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sexta-feira, 25 de agosto de 2017

O que tem na creche do neném?

Apresentação e outras coisas importantes

            O seguinte relatório foi elaborado com o propósito de servir como avaliação final para a disciplina Estágio Supervisionado III – Educação Infantil (EP912-A), cursada na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas. Destaca-se aqui uma característica narrativa[1], vem relatar a experiência do ponto de vista do estagiário, favorecendo seu protagonismo sem correr o risco de sumir com o observador; pode falar sobre si mesmo, da própria participação, dos acontecimentos no plano afetivo, dos pensamentos, das intuições, das angústias e da rede na qual está inserido.

Metodologia ou narrar o vivido

            A narrativa é tanto um exercício de memória quanto reconhecer o portador das memórias, a possibilidade da narrativa ser objeto de conhecimento está na afirmação de um sujeito cognitivo-reflexivo. Desta forma, a creche, local onde foi realizado o estágio, não é a priori ou por excelência objetiva em si, a parcialidade implica numa dialética entre a realidade objetiva da creche e sua assimilação subjetiva pelo estagiário, cuja história de vida (suas narrativas profissionais e pré-profissionais[2], ambas narrativas pessoais) desvelada justifica compreender a creche tal como ela é relatada por ele.
            Sabendo que a narrativa pede um sujeito para dizer algo sobre si numa determinada situação, não vemos motivos para não continuar com um pronome pessoal do caso reto em primeira pessoa: “eu”[3]. Assim, como num conto leve e investigativo (como num Sherlock Holmes[4]), pretendo cumprir meus objetivos como estagiário de pedagogia que visitou uma creche com fins mais ou menos certos.

Objetivos: por que mais ou menos certos?

            Por um lado, é obrigatório, não há escapatória da disciplina e cumprir o estágio está determinado no currículo, tem que ser assim mesmo que eu não queira; por outro, fazer estágio (e sei disso por conta de ter vivido outros estágios) aproxima o graduando em pedagogia da ideia de creche ou de escola, e chegando lá vê, compara as coisas humanas e não-humanas com os mitos e fantasias que inundavam seus pensamentos íntimos, espantando-se, alegrando-se, entristecendo-se, angustiando-se, surpreendendo-se com o que encontra.
            Os objetivos são mais ou menos certos porque viver as experiências de estágio pedem reconsiderações sobre os planos iniciais. Se eu, permita-me pressupor, vou para observar o desenvolvimento sensório-motor dos bebês, posso me surpreender com os cuidados muito bem dados a eles e elas pelo(a) professor(a) e me interessar por isso de forma que me esqueça de observar como as crianças seguram, olham e mordem os brinquedos, algo totalmente plausível para fins de estágio, o que poderia ser imensamente reprovável em outras situações, como alguma pesquisa sobre bebês em que pensar a formação do profissional é uma digressão comparada à observação do comportamento dos pequeninos e pequeninas.
            Devo apresentar-me: sou pedagogo e estudante (informações esperadas e requisitadas); irmão mais velho (sempre foi exigido que eu cuidasse de meus irmãos-crianças, mesmo sendo criança); morador de república estudantil (sei o quão importante é conversar e combinar regras para conviver harmoniosamente, atitudes que eu esperava ver na creche com a noção de gestão democrática); leitor inquieto (tentarei ser o menos prolixo possível); violonista (me interessa uma educação artística para as crianças); contemplador de árvores (admirador da natureza e espero que as crianças tenham oportunidade de fazer o mesmo); e registrador de sonhos (me interessa seus mistérios tanto quanto aqueles que as crianças guardam consigo, e nem sempre são lógicos, às vezes são uma não-razão, razão-sem-lugar ou razão outra).

