1ª atualização: 29/11/2017
Nota introdutória
Nota introdutória
Esta entrevista, iniciada como
parte de um trabalho em grupo para a disciplina Escola e Currículo (código
EP162 no catálogo), oferecida pela Faculdade de Educação da Universidade
Estadual de Campinas, durante a graduação, e cuja transcrição envolve um
projeto de natureza diversa dos interesses da disciplina e do referido
trabalho, está dedicada a tomar conhecimento das memórias de uma panamenha
sobre as escolas que ela frequentava em seu país a partir de seu discurso.
Diante disto, não seguimos todas as normas de transcrição fonética, optando por
uma articulação da ortografia da norma culta com a palavra falada, com suas
variações linguísticas. Por exemplo: na sentença “comecei a enxergar isso mais
tarde, talvez quando eu tava na terceiro série” (trecho da entrevista),
optou-se por escrever tarde e não tardi (como consta no áudio), bem como
manter o diminutivo da palavra estava:
tava. Foram suprimidos alguns truncamentos
e retiramos algumas interrupções discursivas, com a finalidade de tornar o
texto o mais palatável possível, ou, numa sociedade na qual predomina a cultura
escrita, visualmente estético. Retiramos também vícios de linguagem, como hem ou ham, entretanto, sem perder particularidades discursivas da
entrevistada. Por exemplo, mantivemos expressões, que, ao meu ver, em nada
dificultam a leitura do texto e são de consciência da entrevistada, como a
palavra né. As pausas no texto
representam sempre mais de dois segundos, aquelas abaixo de dois segundos não
foram expressadas. As maiúsculas no início das palavras podem significar um
nome (Raquel), um país (Brasil), um
acontecimento/evento histórico (Cortina
de Ferro), uma obra (Pedagogia da
Esperança) ou um lugar (Faculdade de
Americana). O restante das normas
de transcrição foi seguido utilizando-se as convenções destacadas no Projeto de
Cooperação Internacional Brasil-Portugal[1].
Ressaltando,
esta transcrição não atende aos interesses do campo da Linguagem, mas da
Educação e, possivelmente, da História e de outras Ciências Sociais, sendo,
aqui, a pura demonstração de uma memória falada.
Entrevista
As perguntas preparadas para a
entrevista foram: a) Que memórias você
tem dos seus dias de aluna na escola?; b) Vocês tinham alguma rotina na escola?; c) Como eram organizadas as salas de aula?; d) O que vocês aprendiam nas salas de aula?; e) As famílias participavam do processo educativo dentro da escola?; f)
Você sentia que havia espaço para os
alunos desenvolverem sua autonomia?;
g) A escola contribuiu para a formação de
quem é hoje?
A entrevistada é uma mulher
estrangeira do Panamá, 56 anos, ensino superior completo e professora
universitária. O ambiente no qual ocorre a entrevista é a sala da casa da
entrevistada. O documentador-transcritor (eu) senta-se à poltrona, a
entrevistada escolhe um sofá espaçoso. Estamos levemente de perfil um para o
outro. A entrevista começa a ser gravada após consentida pela entrevistada. No começo
decidimos se faríamos a entrevista em espanhol ou em português. Decidimos que
seria em português. O sotaque do espanhol é sempre presente na pronúncia da
entrevistada.
Documentador (D):
geralmente nessas entrevistas, como esta, são importantes [as memórias =
Entrevistada (E): [sim.
D: que a gente [recolhe
=
E: [okey.
D: das pessoas, e,
inclusive, o sentido afetivo que as memórias têm pra as pessoas, e a primeira
pergunta é que memórias você têm dos seus dias de aluna na escola e quais são [as
memórias que você lembra =
D: [sim, [da
minha escola =
A: [da escola?
D: sim, do início
da escola primária?
A: momentos da
escola, em todos os momentos você pode selecionar [livremente =
E: [sim.
D: algum deles.
