.
O argumento
de autoridade pode muito bem ser aceito, neste caso, evidencia-se uma
sensibilização de ambos os interlocutores ao poder, ambos reconhecem uma força que
leva a obedecer o discurso. Não interessa que o discurso seja familiar, que
você o compreenda, mas são depositadas confianças em um terceiro que autentica
o conteúdo, fazendo surgir uma autoridade a qual todos devem se submeter.
No caso da
negação, não há a possibilidade de refutar o que foi dito, visto que o discurso
está armado sob uma hierarquia organizada de especializações que deixam
subtendido quem possui a competência de executar aquele saber. Em todo o caso,
esta falácia trabalha o poder na forma de exclusão, controlando o emissor, o
receptor, a informação que pode ser veiculada, o espaço e o tempo do discurso.
Há uma
confiança cega neste tipo de argumento de que impede que o usuário desse
recurso possua liberdade de pensamento, cria barreiras para um conversa sincera
e que preza o que o outro tem a falar. Se alguém diz que a democracia é uma
excelente forma de governar, acredito que ela possua seus motivos para isso, e
são eles que deveriam ser ouvidos. A autoridade, aqui, é massacrante, despreza
a experiência no mundo e induz ao pensamento de que alguns saberes são mais
certos que outros, assim, os saberes que eu possuo são uma forma errada de
pensar, e a forma como eu penso é decorrente de minhas experiências e dos
sentidos (no seu sentido semiótico) pelos quais significam a vida, chegando a
conclusão de que se vive de uma forma errada, se conhece de uma forma errada e
se pensa de uma forma errada.
Esta
desconstrução do argumento de autoridade traz a preocupação acerca dos diplomas
e de sua validade. Se eu estudo ciências sociais e a clássica barbaridade de
que política é opinião aparece em uma determinada situação, naturalmente
recorre-se aos estudos da academia para denotar uma ideia mais concisa de
política, diferenciando-a da opinião, mas não basta que este estudioso das
ciências políticas saiba algo sobre política, ele deve sensibilizar seu
interlocutor a compreender aquilo que ele compreende. Se aquele que aduz a
política como opinião está convencido de sua posição, não basta apenas
humilhá-lo ou subssumi-lo ao argumento de autoridade – “Eu que estudo política, você não sabe de nada.” -, deve haver o
esforço de fazer o interlocutor compreender sua posição, de apresentar um
argumento e estar disposto a explicar suas nuances e suas vastas implicações.
Um discurso
deve compartilhar o espaço discursivo sem gerar indícios de soberania. Deve
pressupor a continuidade, que virá algo a seguir (aceitação ou negação, e assim
sucessivamente), por mais pobre que pareçam as refutações. Neste caso há de
explicar porque o argumento é pobre (como é o argumento de autoridade). A
inadequação do argumento de autoridade está em criar um regime de verdade, como
diria Foucault, de fazê-la última e predominante; não se utiliza um argumento
de autoridade porque ele faz sentido, porque é uma ótima resposta ou á algo que
seria interessante que todos soubessem, utiliza-se o argumento de autoridade
por sua força de destruição e seu caráter disciplinador. O argumento de
autoridade possui o poder de esterilizar um conteúdo, transformando-o numa
casca vazia. Num argumento de autoridade, pouco importa o que o outro diz se
não está em conformidade com o que eu penso.
Não devemos
esperar que o outro seja indiferente ao nosso discurso, devemos esperar que se
alegrem, se enfureçam, se entristeçam, olhem com desconfiança, sintam aversão,
mas o que importa é não subjugar um saber, mas apreender a situação em que ele
é colocado, posicionando-se em relação a ele. Ainda que os sentimentos e as
emoções tenham efeitos numa discussão, devemos esperar que eles apareçam pelo
simples fato de um discurso ser também um afeto: ele provoca algo em nós.
Recorrer a
um diploma, por exemplo, é pura covardia, má-fé, manipulação e um amargo tom de
dominação. Eu não quero acreditar num diploma, quero acreditar na pessoa que
possui aquele diploma, quero que ela me diga os saberes que são relevantes para
ela segundo o tema que discutimos porque ela dispendeu tempo se apropriando
daqueles conhecimentos. E de todos os seus conhecimentos porque aquele que ela
enuncia é o grande X da questão? O que se passa pela cabeça daquela pessoa? Não
há outra forma senão ouvir.