Vamos falar da creche e seus participantes

            Eu acordava às 6h da manhã para chegar à creche às 7h,  horário para receber os pais. Este estagiário que fala contigo, entretanto, mora bem perto da creche, essa que fica próxima a um hospital dentro de uma universidade estadual e pública, inclusive, a creche começa como iniciativa de uma enfermeira ligada a esse hospital. Essa mesma creche não recebe qualquer criança, apenas aquelas de funcionários e estudantes dessa universidade.
            Os pais deviam acordar as crianças cedo, como 5h, e uma professora uma vez me contou que elas acordavam às 4h30. Informação das conversas rápidas que os pais têm com as professoras quando retornam entre 12h-13h para buscar seus filhos (13h começa outro período que vai até 19h).
            A creche possui ótimas instalações: luz, água potável, cozinhas, espaço a céu aberto com caixa de areia e brinquedos de parquinho (escorregador, gangorra, balanço, trepa-trepa, casinha, etc.), salas das turmas, sala de professores, espaços cobertos com almofadas, outros brinquedos, piscina de bolinha, jogos de tabuleiro, cantinho de fantasias, um jardim com mesinhas e mais brinquedos próximo às salas de coordenação e secretaria (vale mencionar o aquário em frente dessas salas, as crianças de 2 anos ou mais adoravam ver os peixinhos ao passarem por lá).
            Há uma diversidade de crianças por lá, embora predominem as crianças brancas, pelo que percebi. As diferentes etnias justificam-se, na maioria das vezes, pelas crianças serem filhas de estrangeiros. Isto apenas confirma o processo de exclusão de algumas categorias sociais pela incapacidade da universidade receber um público mais diversificado. A diversidade da creche justifica-se mais pelas crianças dos estudantes e funcionários com funções vistas como menos prestigiadas do que pelos professores universitários.
            Foram 60h de estágio na creche com as crianças e profissionais do local (professoras, cozinheiras(os), auxiliar de limpeza, nutricionista e diretora). Todas as professoras possuíam graduação em pedagogia, uma delas me informou que era doutoranda em educação infantil e outra estava prestes a terminar o mestrado, também em educação infantil. Verifica-se no grupo gestor especializações em área de pedagogia, informação significativa para uma administração pedagógica dos recursos escolares como foi presenciado no estágio. Enquanto isso, as auxiliares de limpeza e as(os) cozinheiras(os) tinham, no máximo, ensino médio completo. A maioria completou o ensino fundamental.
            As crianças são divididas em turmas de acordo com sua idade. As turmas recebem o nome de Convivência, uma concepção diferente da divisão em Séries, essencial para a ideia de interação que sustenta a educação infantil. A isto devemos a ida das crianças de 6 meses à 1 ano e 11 meses para o Convivência I, das crianças de 2 anos à 3 anos e 11 meses para o Convivência II e, por fim, das crianças de 4 anos à 6 anos ao Convivência III. Estagiei 24 horas no Convivência I, 24 horas no Convivência II e 12 horas no Convivência III, divisão de horários atribuída pela orientadora pedagógica, responsável por receber os alunos de estágio.