E: bom, das
memórias que eu tenho da minha escola primária que se chamava Juana Vernaza e era,
é, uma escola pública e inicialmente nós tínhamos horário integral de estudo,
então nós entrávamos de manhã e nós saíamos por volta de quatro horas da tarde
com horário de almoço, já naquela época, década de sessenta, já a gente tinha
um programa de alimentação escolar, existia na escola, e fora isso nós tínhamos
além do curriculum ((referencia ao latim)) básico, normal das disciplinas,
espanhol, geografia, história, né, nós tínhamos disciplinas da parte mais cultural,
né, tínhamos música, tínhamos teatro, e tínhamos uma disciplina que se chamava educação
para o lar, mas a educação para o lar não era uma disciplina destinada para
meninas, era uma disciplina destinada para todo mundo, tanto meninos quanto
meninas, onde tínhamos ((pigarro)) um professor que nos ensinava boas práticas
de alimentação, de higiene, e nos ensinava a fazer o preparo dos alimentos, outro
detalhe que tinha minha escola, que lembro com muito carinho, é que tínhamos
uma horta, nós tínhamos a disciplina agricultura, então tinha uma horta e
tínhamos o professor que nos ensinava a plantar e fazer a colheita, mas não era
qualquer pessoa, era uma pessoa com formação na área, era engenheiro agrícola, era
agrônomo, mas eles tinham que fazer cursos na área de pedagogia para poder
lidar com a gente, então ele plantava com a gente, aprendíamos toda a parte de
métodos, pra plantar, de irrigação, dos nutrientes que a planta precisava, e,
sobretudo, de como plantar sem agredir o meio ambiente, porque isso já era
trabalhado nessa escola, essa escola, ela é atualmente modelo nacional, embora
ela fique numa cidade pequena, em província, ela é uma escola que já ganhou
várias vezes o título de melhor escola do país, e ela é pública, né, e o que
era plantado lá na horta, era trazido para a disciplina educação pro lar e nós
preparávamos para comer, então nós plantávamos e preparávamos nossa comida,
independentemente do gênero, todos éramos obrigados a saber colocar uma mesa, a
saber preparar, como se preparava, quais eram as técnicas que tinham que ser
utilizadas pra gente perder menos nutrientes, isso era nessa disciplina, tá?
naquela época ... aula de música também era uma aula que eu tenho uma memória
excelente, porque fazíamos uma associação entre música e matemática, né, e
outras questões, e a minha professora de música, o nome dela era Raquel, né, e
tínhamos outras disciplinas como arte, educação cívica, né, que isso a gente
tinha desde o primário, a educação cívica era uma disciplina que passava, de
certa maneira, transversalmente por todas as disciplinas, e se faziam muitas
discussões de cidadania, discussões, até de certa maneira, políticas, já com
essa idade que nós estávamos vivendo aquele período onde nós tínhamos a quinta
fronteira, que era o canal ((a entrevistada refere-se ao Canal do Panamá)), que
estava em mãos norte-americanas, e os governantes da época, os intelectuais da
época acharam que o caminho para a gente reconquistar essas terras e o canal
não seriam através de uma guerra porque nós éramos um país muito pequeno, então
isso tinha que ser feito através do ensino, então eu enxergo hoje em dia que
grande parte da dinâmica que existia na escola era justamente para sensibilizar
a gente, para que a gente tivesse essa consciência de qual era nosso papel
nessa luta e que para alcançar um desenvolvimento dentro do país e dentro da
vida das pessoas a educação e a saúde eram parte extremamente importante, onde
que eu vejo isso? na forma como eram trabalhada a agricultura, a forma como era
trabalhada a questão alimentar, a higiene, que tem a ver com saúde, mais as
outras disciplinas que tinham a ver com o contexto sociopolítico que o país
tinha naquele momento, então eu enxergo ... comecei a enxergar isso mais tarde,
talvez quando eu tava na terceiro série, na quarta série eu não tivesse essa
consciência, mas hoje ... hoje em dia, já na minha idade e depois quando eu saí
do país ((a entrevistada refere-se ao Panamá)), que eu vim pro Brasil, o mundo
se abriu no sentido de que eu percebi, embora fosse uma escola pública, eu
tinha sido privilegiada, porque eu não vejo em qualquer escola aqui ter uma
aula de teatro, de música, essas disciplinas são tidas como... não importa,
qualquer coisa ((há um tom de indignação na voz)) ...
D: com certeza (a
entrevistada parecia esperar uma resposta neste momento).