O diploma,
bem como autores, são instrumentos para construirmos nossas próprias formas de
pensar. Não passamos horas lendo ou indo às aulas para ser aquela aula, temos
nossas próprias paixões e elas influenciam nossas formas de conhecer (de
aceitar ou de negar um saber). Não é porque alguém é um cientista social que
ele é a favor das cotas, mas ele não conclui isso do nada, ele investe tempo em
buscar bons argumentos para sustentar sua tese. Da mesma forma, algumas
feministas apontariam a importância de transformar-se individualmente para
transformar a sociedade do que juntar-se a um coletivo para transformar a
sociedade. Segue-se, também, o favorecimento a um Estado liberal em detrimento
de um Estado centralizador. A discussão- modelo sobre isto está na existência
ou não de Deus e na validade ou não das fontes do criacionista e da falta de
espiritualidade do cientista.
Voltando
para o sujeito que menciona Aristóteles, ele parece extremamente convencido de
sua posição, resta dirigir-nos a ele e questioná-lo: “E que diz Aristóteles a respeito da democracia, porque seria uma
péssima forma de governar?”. O questionar torna-se fundamental para saber
que o estagirita fala sobre virtude, que há poucos homens virtuosos, e com
poucos homens virtuosos seria impensável permitir um governo de todos, visto
que nem todos possuem a virtude para governar. E é aqui que desaparece o argumento
de autoridade. É neste mesmo ponto que podemos esperar uma resposta de
aceitação ou negação ao que foi falado.
O problema
não está em mencionar um título, uma profissão, uma pesquisa, uma forma de
capital institucionalizado, mas em não explicar para que serve tal menção e
aonde espera chegar com isso. Um biólogo, ao entrar numa conversa sobre
genética (principalmente se for sua especialização), poderia apresentar-se como
biólogo não para ser uma autoridade e instruir ou desmentir os interlocutores,
mas para mostrar que ele possui contribuições importantes a serem feitas. O
mesmo podemos dizer de um padeiro, de um atendente de caixa, de uma costureira,
de um varejista, e demais profissões esquecidas que sequer seriam citadas na
redação “o que você quer ser quando
crescer?” do ensino fundamental. O que acontece numa cozinha de padaria, fluxo
de clientes, tempo médio para costurar uma saia, compra de materiais e
fornecedores, as conversas, as distrações, os acidentes, as verduras mais
compradas, a burocracia dos estabelecimentos, como é trabalhar por conta
própria.
A profissão
pressupõe habilidades que dependem da escolarização, em geral, e o argumento de
autoridade acontece, também, quando alguém se diz mais educado do que seu interlocutor ou pressupõe tal absurdo. A
escola cumpre seu papel institucional de autorizar saberes, habilidades e
competências: concluir o ensino fundamental, o ensino médio ou ensino superior
são abismos entre aqueles que estão autorizados a falar e aqueles que não
estão. O argumento de autoridade, como neste caso, não precisa nem ser argumento,
possui um caráter simbólico mais puro, incorporando a autoridade no próprio
indivíduo, não apenas no discurso. De igual forma, afeta o discurso.
As palavras
revestidas de autoridade-poder servem apenas para comunicar quem está no
controle, quem decide, quem é o guru e quem são os comandados, os obedientes e
os seguidores. Quem se utiliza desse tipo de autoridade para se comunicar não
comunica o que realmente importa, não busca alcançar um sujeito, espera que os
outros se dobrem aos seus caprichos, esquece-se de exercitar seu próprio
pensamento, acaba fadado a ser incompreendido.
Há outro
lado da autoridade, que é a mesma autoridade que um pai possui aos olhos de um
filho: a de respeito.
Passamos então para uma relação
de amor. Um ouvir para falar e ser ouvido. O sentir o outro para sentir-se. O
aconchego de um ambiente que não é ameaçador, onde posso falar porque o que eu
falo importa. Criar ideias sem espaços. Aceitar erros como um ato educativo. Ao
invés de dissimulada, a conversa consegue ser tão sincera quanto duas pessoas
que dizem eu te amo, que por
confiança não pedem provas do amor, creem na fonte desse amor e aproveitam o
tempo que perderiam tentando provar este amor nos prazeres de estarem juntos.
É inevitável que as pessoas
queiram saber as bases de um conhecimento quando estão determinadas a não
aceitar a autoridade ou o descompromisso com as fontes científicas do
conhecimento, logo não poderiam crer no que o outro diz por que se amam. Aí
está, inclusive, a diferença entre o respeito e o amor: respeita-se alguém
porque esse outro não sou eu, daí vem o ouvir, para saber com quem me comunico,
quem está diante de mim, saber quem é esse outro.