Sonecas sonolentas e brincadeiras saborosas 
    
            Optarei por relatar o cotidiano da escola, as coisas que acontecem dia após dia, muitas vezes de forma repetitiva, o que tornava previsível as atividades apenas por olhar o relógio por transformar-se em rotina.
            De uma forma geral, as atividades seguiam um cronograma: receber as crianças, brincar dentro da sala, comer, brincar fora da sala, brincar dentro da sala, tomar banho (apenas para crianças das Convivências I e II, o grupo Convivência III brinca nesse mesmo horário), comer, dormir (apenas para crianças das Convivências I e II, o Convivência III brinca nesse mesmo horário), brincar fora da sala se acordar e esperar os pais/ser acordado pelos pais (Convivência III brinca no parque e as crianças esperam os pais por ali, não dormem nesse horário).
            Algumas crianças chegavam à creche dormindo nos braços dos pais, e mantê-las acordadas não era trabalho fácil. Uma criança do Convivência II em especial, com síndrome de down, não media esforços para dormir, encostava-se nos brinquedos, no tapete de encaixar e apenas dormia, enquanto outras da mesma idade dirigiam-se à professora e informavam que estavam com sono (por gestos ou palavras).
            As professoras se esforçavam muito para não permitir que as crianças dormissem, o que me causava um desconforto. Talvez por empatia, já que eu também chegava cansado no estágio por ter dormido de 3 à 4 horas, eu tivesse puxado os colchonetes da sala para essas crianças que estivessem mais ou menos cansadas. As professoras, por outro lado, evitavam deixar as crianças dormirem.
            No Convivência I acontecia das crianças dormirem, era comum, embora não fosse incentivado. Quando as crianças choravam tomávamos, nós cuidadores e educadores, algumas atitudes: entregar um brinquedo ou conversar com a criança; outras abordagens eram carregá-la no colo, algumas paravam de chorar instantaneamente, outras requisitavam um passeio e uma boa conversa, algumas precisavam ser balançadas, postas no dormidor, mas dormir era a última opção das professoras.
            Havia a opção de deixar o bebê chorando, acontecia muito quando nenhuma das outras tentativas funcionava. Este último justificava-se pela birra, que, segundo as professoras, não deveria ser incentivado. Pareceu-me mais uma habilidade intuitiva que a associação do comportamento do bebê a um sinal correlato, ou, em outras palavras, qualquer ação que levasse ao choro poderia ser considerada birra, e só era birra porque alguma professora afirmava o fato, acompanhado de concordância geral das demais professoras.
            De forma geral, não apenas no Convivência I, as professoras conheciam as crianças a ponto de pressupor quais atitudes seriam mais eficazes com qual criança. Digo isto por perceber que diante de uma mesma situação as professoras apresentavam posições diferentes para crianças diferentes. Por exemplo, elas reconheciam que algumas crianças choram por birra porque querem o colo que os pais estão acostumados a dar sempre que ela chora, enquanto outra chora porque a professora sabe que está com sono, dá pra ver como está cansado.
            Com isto quero dizer que encontro nas professoras um esforço de compreenderem as crianças que chamam de suas. Quando elas anunciavam a birra numa criança o mais comum é que ela chorasse por um tempo, parasse e observa-se o ambiente, como se verificasse o que está acontecendo, retornando a chorar. Esse choro intermitente era o que as professoras caracterizavam como birra, diferente dos choros contínuos, que causavam uma verdadeira comoção.
            Dormir era para algumas crianças (Convivências I e II) uma atividade forçada. Lá pelas 11h30 as professoras puxavam os colchonetes, pegavam os lençóis nas bolsas de cada criança e deitavam-nas de barriga para baixo. Algumas dormiam num piscar de olhos, outras levavam seu tempo para adormecer e os mais arteiros (os irrequietos e barulhentos) eram ninados: elas cantavam ou cantarolavam e davam tapinhas carinhosos na fralda dos pequeninos (conheço pais que fazem a mesma coisa para ajudar os filhos dormirem). Muitas vezes, para evitar que eles se levantassem do colchão as professoras utilizavam o braço como barras de contenção, sua força prestigiada permitia que elas obrigassem as crianças a permanecerem deitadas já que estava na hora da soneca.
            Esta demora em descrever o sono dos bebês e suas possibilidades na escola acontece por uma preocupação que tenho sobre o sonhar e a atividade onírica da criança. Os sonhos como o poço das imagens que falam sobre o si mesmo é desacreditado demais[5], preferível pensar o sono como o descanso do corpo, como fazem as professoras. O sono possui uma função de recobrar as energias das crianças para o brincar, porém, há uma contradição: se o importante é brincar e a criança sem sono quer brincar, as professoras se veem numa situação delicada ao impedirem essa atividade da criança ao pô-las a dormir com seus braços-com-função-de-camisa-de-força. Por outro lado, evitam ambientes caóticos demais, já que uma atividade vale para todos, como dormir.
            Sorte das crianças do Convivência III que não dormem e nunca parecem cansadas, o que é assombroso demais para mim que chegava ao estágio pensando em quão ruim seria deitar em um dos colchonetes (e não o fiz por refletir sobre minha conduta moral enquanto estagiário: hora de dormir ou hora de ficar com as crianças e aprender algo com elas?).