E: depois, quando
eu já tava quase no final do primário, as escolas não eram mais tempo integral,
elas começaram a ser meio período, mas essas atividades de teatro, isso a gente
ia no período da tarde e fazia no período da tarde como um extra, passaram a
ser um extra, mas nessa escola até hoje, essa atividade acontece e uma questão
que, também, eles trabalham muito é a questão do folclore nacional, até porque
nessa cidade se realizam um dos maiores festivais de folclore, no Panamá, tínhamos
uma disciplina que de fato ela era ligada à disciplina de arte, que era uma
disciplina onde todos nós aprendíamos a costurar, a fazer uma barra, a pregar
um botão, meninos e meninas, não existia essa diferença no fogão, no cuidado de
uma casa, eu, nesse momento, não foi feito um muro que separa-se meninos e
meninas quanto atividades e atribuições, nós fazíamos exatamente o mesmo, todos
eles tinham que bordar, tinham que costurar, eu lembro que sim nas reuniões de
pais, todos nós estávamos presentes nas reuniões de pais, né, existiam algumas
reuniões em que os alunos participavam e davam suas opiniões, alguns pais se
manifestaram contra os meninos, sobretudo os homens se manifestaram contra, mas
era algo que nem esse fato levou a suspender esse tipo de atividade porque as
próprias crianças achavam bom, era um momento em que a gente conversava,
confraternizava e a gente ficava focado, porque é difícil você deixar uma
criança atenta a uma atividade e eu via que essas atividades da horta, as
atividade de bordar, costurar e de educação para o lar, que era a parte de
culinária. Todo mundo ficava focado e todos os grupos queriam fazer o seu
melhor, né, porque era algo que você fazia, de certa maneira, pra compartilhar,
então essas são as memórias que eu tenho do meu primário, e claro, a
matemática, essas outras disciplinas, aconteciam do jeito normal e mesmo sendo
primário eu lembro, me lembro muito bem, assim, até hoje eu guardo isso, que já
na sexta série a gente discutia, por exemplo, países mais distante, em conflito
naquela época, a gente discutia sobre a cortina de ferro, a gente discutia sobre
o conflito Estados Unidos Rússia , o muro de Berlim, a consequências da segunda
guerra mundial, todos os muros que se estabeleceram, que existiam por conta de
diferenças ideológicas, a guerra de Biafra, do Vietnã, eu devia ter o que? onze
anos, doze anos, não mais que isso, mas a gente já discutia, penso que essa
formação política, não sei se chamá-la de prematura, talvez isso acontecia pelo
momento político que a gente vivia e pela necessidade que a gente tinha de
resgatar e reaver um território nosso que era o canal, que a gente conseguiu
depois, no trinta e um de dezembro de mil novecentos e noventa e um, ter
revertido para o governo panamenho, porque a assinatura dos tratados foi em mil
e novecentos e setenta e seis, de setenta e seis até mil e novecentos ... perdão,
mil e novecentos e noventa e nove, trinta e um de dezembro de mil e novecentos
e noventa e nove, cada ano uma base militar das que existiam no canal iam sendo
revertida para o governo panamenho, até que o canal ficou todo administrado por
profissionais panamenhos, então essas são as minhas memórias da escola
primária.
A: você antecipou
muito algumas perguntas, o que eu achei muito bom, e eu vou repassar algumas
delas, e você também falou muito do que você tinha não só na escola, mas de
coisas que aconteciam fora da escola, como o cenário político e que era importante para a forma como
vocês construíam a escola.
D: sim.
A: você falou
muito de disciplinas que não são tão regulares, como a disciplina de teatro ou
disciplinas mais esquecidas, como as artes, mas tinha alguma rotina para
funcionar a escola?
D: sim, a gente
começava às sete horas da manhã, a gente dava uma paradinha ao meio dia, a
gente almoçava. A gente retomava mais ou menos por volta de uma hora e meia e a
gente ía até umas quatro horas e meia da tarde, isso até mais ou menos minha
quarta, quinta série, já a partir da quinta série a gente passou a ter o tal de
meio período, onde a gente não ficava direto na escola, senão que a gente ía
até meio dia, ía pra casa e por volta de duas horas da tarde ou mais na parte da
tardinha, três horas, quatro horas da tarde, a gente voltava pra escola e ía
fazer, por exemplo, teatro, ou ía fazer uma aula de música, hoje em dia, esse
programa que iniciou na década de... sessenta, né? foi na década de sessenta, ele
depois acabou dando origem a uma escola de música que existe na cidade, onde toda
criança que queira fazer música ela pode fazer música de forma gratuita, então
você pode ter uma formação musical se você quiser, mas essa escola nasceu
dentro da escola Juana Vernaza, hoje em dia elas não funcionam no mesmo local,
mas essa escola de música teve origem dentro dessa escola, e aí ela funciona
como qualquer outra escola, uma escola de música, todo mundo tem direito a
fazer, é só você querer, não existe concurso, embora ela seja como um
conservatório, todo mundo têm direito, vai ((exclamação)), se você tem aptidão
ou não tem eles acabam desenvolvendo uma habilidade e uma competência dentro da
música pra você se dar bem, e se não quer você começa e larga, mas é uma
oportunidade que todas as crianças da cidade têm.