No amor essa divisão não é
respeitada, e falta de respeito é uma falta do outro, é uma proximidade que se
criam entre os corpos a ponto de se confundir o eu e o outro. Falar não
pressupõe mais aceitação ou negação, apenas convivência, viver de sabores. Esquece-se
a verdade porque ela passa a ser criada por quem ama. Estar na relação é mais
importante do que sobressair-se nela. Confiar é um princípio básico, sem ele
não se ama. Ele traz segurança e conforto, e com isso um sentido para não
separar-se do outro.
É pelo amor ser o que é que se torna
tirania. Quem ama crê tanto que se esquece de duvidar, pois a mentira não seria
possível entre os apaixonados. Quem ama não dispende energia se preocupando com
o que não é falado, buscar nos bastidores é um infortúnio para o amante que se
vê nessa situação de vasculha e questiona-se sobre se realmente ama alguém em
quem não confia. Quem ama abre exceções, faz coisas pela pessoa amada que não
faria a mais ninguém porque sente que a vida dela também é sua vida. Quem ama
se desgasta suportando o poder que ela concedeu a pessoa que ama de machucá-la.
Quem ama está exposto, sofre dores viscerais nos toques mais superficiais. Quem
ama ama mesmo sem ser amado. Quem ama nomeia o amor autoridade. Quem ama confia
poder porque confia no poder de amar.
O amor conjugal é uma expressão
privada do argumento de autoridade, o que não torna todo argumento de
autoridade, amor, embora evidencie que todo amor é um argumento de autoridade. Por
isso falta respeito e não amor em conversas ou discussões. Todavia, é pelo
respeito que passamos a amar, é pelo amor que nos encontramos em posições de
poder, é por sermos poderosos que desrespeitamos, é por desrespeitarmos que
acabamos sozinhos ouvindo sempre as mesmas palavras dentro de nossas cabeças. É
encontrando alguém que respeita o que temos a dizer que nossa tautologia
existencial volta a fluir e se renova em direção ao outro, talvez querendo
adentrá-lo, talvez querendo que ele nos adentre.
O poder se inscreve num corpo com
tal eficácia que não precisa ser amor para adentrá-lo, basta que o sujeito ame
a prática que incentiva o poder, que tenha seus gostos direcionados ao poder,
que seja levado a crer que a maior felicidade de sua vida encontra-se nesse
poder que se traveste de tantas formas. Assim alguém é levado a crer que alguns
saberes são melhores que outros: o saber que funciona como poder afeta corpos
disciplinados, ou seja, corpos com predisposição a amar essa situação de tal
forma que o amor se confunde com sensações desagradáveis que emanam do poder
que subverte as expectativas que alguém possui pelo amor.
Comecei minhas questões acerca de
quem usa o argumento de autoridade e encerro em quem aceita o argumento de
autoridade. Quanto ao primeiro, podemos ver que não há vantagens nesse tipo de
lógica e já sabemos como nos posicionar diante deste tipo de argumento, mas
para nos posicionarmos não podemos vacilar diante do poder. Se esta falácia
possui peso numa discussão isto decorre de seu caráter simbólico no pensamento,
de seu uso recorrente e do impacto que tem em nossas formações humanas. Rimos
de uma piada porque está implícito os elementos humorísticos no discurso pela
cultura; obedecemos ao discurso de autoridade porque estamos sensibilizados ao
poder deste tipo de discurso.
Tratar com respeito é partilhar o
poder sem destituir as pessoas da autoridade de poder falar. Amar as pessoas
que falam requer denunciar o abuso de autoridade para reestabelecer a segurança
da relação. O argumento de autoridade é falta de respeito, mas também é falta
de amor, amor pelos outros e amor próprio, pois mostra que essa pessoa é tão
vazia que ela precisa de medalhas para fazer brilhar um corpo morto. E mortos
não amam. Mortos decompõem-se. Nutrem a terra para uma nova vida semeada apenas
e unicamente com o respeito a ouvir o que esse novo ser tem a oferecer.
Um corpo vivo ama ser respeitado,
mas sua maior virtude é a capacidade de amar: autorizar o poder dos outros
sobre si pela confiança que ele possui na capacidade de ouvir do outro, fundada
no respeito à vida e à diferença.