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terça-feira, 22 de agosto de 2017

Entrevista: memórias dos tempos de escola no Panamá contada por uma professora

1ª atualização: 29/11/2017

Nota introdutória

            Esta entrevista, iniciada como parte de um trabalho em grupo para a disciplina Escola e Currículo (código EP162 no catálogo), oferecida pela Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas, durante a graduação, e cuja transcrição envolve um projeto de natureza diversa dos interesses da disciplina e do referido trabalho, está dedicada a tomar conhecimento das memórias de uma panamenha sobre as escolas que ela frequentava em seu país a partir de seu discurso. Diante disto, não seguimos todas as normas de transcrição fonética, optando por uma articulação da ortografia da norma culta com a palavra falada, com suas variações linguísticas. Por exemplo: na sentença “comecei a enxergar isso mais tarde, talvez quando eu tava na terceiro série” (trecho da entrevista), optou-se por escrever tarde e não tardi (como consta no áudio), bem como manter o diminutivo da palavra estava: tava. Foram suprimidos alguns truncamentos e retiramos algumas interrupções discursivas, com a finalidade de tornar o texto o mais palatável possível, ou, numa sociedade na qual predomina a cultura escrita, visualmente estético. Retiramos também vícios de linguagem, como hem ou ham, entretanto, sem perder particularidades discursivas da entrevistada. Por exemplo, mantivemos expressões, que, ao meu ver, em nada dificultam a leitura do texto e são de consciência da entrevistada, como a palavra . As pausas no texto representam sempre mais de dois segundos, aquelas abaixo de dois segundos não foram expressadas. As maiúsculas no início das palavras podem significar um nome (Raquel), um país (Brasil), um acontecimento/evento histórico (Cortina de Ferro), uma obra (Pedagogia da Esperança) ou um lugar (Faculdade de Americana). O restante das normas de transcrição foi seguido utilizando-se as convenções destacadas no Projeto de Cooperação Internacional Brasil-Portugal[1].
            Ressaltando, esta transcrição não atende aos interesses do campo da Linguagem, mas da Educação e, possivelmente, da História e de outras Ciências Sociais, sendo, aqui, a pura demonstração de uma memória falada.

Entrevista

            As perguntas preparadas para a entrevista foram: a) Que memórias você tem dos seus dias de aluna na escola?; b) Vocês tinham alguma rotina na escola?; c) Como eram organizadas as salas de aula?; d) O que vocês aprendiam nas salas de aula?; e) As famílias participavam do processo educativo dentro da escola?; f) Você sentia que havia espaço para os alunos  desenvolverem sua autonomia?; g) A escola contribuiu para a formação de quem é hoje?
            A entrevistada é uma mulher estrangeira do Panamá, 56 anos, ensino superior completo e professora universitária. O ambiente no qual ocorre a entrevista é a sala da casa da entrevistada. O documentador-transcritor (eu) senta-se à poltrona, a entrevistada escolhe um sofá espaçoso. Estamos levemente de perfil um para o outro. A entrevista começa a ser gravada após consentida pela entrevistada. No começo decidimos se faríamos a entrevista em espanhol ou em português. Decidimos que seria em português. O sotaque do espanhol é sempre presente na pronúncia da entrevistada.

Documentador (D): geralmente nessas entrevistas, como esta, são importantes [as memórias =

Entrevistada (E): [sim.

D: que a gente [recolhe =

E: [okey.

D: das pessoas, e, inclusive, o sentido afetivo que as memórias têm pra as pessoas, e a primeira pergunta é que memórias você têm dos seus dias de aluna na escola e quais são [as memórias que você lembra =

D: [sim, [da minha escola =

A: [da escola?

D: sim, do início da escola primária?

A: momentos da escola, em todos os momentos você pode selecionar [livremente =

E: [sim.

D: algum deles.