D: e as salas de
aula? como que elas eram?
E: nós tínhamos,
por exemplo, as salas normais ... (a entrevistada compreende que o uso da
palavra normal pode ser mal interpretado, por isso explica-se) que eu falo do
formal, do convencional, tradicional que são aquelas carteiras uma atrás da
outra, onde o professor fica na frente fazendo sua aula expositiva, claro que
ele pede opinião da turma, fica fazendo perguntas (( a partir daqui, faz como
se imita-se seus professores)), o que vocês acham disso? ((encerra a
imitação)), pede sua opinião, e existiam outras aulas onde a gente fazia rodas,
eram rodas de conversa, e a de agricultura era uma aula livre no campo, porque
era numa horta, eram construídos bancos rústicos onde o professor tinha tipo um
flip sharp, né, porque na época não tinha projetor, era um FLIP SHARP, que ele
colocava as plantinhas, colocava as coisas dele e preparava as lâminas dele e
ia dando essa aula com a gente já no campo, claro que quando chovia a dinâmica
era outra, ele nos levava para outro local, mas de modo geral era no campo e
ele ia explicando como íamos plantar, porque colocávamos tal nutriente, porque
que a gente fazia aqueles sucos, e de certa maneira existia uma relação dessa
disciplina com conceitos matemáticos, porque a gente trabalha com concentração
de nutrientes, com cálculos, depois a gente ia fazer o trabalho prático: usar
enxada, aguar a planta, quando plantávamos depois a gente tinha o segmento da
planta que ia crescendo, vinha a colheita, tinha formas de fazer a colheita pra
não ferir o fruto, pra não causar um dano mecânico, então tinha toda uma dinâmica,
mas a maior parte no campo, quando chovia ele nos levava pra um galpão que
tinha, que era onde guardavam as ferramentas, mas tinha um espaço pra ele
sentar com a gente e trabalhar com os alunos, mas aí não mais um espaço
convencional que você na sala de aula, um banquinho atrás do outro, e no
educação para o lar era um laboratório que tinha, lógico, as pias, os fogões,
as facas, todas as coisas de cozinha e tinha um salão que era como se fosse um
refeitório, com mesas para quatro, então nós tínhamos grupos de quatro pessoas
que nos dedicávamos nas preparações, se dividia a sala com grupos com quatro
integrantes, então cada um tinha uma mesinha que sentava pra discutir com os
colegas, e a professora ia mediando essas discussões porque nós íamos discutir
o cardápio, o que íamos fazer, como íamos fazer, porque íamos fazer, porque
tinha que ser a fogo brando, porque não podia ser, porque não podia ultrapassar
de uma hora preparação, ou trinta minutos de preparação, tudo isso a professora
ia conversando com a gente, não sei, são coisas que hoje em dia se colocam
como... eu vejo coisas como trabalhos de ecologia nas escolas como se fossem
coisas novíssimas, e eu fico muito feliz que eu tive a experiência de viver
isso, foi uma experiência muito, muito bacana, foi uma dinâmica completamente
diferente do que você estabelece no ensino convencional, e na sala de aula
normal, por volta da quinta, sexta série, bom, já começa, na metade da quarta
série, nós tínhamos muita apresentação de trabalho, onde o professor deixava de
desempenhar o papel principal lá na frente, nos era dado um tema, a gente
desenvolvia esse tema com orientação do professor e depois a gente ia lá na
frente e fazia como se fosse um seminário, claro que dentro das limitações que
podia trazer a nossa idade porque éramos muito jovens, né? mas onde você trazia
o tema, acabava expondo, e no final fazia suas considerações da sua opinião
pessoal sobre o assunto, então era isso que a gente tinha em termos de sala de
aula, tivemos sim coisas muito convencionais e tivemos coisas que saíam da ...