            Dito isto, passemos adiante.
            As brincadeiras das crianças acontecem a todo o momento: nas salas, no parque, no banho, no refeitório, quando se preparam para dormir. Brincam com ou sem brinquedos. Nas salas, em todas elas, por querer proporcionar um espaço amplo para o deslocamento das crianças os brinquedos nem sempre estão no mesmo nível delas, o que dificulta um pouco sua autonomia, que acaba sendo incentivada de outras formas. As salas são muito parecidas, todavia, há um toque especial dado por cada professora e partir de seu sujeito profissional para a sala, o que é suficiente para criar diferenças entre esses espaços.
            Os brinquedos quase sempre estão em caixas de plástico e divididas por semelhanças. Uma caixa possui apenas carrinhos e caminhões, outra apenas bonecas, outra apenas panelas e comidinhas de plástico, outra apenas bolas de plástico.
            No Convivência I há redes penduradas no teto para bolas coloridas do tamanho de bolas de futebol e de tamanhos maiores. Portanto, bastava olhar para cima e ver um monte de bolas coloridas e bonitas acima das nossas cabeças. Também havia bambolês com fitas penduradas neles, como se fossem halos de luz, só que eram halos de fitas (o do Convivência I ficava dentro da sala e o do Convivência II ficava fora dela).
            Os brinquedos mais pesados costumam ficar em cima, enquanto os mais leves ficam embaixo. Foi somente no Convivência III que eu percebi os brinquedos dispostos de forma mais livre. Mesmo com as prateleiras para guardar as caixas de brinquedos, alguns são maiores, como o fogãozinho, o cantinho da casinha (com tábua de passar roupa), os fantoches pendurados num suporte para parede e não amontoados na prateleira com outros brinquedos.
            Durante as brincadeiras as crianças contam com imagens (desenhos, fotos, impressões e outros tipos de representações gráficas) colocadas à parede, o que chamava a atenção e podia virar brincadeira também, momento em que elas apontavam para as imagens e dirigiam a brincadeira que acontecia no chão para a parede. O brincar mudava de plano, com isso pude ver carrinhos nas paredes, bonecas nas paredes, crianças coladas às paredes.
            As brincadeiras livres em sala eram acompanhadas por música, o que é muito bem visto por este narrador-instrumentista. Pena que nem sempre as professoras sabiam o que tocavam para as crianças. Quando eram músicas com letra, como composições do grupo Palavra Cantada, tinham o nome das músicas na ponta da língua, mas as músicas instrumentais eram compilações retiradas de algum canto mais ou menos certo da internet, como do Youtube (e dizer apenas isto não me parece uma referência satisfatória). No Convivência II, onde apareceu em maior quantidade as músicas instrumentais enquanto estive por lá, as professoras me disseram que procuraram por música instrumental para bebês/crianças e encontravam músicas que além de sons seguindo harmonias e melodias eram atravessados por uma sonoplastia que lembrava a natureza, como o agitar do vento, o correr da água, o farfalhar das árvores e o cantar dos pássaros.
            A recepção das crianças também era musical, formavam-se rodas ou as crianças ficavam dispostas em fila na parede (serve de sustentação para os menores, assim conseguem permanecer sentados) para receber bom dia e serem incentivadas a dar bom dia, o qual era cantado e o nome das crianças também.
            Em frente às sala de aula estavam locais abertos nos quais todas as crianças das salas da mesma Convivência brincavam juntas, há muitos brinquedos com funções variadas (ensinadas ou ressignificadas pelas crianças): montar, escalar, escorregar, esconder-se e saltar, por exemplo. São, em sua maioria, castelinhos pequenos, casinhas de plástico e até um trenzinho da altura de uma mesa de jantar e comprido como uma porta, exclusivos do Convivência II.
            No Convivência III predominam brinquedos de cimento (como a casinha), metal (o trepa-trepa) e madeira (o castelinho). É interessante reparar como o ambiente é preparado para as crianças: no Convivência I o chão é quase todo cimentado, com pouca grama, dois arbustos e a caixa de areia, na qual não presenciei nenhuma brincadeira com água (as brincadeiras com água aconteciam fora da areia). No Convivência II a grama ganha maior presença, há uma árvore grande e uma caixa de areia que está a maior parte do tempo molhada. No Convivência III, o chão é inteirinho de terra e com uma quantidade de árvores maior; areia e água estão à disposição das crianças.
            Com isto quero apenas apontar a relação das crianças com a natureza dentro da escola, acontece principalmente nesses espaços. Outros dois espaços alternativos para brincadeiras eram o pátio da entrada da creche, rodeado de árvores e com piso de concreto, local ótimo para desenhar com giz, como acompanhei o Convivência III desenhando borboletas, serpentes e outras imagens sem sentido para os adultos e igualmente criativas; Convivência II também fez uso dele para usar as motocas, com uma quantidade impressionante de cores rosa, que rende a seguinte digressão: a professora dessa turma me contou que alguns pais ajudam a comprar as motocas, nisto uma mãe desculpa-se com a professora por não trazer o brinquedo no dia combinado, só encontrara motocas rosa. A professora, que naquele momento conversava apenas comigo, aponta para o filho dessa mãe e diz “Faz alguma diferença a cor da motoca? Olha só, ele não tá nem ligando, tá brincando e nem aí pra cor”. Ali, concordamos que a cor era um mito enraizado no pensamento dos pais.