E: bom, das memórias que eu tenho da minha escola primária que se chamava Juana Vernaza e era, é, uma escola pública e inicialmente nós tínhamos horário integral de estudo, então nós entrávamos de manhã e nós saíamos por volta de quatro horas da tarde com horário de almoço, já naquela época, década de sessenta, já a gente tinha um programa de alimentação escolar, existia na escola, e fora isso nós tínhamos além do curriculum ((referencia ao latim)) básico, normal das disciplinas, espanhol, geografia, história, né, nós tínhamos disciplinas da parte mais cultural, né, tínhamos música, tínhamos teatro, e tínhamos uma disciplina que se chamava educação para o lar, mas a educação para o lar não era uma disciplina destinada para meninas, era uma disciplina destinada para todo mundo, tanto meninos quanto meninas, onde tínhamos ((pigarro)) um professor que nos ensinava boas práticas de alimentação, de higiene, e nos ensinava a fazer o preparo dos alimentos, outro detalhe que tinha minha escola, que lembro com muito carinho, é que tínhamos uma horta, nós tínhamos a disciplina agricultura, então tinha uma horta e tínhamos o professor que nos ensinava a plantar e fazer a colheita, mas não era qualquer pessoa, era uma pessoa com formação na área, era engenheiro agrícola, era agrônomo, mas eles tinham que fazer cursos na área de pedagogia para poder lidar com a gente, então ele plantava com a gente, aprendíamos toda a parte de métodos, pra plantar, de irrigação, dos nutrientes que a planta precisava, e, sobretudo, de como plantar sem agredir o meio ambiente, porque isso já era trabalhado nessa escola, essa escola, ela é atualmente modelo nacional, embora ela fique numa cidade pequena, em província, ela é uma escola que já ganhou várias vezes o título de melhor escola do país, e ela é pública, né, e o que era plantado lá na horta, era trazido para a disciplina educação pro lar e nós preparávamos para comer, então nós plantávamos e preparávamos nossa comida, independentemente do gênero, todos éramos obrigados a saber colocar uma mesa, a saber preparar, como se preparava, quais eram as técnicas que tinham que ser utilizadas pra gente perder menos nutrientes, isso era nessa disciplina, tá? naquela época ... aula de música também era uma aula que eu tenho uma memória excelente, porque fazíamos uma associação entre música e matemática, né, e outras questões, e a minha professora de música, o nome dela era Raquel, né, e tínhamos outras disciplinas como arte, educação cívica, né, que isso a gente tinha desde o primário, a educação cívica era uma disciplina que passava, de certa maneira, transversalmente por todas as disciplinas, e se faziam muitas discussões de cidadania, discussões, até de certa maneira, políticas, já com essa idade que nós estávamos vivendo aquele período onde nós tínhamos a quinta fronteira, que era o canal ((a entrevistada refere-se ao Canal do Panamá)), que estava em mãos norte-americanas, e os governantes da época, os intelectuais da época acharam que o caminho para a gente reconquistar essas terras e o canal não seriam através de uma guerra porque nós éramos um país muito pequeno, então isso tinha que ser feito através do ensino, então eu enxergo hoje em dia que grande parte da dinâmica que existia na escola era justamente para sensibilizar a gente, para que a gente tivesse essa consciência de qual era nosso papel nessa luta e que para alcançar um desenvolvimento dentro do país e dentro da vida das pessoas a educação e a saúde eram parte extremamente importante, onde que eu vejo isso? na forma como eram trabalhada a agricultura, a forma como era trabalhada a questão alimentar, a higiene, que tem a ver com saúde, mais as outras disciplinas que tinham a ver com o contexto sociopolítico que o país tinha naquele momento, então eu enxergo ... comecei a enxergar isso mais tarde, talvez quando eu tava na terceiro série, na quarta série eu não tivesse essa consciência, mas hoje ... hoje em dia, já na minha idade e depois quando eu saí do país ((a entrevistada refere-se ao Panamá)), que eu vim pro Brasil, o mundo se abriu no sentido de que eu percebi, embora fosse uma escola pública, eu tinha sido privilegiada, porque eu não vejo em qualquer escola aqui ter uma aula de teatro, de música, essas disciplinas são tidas como... não importa, qualquer coisa ((há um tom de indignação na voz)) ...

D: com certeza (a entrevistada parecia esperar uma resposta neste momento).