D: era isso que
vocês aprendiam.
E: sim.
D: okey, as
famílias, elas participavam do ambiente da escola?
E: sim, talvez
porque era uma cidade pequena, nós tínhamos muito o que nós chamamos de VELADAS
((palavra em espanhol que significa sarau)), as veladas eram reuniões,
sobretudo dos pais, fazíamos apresentações de teatro aos finais de semana para
a comunidade, os pais iam, e como eu disse, a reunião de pais tinha um momento
que era reunião de pais com mestres, mas tinha um momento que era reunião de
pais, mestres e alunos, esse momento existia na escola.
D: certo, além da
entrada das famílias na escola, que ajuda muito a construir o espaço da escola,
você acha que os alunos desenvolviam autonomia por eles terem espaço para
decidir na escola?
E: acredito que
essas reuniões onde a gente participava junto com os pais sim, porque muitas
coisas que às vezes os pais achavam ou consideravam que não eram apropriadas,
como por exemplo, as aulas de costura para meninos ou culinária para meninos,
que muitos pais consideraram ser inadequadas, os estudantes se manifestaram
contra e manifestaram que eles queriam continuar tendo esse tipo de aula, até
porque eram argumentos um tanto quanto, pra nossa época, primitivos, se isso
pode te deixar afeminado ou não, coisas desse tipo que na nossa cabeça nós não
víamos dessa perspectiva, a gente tinha opinião, embora nós não tivéssemos
internet, embora não tivéssemos uma série de coisas nós tínhamos opinião, AH, outro
detalhe interessante que a cidade tinha é que tinha uma biblioteca e tinha uma
interação muito bacana entre a biblioteca da cidade e a escola, então a gente
tinha muito trabalho de pesquisa, como não tinha internet, os trabalhos de
pesquisa eram feitos na biblioteca da cidade, e existia uma relação muito
próxima, a gente via isso pelas atividades que se realizavam a nos dias de
reuniões de pais, porque a diretora da biblioteca ela vinha participar das
reuniões da escola. talvez pela cidade ser pequena, essa dinâmica era possível,
ou eu não sei se é pela vontade e pela visão mais ampla que eles tinham, ou a
preocupação mais ampla que eles tinham com a formação da gente.
D: e a última
pergunta, você sente que a escola contribuiu para formar quem você é hoje, ou
contribuiu em alguma medida para sua formação?
E: Ah, eu não
tenho dúvida que muito do que eu sou tem a ver com a escola que eu fiz, com
todos os grupos nos quais eu me engajei, porque eu estive em TODOS, eu fiz
teatro, eu fiz dança, eu era do grupo de dança, o grupo de teatro nos levava
para um concurso infantil nacional de teatro, nossa peça ganhou, a peça foi
escrita pela gente, a gente escrevia as peças, isso criou um diferencial no que
eu sou, na forma de me comunicar, de agir na vida, de enfrentar algumas coisas
na vida, eu tenho certeza, até a visão política que eu tenho do mundo a escola
primária teve uma grande influência, depois eu passei por outra escola pública
que trabalhou o que seria correspondente aqui à sétima, oitava e nona séries,
era uma escola maior numa cidade maior, mas que tinha banda de música, tinha
teatro, tinha grupo folclórico, conjunto típico, tive professores, por exemplo,
de geografia e história que foram muito desafiadores, essas são as disciplinas
que eu mais me lembro, embora tivesse uma excelente professora de biologia, mas
especialmente esse professores de história e geografia que desafiavam a gente
das mais variadas formas, nos colocavam pesquisas de campo extremamente
desafiadoras, por isso eu coloco geografia e história dentro desse contexto, e
até volto a repetir, parece que toda a rede de ensino no país estavam voltadas
para essa questão de ((interpreta o espírito nacionalista panamenho)) somos
panamenhos precisamos ter nosso canal de volta, então vocês tem que ser
melhores.
D: sim.