            Retornando, o outro espaço alternativo é o jardim ao lado da diretoria, passando pelo aquário, este possui jardineiras, vasos, pergolado com vinha, araras de madeira penduradas na parede, um sapo de cerâmica encantador aos bebês (outras vezes um incômodo por ser mais ou menos assustador), flores plantadas no solo e mesinhas de plástico. Pelo que vi, foi mais utilizado pelo Convivência I para levar os bebês para brincarem com as grandes bolas coloridas.
            As crianças possuíam uma grande liberdade para experimentarem a areia nas roupas, nas mãos, de sentir as folhas caídas no chão, de brincar onde quer que fosse e como fosse (com ressalvas para lugares altos, como subir num banco ou ficar de pé no trenzinho). Eram orientadas a não arrancarem as plantas do solo, mas a observá-las, acariciá-las, tocá-las delicadamente para não machucá-las.
            O jardim era um lugar que eu admirava muito e achava bem confortável para estar com o bebês (mais que o concreto). Além dele, gostava de ficar na caixa de areia também, e brincava com as crianças usando as formas de areia, bolas e bonecos(as) espalhados pela caixa de areia do Convivência II.
            Destas brincadeiras todas, sua extensão era o refeitório, ao menos para as crianças do Convivência I e II, já que o Convivência III começava um disciplinamento alimentar. Os bebês tentavam tocar sua comida com as mãos, não eram impedidos de fazê-lo, as professoras permitiam que as crianças sentissem a comida, fossem nos comedores (cadeirões) ou nas mesinhas da altura das crianças e sentadas em cadeiras (os bebês tinham cadeiras de madeira parecidas com cadeirões). Os bebês, ao interessar-se pelo prato de comida, reviravam-no ou agitavam suas mãos, que ao contato com o prato podia esparramar comida, daí as professoras afastavam o prato da criança.
            Como sempre, a conversa com os bebês eram constantes durante a refeição, fosse para questionar (“Não vai comer a cenoura?”), parabenizar (“Parabéns! Hoje comeu tudo!), orientar (“Agora é hora de comer”) ou corrigir (“Não te dei a colher para jogar no chão, não é pra jogar no chão, agora vai ficar comigo!).
            No Convivência II as crianças eram incentivadas a usar os talheres, experimentavam à vontade o como comer. Eram igualmente orientadas, parabenizadas, questionadas e corrigidas. Não existia forma certa de segurar o talher, elas seguravam como conseguiam, o importante ali era o contato com a experiência de usar o garfo ou a colher.
            Para o Convivência III a conversa acaba. Segundo a nutricionista que acompanha a creche em tempo integral, é importante neste momento dos 4 anos não incentivar a conversa durante a comida para contribuir com a aquisição de hábitos alimentares saudáveis, entre eles, a concentração e a descoberta do próprio ritmo para a comida.
            Pareceu-me um momento de meditação na alimentação, dado o silêncio obrigatório, e, óbvio, as crianças não estavam nem aí para hábitos alimentares. Trocavam olhares, cochichavam, gracejavam, faziam caretas, mímicas e pantomimas. As refeições são as novas sonecas, as novas experiências disciplinadoras. Se antes era ao dormir que o prazer era interditado, será na alimentação que a disciplina se reinventa. Porém, ao contrário dos bebês, em que o princípio de prazer é régio, as crianças maiores, nesse período de desenvolvimento em que as regras passam a ser fundamentais para a descentração do ego, aceitam mais abertamente as orientações de fazer silêncio quando comem. Usam uma tática para se esquivar da regra, algo parecido com fico em silêncio quando estão por perto, se estão longe ou se esquecem de nós, posso falar.
            Algumas crianças do Convivência II transitam das fraldas para o toalete, informam às professoras que querem ir ao banheiro e são acompanhadas e orientadas na higiene pessoal, a qual ocorre de forma individualizada. No Convivência III o banheiro (sem portas ou paredes, como nas turmas da Convivência anterior, apenas está no corredor), além de momentos de necessidade, antecede as refeições, daí todas as crianças se organizam para usar os vasos sanitários, veem os corpos umas das outras e isto é tratado com a maior naturalidade entre elas e pelas professoras. Depois lavam as mãos, e dificilmente precisam de ajuda para pressionar a saboneteira (com sabonete líquido) ou esfregar as mãos, a autonomia vai sendo desenvolvida no banheiro.
            As brincadeiras também prosseguem por ali, principalmente na hora do banho, com as Convivências I e II, quando os brinquedos são levados para o banheiro, pelo toque/sensações, pela conversa ou pelas fotografias dos amigos coladas nas paredes (para o Convivência II), e delas as professoras perguntam às crianças “quem é esse amigo?”, “você sabe quem está aqui?”. As crianças mantém o olhar fixo nas fotografias, balbuciam, sorriem ou prestam atenção em outras coisas, como a água que molha seu corpo e atenção ao próprio corpo.
            Vi o Convivência III brincar poucas vezes no banheiro, e geralmente eram correrias, resultando na intervenção da professora em aparar o momento lúdico dessa relação para prepará-las para comer.

