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quinta-feira, 3 de março de 2016

Poema de um afeto

Não espero menos de amanhã do que a noite
Fria, constante, insólita e lamuriosa
Temida e afastada, odiada e rechaçada
Ao invés de luz, quero as sombras que são minhas
Que são uma forma de luz

Também quero as sombras que não me pertencem
Para iluminar um medo que é amoroso
De iluminar as sombras, ilumino luz dos que veem sombras
Mas de minhas sombras não vejo luz
Se toda sombra é luz, como eu poderia temer minha própria luz?

E ainda que a luz possa tornar-se sombra,
Por que não nomeamos a luz de sombra?
O dia e a noite não são senão momentos de um giro
A luz e a sombra: binômios religiosos
Ao enfrentá-la, o que eu espero senão o conforto de um abraço?

De minha confusão de dias e de noites,
Que faço senão me enfrentar e conquistar-me a todo instante?
Poderia, eu, ser meu e não ser de ninguém?
Poderia estas sombras serem outrem
Ainda que sejam minhas?

Se amanhã o dia clarear, verei que é noite
E o entardecer é uma ascensão
Mas não podendo viver para sempre na noite
Vivo o dia como se fosse noite e busco suas sombras
Para que a luz do dia não impeça minha visão

É no escuro que enxergo claramente
É no clarão que vejo também
Embora seja, sobretudo a noite
Que minha visão está além do que eu vejo
E as coisas são mais do que se mostram ser

É com a visão restrita que vejo sem poder ver
Pois é sentindo tudo que é profano que elas mudam

De dia, eu busco saber o que eu quero
De noite, as coisas se apresentam como são
De dia, eu sou um coitado
De noite, as coisas me completam
De dia, dói; de noite também
Porém, o dia amortece a dor
De noite, ela é sombria, e por isso, luminosa
Quando a dor não fere, é amor