E: depois, quando eu já tava quase no final do primário, as escolas não eram mais tempo integral, elas começaram a ser meio período, mas essas atividades de teatro, isso a gente ia no período da tarde e fazia no período da tarde como um extra, passaram a ser um extra, mas nessa escola até hoje, essa atividade acontece e uma questão que, também, eles trabalham muito é a questão do folclore nacional, até porque nessa cidade se realizam um dos maiores festivais de folclore, no Panamá, tínhamos uma disciplina que de fato ela era ligada à disciplina de arte, que era uma disciplina onde todos nós aprendíamos a costurar, a fazer uma barra, a pregar um botão, meninos e meninas, não existia essa diferença no fogão, no cuidado de uma casa, eu, nesse momento, não foi feito um muro que separa-se meninos e meninas quanto atividades e atribuições, nós fazíamos exatamente o mesmo, todos eles tinham que bordar, tinham que costurar, eu lembro que sim nas reuniões de pais, todos nós estávamos presentes nas reuniões de pais, né, existiam algumas reuniões em que os alunos participavam e davam suas opiniões, alguns pais se manifestaram contra os meninos, sobretudo os homens se manifestaram contra, mas era algo que nem esse fato levou a suspender esse tipo de atividade porque as próprias crianças achavam bom, era um momento em que a gente conversava, confraternizava e a gente ficava focado, porque é difícil você deixar uma criança atenta a uma atividade e eu via que essas atividades da horta, as atividade de bordar, costurar e de educação para o lar, que era a parte de culinária. Todo mundo ficava focado e todos os grupos queriam fazer o seu melhor, né, porque era algo que você fazia, de certa maneira, pra compartilhar, então essas são as memórias que eu tenho do meu primário, e claro, a matemática, essas outras disciplinas, aconteciam do jeito normal e mesmo sendo primário eu lembro, me lembro muito bem, assim, até hoje eu guardo isso, que já na sexta série a gente discutia, por exemplo, países mais distante, em conflito naquela época, a gente discutia sobre a cortina de ferro, a gente discutia sobre o conflito Estados Unidos Rússia , o muro de Berlim, a consequências da segunda guerra mundial, todos os muros que se estabeleceram, que existiam por conta de diferenças ideológicas, a guerra de Biafra, do Vietnã, eu devia ter o que? onze anos, doze anos, não mais que isso, mas a gente já discutia, penso que essa formação política, não sei se chamá-la de prematura, talvez isso acontecia pelo momento político que a gente vivia e pela necessidade que a gente tinha de resgatar e reaver um território nosso que era o canal, que a gente conseguiu depois, no trinta e um de dezembro de mil novecentos e noventa e um, ter revertido para o governo panamenho, porque a assinatura dos tratados foi em mil e novecentos e setenta e seis, de setenta e seis até mil e novecentos ... perdão, mil e novecentos e noventa e nove, trinta e um de dezembro de mil e novecentos e noventa e nove, cada ano uma base militar das que existiam no canal iam sendo revertida para o governo panamenho, até que o canal ficou todo administrado por profissionais panamenhos, então essas são as minhas memórias da escola primária.

A: você antecipou muito algumas perguntas, o que eu achei muito bom, e eu vou repassar algumas delas, e você também falou muito do que você tinha não só na escola, mas de coisas que aconteciam fora da escola, como o cenário político e que era importante para a forma como vocês construíam a escola.

D: sim.

A: você falou muito de disciplinas que não são tão regulares, como a disciplina de teatro ou disciplinas mais esquecidas, como as artes, mas tinha alguma rotina para funcionar a escola?

D: sim, a gente começava às sete horas da manhã, a gente dava uma paradinha ao meio dia, a gente almoçava. A gente retomava mais ou menos por volta de uma hora e meia e a gente ía até umas quatro horas e meia da tarde, isso até mais ou menos minha quarta, quinta série, já a partir da quinta série a gente passou a ter o tal de meio período, onde a gente não ficava direto na escola, senão que a gente ía até meio dia, ía pra casa e por volta de duas horas da tarde ou mais na parte da tardinha, três horas, quatro horas da tarde, a gente voltava pra escola e ía fazer, por exemplo, teatro, ou ía fazer uma aula de música, hoje em dia, esse programa que iniciou na década de... sessenta, né? foi na década de sessenta, ele depois acabou dando origem a uma escola de música que existe na cidade, onde toda criança que queira fazer música ela pode fazer música de forma gratuita, então você pode ter uma formação musical se você quiser, mas essa escola nasceu dentro da escola Juana Vernaza, hoje em dia elas não funcionam no mesmo local, mas essa escola de música teve origem dentro dessa escola, e aí ela funciona como qualquer outra escola, uma escola de música, todo mundo tem direito a fazer, é só você querer, não existe concurso, embora ela seja como um conservatório, todo mundo têm direito, vai ((exclamação)), se você tem aptidão ou não tem eles acabam desenvolvendo uma habilidade e uma competência dentro da música pra você se dar bem, e se não quer você começa e larga, mas é uma oportunidade que todas as crianças da cidade têm.

D: e as salas de aula? como que elas eram?