Considerações finais

            Este tom descritivo da narrativa possui fortes influências de As trocinhas do bom retiro, de Florestan Fernandes[6]. Na condição de escolher de forma relativamente livre como eu poderia escrever o relatório, optei por descrever o visto e menos por atribuir um valor equivocado sobre as coisas, por isso a descrição do ambiente, dos brinquedos, das ações, algo que se assemelha muito a um estudo etnográfico com fins para a Sociologia do que para a Pedagogia propriamente dita, daí as perguntas “o que se aprende?”, “como se desenvolve?”, “como interagem entre pares?” estiveram atreladas mais ao “brincar”, nem sempre ao “como brincar?”, mas às possibilidades de brincadeiras e como a escola e seus profissionais se posicionam diante da brincadeira. O brincar, portanto, recobra o sentido pedagógico do relatório.
            As práticas pedagógicas na escola e a preparação dos profissionais me pareceu muito adequada para os rumos da Educação Infantil numa perspectiva nacional, caso fosse possível reproduzir essas experiências. O ambiente é muito rico em recursos e seu planejamento é igualmente invejável, contando com participação da família, estagiários e pesquisadores.
            Há na creche uma preocupação unânime (ao menos com as profissionais com as quais estive) do direito ao brincar, cuja única contradição é a questão da soneca dos bebês e crianças do Convivência I e II. Mesmo a disciplina do silêncio para a alimentação, com todos seus desprazeres, possui fundamentos científicos apresentados pela nutricionista e não visam a disciplina em si, mas a melhoria de hábitos alimentares para proporcionar uma vida nutricional mais qualificada para o sujeito.
            Para finalizar, é importante ressaltar discrepâncias que surgem, na condição de estagiário, entre as experiências pré-profissionais (antes de inserir-se na função de educador) e experiências profissionais (inserido na função de educador). Independentemente dos objetivos iniciais da disciplina Estágio Supervisionado III – Educação Infantil (EP912-A), encontro no estágio a oportunidade de aprender, construir, reformular, questionar, discordar e reavaliar concepções de educação (anteriores ou posteriores ao ofício de pedagogo).
            Igualmente, o estágio não está aí para fabricar profissionais. Encontro no estágio a oportunidade de rever valores, conceitos, ideais e princípios pessoais com valores, conceitos, ideais e princípios científicos, somados à ética profissional exigida do pedagogo, muitas vezes contrário à moral societária (moral da ordem social). Por exemplo: o brincar é ócio criativo para o desvelar de experiências, um sentir-se e sentir o outro da criança, inconciliável com uma educação para o labor, como promete o mundo veloz do capitalismo globalizante: planeta da melancolia, do gozo artificial e da produção desmedida do excesso[7].
            Assim como a Educação Infantil é um espaço para a criatividade e produção de si mesmo da criança pela própria experiência, e simplesmente por viver experiências significativas, o estágio é uma oportunidade de colocar em xeque as próprias vivências (por escrita de memórias; narrativas como esta; discussões sobre nosso próprio gênero, raça, classe e desejos em sala; filmes que dialogam com a realidade da educação e das crianças, para mencionar alguns artifícios utilizados na disciplina) para ilustrar nosso mundo interno e confrontá-lo com o mundo externo, de saber nossas projeções e introjeções[8]. Essas que deslocam a nós pedagogos, educadores, agentes sociais, pessoas que se conectam e se relacionam com outras, com o outro[9].