E: e é com educação que vocês vão conseguir
((fim da interpretação)), isso tinha, já nesse momento eu tinha uma disciplina
que se chamava relações do Panamá com o Estados Unidos, e aí vinha o debate de
como o canal passou para mãos norte-americanas, a discussão de todos os
tratados, então era uma coisa que era muito trabalhada, principalmente em
disciplinas como história, geografia e essa disciplina relações do Panamá com o
Estados Unidos, e isso de certa maneira fazia com que você tivesse uma
discussão de política internacional muito grande, e essa era pública, já a
outra, onde eu fiz meu colegial, o que seria o ensino médio, era uma escola de
fé judaica, tempo integral, entrada sete horas da manhã e saía às quatro horas
e meia e todas as atividades eram feitas dentro da escola, fazíamos catorze
disciplinas por semestre, isso incluía física e disciplinas tradicionais,
incluía relações do Panamá com o Estados Unidos, lá o modelo era um pouco diferente,
era uma escola particular, de manhã tinham aulas expositivas, mas à tarde quem
dava aula era o aluno, era diferente, não era o professor, então à tarde com
certeza nós íamos ter que levar um assunto, existia aula de religião para os
alunos de fé judaica se eles quisessem, mas nós tínhamos aulas de ecumenismo,
onde cada um levava uma passagem da religião que ele praticava, da fé que ele
praticava, e se não praticava falava de qualquer outra coisa, você podia conhecer
a torá, o alcorão, você conhecia alguns conceitos sobre o hinduísmo, o budismo,
porque tinha gente de todas as religiões compartilhando, e era diferente porque
éramos somente vinte alunos por sala de aula, não mais, éramos poucos, e a
escola ficava numa área de reserva ecológica MUITO BONITA, e ... eu sinto que
tudo, assim, educacionalmente muito cuidado nos mínimos detalhes talvez porque
éramos poucos por sala, poucos por sala ... e a mesma dinâmica, assim, a
reunião de pais e mestres, tinha o grêmio de alunos ... e uma coisa que eu
lembro muito, que o pai do dono da escola, ele nos esperava todo dia, porque
nós tínhamos ônibus da própria escola que nos recolhia em casa e nos levava pra
a escola, e esse senhor nos esperava todo dia, nos recebia com um abraço e ele
tinha tatuado uns números no braço dele, aí ... um dia eu perguntei Ô PORQUE
VOCÊ TEM ESSE NÚMERO TATUADO? ele me falou ((agora interpretando o senhor com
voz minguada)) eu tive num campo de concentração ((fim da interpretação))... e
na hora do almoço nos tínhamos roda de conversa às vezes com ele, e ele
começava a contar sobre as tragédias da segunda guerra mundial que ele viveu, a
família que ele perdeu, mas que ele emigrou para o Panamá e ele conseguiu
construir sua família, e o filho dele que fez essa escola, que se chama e
existe até hoje e se chama Instituto Pedagógico, então acho que a palavra diz
tudo né?
D: diz muita
coisa.
E: ISSO, então
tinha coisas assim que eu ... comecei a entender muita coisa e gostei né?
porque ... vi que eles passaram por uma tragédia uma segunda guerra mundial,
mas foi um ponto, pela experiência que ele relatava pra gente como aluno, isso
não criou mágoas nele nem a vontade de revanche, mas sim a vontade de construir
um mundo melhor através da fundação de uma escola como o Instituto Pedagógico
para que uma nova guerra não acontecesse, foi essa a mensagem que ele deixou em
mim.
D: muito bonita.
E: aham
((risos)).
D: ((risos)) ...
tem algumas coisas que eu não perguntei, mas eu vou pedir pra você se
identificar, no caso eu não perguntei sua idade, eu não ... eu não perguntei
sua profissão, então eu vou deixar pra você dizer mais ou menos ... pra você
dizer quem você é [pra eu =
E: sí ((sim em
espanhol)).
D: não falar
nenhuma besteira, quem você NÂO É.
E: Eu sou, meu
nome é LF. ((a entrevistada pronuncia seu nome completo, suprimido nesta
entrevista)), eu sou panamenha, tenho cinquenta e seis anos de idade, sou
professora universitária, tenho duas formações, a minha primeira formação foi
em tecnologia de alimentos na Universidade Federal de Viçosa, minha segunda
formação foi em nutrição, também na Universidade Federal de Viçosa, fiz
mestrado e concluí o mestrado e março de mil e novecentos e noventa e um, um
mestrado em ciência de alimentos na Universidade Federal de Lavras e concluí
meu doutorado em ciências da nutrição na Universidade Estadual de Campinas,
unicamp, em mil e novecentos e noventa e sete (esta identificação na
apresentação de um currículo pode parecer exagerada para algumas pessoas,
porém, justifica-se ao saber que é um dos maiores orgulhos e autorrealizações
da entrevistada, reafirmado constantemente por colegas de trabalho e homenagens
prestadas por alunos) , atualmente eu sou professora universitária de uma
universidade particular, coordeno curso de nutrição, já fazem quinze anos, mas
como coordenadora de curso da área de nutrição estou já há vinte anos, esse ano
completei vinte anos de experiência e trabalho muito com a dinâmica ((toque de
celular ao fundo)) utilizando como ferramenta metodológica programas de
extensão para a formação do aluno, talvez seja influência um pouco ((risos)) da
formação que eu tive também, então os meus alunos vão muito ao campo, muito em
campo e justamente a comunidade, a convivência com a comunidade é que se torna
de certa maneira a sala de aula deles, essa interatividade, esse olho no olho
... com a comunidade que acaba mudando certos preceitos que se estabeleceram a
nível educacional no Brasil ... e embora de uma particular eu trabalho com
alunos que às vezes tem muito problema, que são analfabetos funcionais, literalmente,
mas eles estão conseguindo ser nota quatro de enade ((o Exame Nacional de
Desempenho de Estudantes)), então isso pra mim é uma grande recompensa ... e
sou mãe de dois rapazes, e mãe de uma menina, então ... essa sou, L.
((pronunciou o primeiro nome)).
D: depois eu vou
redigir tudo isso e eu vou ... eu só vou ocultar seu nome, por ...
E: sí.
D: por questão de
[ética =
E: sí.
D: e depois eu
vou mandar pra você, inclusive.
E: perfeito.
D: posso até
mandar o trabalho em que a gente vai colocar porque a gente tá falando de Paulo
Freire na disciplina (refiro-me aqui, à disciplina Escola e Currículo, de
código EP162, na Faculdade de Educação da UNICAMP, na qual o trabalho citado,
em grupo, foi apresentado) ...
E: ah, [perfeito =
D: e é legal porque
a gente pega ... a gente, claro, fez algumas divisões no meio das tarefas e eu
li bastante a Pedagogia da Esperança pra fazer o [trabalho =
E: [então ((ela
se detém e não continua a fala))
D: e é muito
legal, na Pedagogia da Esperança ele fala de ... de pessoas que tão em
situações muito difíceis e como que a vida delas é dura porque existe uma certa
desigualdade e porque elas não são formadas politicamente, daí elas não podem
recorrer aos direitos delas porque elas nem sabem que esses direitos [existem =
E: [mas é que
((ela se detém novamente))
D: ou por
conformidade.
E: mas de certa
maneira é isso que a gente faz, né? trabalha com a pedagogia a esperança
(acredito que ela não tenha se referido ao livro Pedagogia da Esperança, mas a
uma pedagogia da esperança) no sentido de que eu levo os alunos para escolas,
eles estão nas escolas do município de Nova Odessa, justamente esse olho no
olho porque você precisa empoderar a comunidade, mas para empoderar a
comunidade antes você precisa fazer um empoderamento do aluno ... e esse aluno,
ele vem dessa comunidade, eles vêm dessa comunidade, e os lugares onde a gente
têm esses programas de extensão e que eu levo os programas de extensão, são os
lugares de onde mais alunos vem pra faculdade *** ((nome da faculdade onde ela trabalha)), que é Nova Odessa, Santa Bárbara ((diminutivo de Santa Bárbara
D’Oeste)), né ... a gente acaba devolvendo de certa forma ... essa dádiva deles
darem um aluno pra gente formar ... e é isso que a gente faz na nossa rotina.
D: brigado.
E: de na::da.
D: vou desligar [aqui
o gravador =
E: po::de sim.
D: e a gente
[continua a conversa =
E: pode ((voz
baixa))
D: sem o gravador
... nossa, tem quarenta minutos.
E: espero que
tenha sido bom.
D: foi sim ((o
gravador é desligado)).
[1]
Disponível em: <
http://www.concordancia.letras.ufrj.br/index.php?option=com_content&view=article&id=52&Itemid=58
>. Acesso em: 22/08/2017.
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