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[1] BENJAMIN, Walter. O Narrador: Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura [Obras escolhidas. Volume 1] São Paulo: Ed. Brasiliense, 1987.
[2] TARDIF, M.; RAYMOND, D. Saberes, tempo e aprendizagem do trabalho no magistério. Educação & Sociedade, ano XXI, n. 73, Dezembro, 2000.
[3] LARROSA, J. Tecnologias do Eu e Educação. In: O Sujeito da Educação: estudos foucaultianos. SILVA, T. T. (org.). Petrópolis: Vozes. 1994.
[4] DOYLE, Arthur Conan. A Face Amarela. [Coleção Sherlock Holmes] São Paulo: Ed. Rideel, s/d.
[5] JUNG, Carl Gustav. A Energia Psíquica. 14ª Ed. [Obra Completa de C. G. Jung]. Petrópolis: Vozes, 2013.
[6] FLORESTAN, Fernandes. As “Trocinhas” do Bom Retiro. Pro-Posições, v.15, n.1(43) – jan./abr. 2004.
[7] CORBANEZI, Elton. Melancolia, de Lars von Trier: um diagnóstico do presente. Baleia na Rede – Estudos em arte e sociedade, vol. 9, n. 1, 2012.
[8] KLEIN, Melanie. Nosso mundo adulto e suas raízes na infância. In: Inveja e Gratidão e outros trabalhos. 4ª ed. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
[9] As teorias da infância que adentram timidamente este texto (com ênfase na experiência da criança) resultam de sínteses das leituras, discussões e produções realizadas também na disciplina Pedagogia da Educação Infantil (EP139-A), cujo objeto de estudo central é a criança e a infância, passando por autores como Phillipe Ariès, Elisabeth Badinter, Jens Qvortrup, Fúlvia Rosemberg, Tizuko Kishimoto, Florestan Fernandes, entre outros. A noção de infância e criança aqui possuem bases nessa outra disciplina cursada concomitantemente com a disciplina de estágio, cujos objetivos estão nas práticas pedagógicas do professor (neste caso, estagiário), o que justifica, mais uma vez, minha escolha por um método narrativo-descritivo. Outro ponto importante é justificar a pouca descrição da interação entre estagiário-criança pelo recorte que quis dar neste relatório não ao que o estagiário faz, mas o que estagiário vê, o que poderia compor uma próxima parte do relatório: o que estagiário faz com o que vê? Questão partilhada nas aulas presenciais e, pode-se dizer, pano de fundo delas. Não foi, entretanto, o objetivo deste relatório final.

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