E: nós tínhamos, por exemplo, as salas normais ... (a entrevistada compreende que o uso da palavra normal pode ser mal interpretado, por isso explica-se) que eu falo do formal, do convencional, tradicional que são aquelas carteiras uma atrás da outra, onde o professor fica na frente fazendo sua aula expositiva, claro que ele pede opinião da turma, fica fazendo perguntas (( a partir daqui, faz como se imita-se seus professores)), o que vocês acham disso? ((encerra a imitação)), pede sua opinião, e existiam outras aulas onde a gente fazia rodas, eram rodas de conversa, e a de agricultura era uma aula livre no campo, porque era numa horta, eram construídos bancos rústicos onde o professor tinha tipo um flip sharp, né, porque na época não tinha projetor, era um FLIP SHARP, que ele colocava as plantinhas, colocava as coisas dele e preparava as lâminas dele e ia dando essa aula com a gente já no campo, claro que quando chovia a dinâmica era outra, ele nos levava para outro local, mas de modo geral era no campo e ele ia explicando como íamos plantar, porque colocávamos tal nutriente, porque que a gente fazia aqueles sucos, e de certa maneira existia uma relação dessa disciplina com conceitos matemáticos, porque a gente trabalha com concentração de nutrientes, com cálculos, depois a gente ia fazer o trabalho prático: usar enxada, aguar a planta, quando plantávamos depois a gente tinha o segmento da planta que ia crescendo, vinha a colheita, tinha formas de fazer a colheita pra não ferir o fruto, pra não causar um dano mecânico, então tinha toda uma dinâmica, mas a maior parte no campo, quando chovia ele nos levava pra um galpão que tinha, que era onde guardavam as ferramentas, mas tinha um espaço pra ele sentar com a gente e trabalhar com os alunos, mas aí não mais um espaço convencional que você na sala de aula, um banquinho atrás do outro, e no educação para o lar era um laboratório que tinha, lógico, as pias, os fogões, as facas, todas as coisas de cozinha e tinha um salão que era como se fosse um refeitório, com mesas para quatro, então nós tínhamos grupos de quatro pessoas que nos dedicávamos nas preparações, se dividia a sala com grupos com quatro integrantes, então cada um tinha uma mesinha que sentava pra discutir com os colegas, e a professora ia mediando essas discussões porque nós íamos discutir o cardápio, o que íamos fazer, como íamos fazer, porque íamos fazer, porque tinha que ser a fogo brando, porque não podia ser, porque não podia ultrapassar de uma hora preparação, ou trinta minutos de preparação, tudo isso a professora ia conversando com a gente, não sei, são coisas que hoje em dia se colocam como... eu vejo coisas como trabalhos de ecologia nas escolas como se fossem coisas novíssimas, e eu fico muito feliz que eu tive a experiência de viver isso, foi uma experiência muito, muito bacana, foi uma dinâmica completamente diferente do que você estabelece no ensino convencional, e na sala de aula normal, por volta da quinta, sexta série, bom, já começa, na metade da quarta série, nós tínhamos muita apresentação de trabalho, onde o professor deixava de desempenhar o papel principal lá na frente, nos era dado um tema, a gente desenvolvia esse tema com orientação do professor e depois a gente ia lá na frente e fazia como se fosse um seminário, claro que dentro das limitações que podia trazer a nossa idade porque éramos muito jovens, né? mas onde você trazia o tema, acabava expondo, e no final fazia suas considerações da sua opinião pessoal sobre o assunto, então era isso que a gente tinha em termos de sala de aula, tivemos sim coisas muito convencionais e tivemos coisas que saíam da ...

D: era isso que vocês aprendiam.

E: sim.

D: okey, as famílias, elas participavam do ambiente da escola?

E: sim, talvez porque era uma cidade pequena, nós tínhamos muito o que nós chamamos de VELADAS ((palavra em espanhol que significa sarau)), as veladas eram reuniões, sobretudo dos pais, fazíamos apresentações de teatro aos finais de semana para a comunidade, os pais iam, e como eu disse, a reunião de pais tinha um momento que era reunião de pais com mestres, mas tinha um momento que era reunião de pais, mestres e alunos, esse momento existia na escola.

D: certo, além da entrada das famílias na escola, que ajuda muito a construir o espaço da escola, você acha que os alunos desenvolviam autonomia por eles terem espaço para decidir na escola?

E: acredito que essas reuniões onde a gente participava junto com os pais sim, porque muitas coisas que às vezes os pais achavam ou consideravam que não eram apropriadas, como por exemplo, as aulas de costura para meninos ou culinária para meninos, que muitos pais consideraram ser inadequadas, os estudantes se manifestaram contra e manifestaram que eles queriam continuar tendo esse tipo de aula, até porque eram argumentos um tanto quanto, pra nossa época, primitivos, se isso pode te deixar afeminado ou não, coisas desse tipo que na nossa cabeça nós não víamos dessa perspectiva, a gente tinha opinião, embora nós não tivéssemos internet, embora não tivéssemos uma série de coisas nós tínhamos opinião, AH, outro detalhe interessante que a cidade tinha é que tinha uma biblioteca e tinha uma interação muito bacana entre a biblioteca da cidade e a escola, então a gente tinha muito trabalho de pesquisa, como não tinha internet, os trabalhos de pesquisa eram feitos na biblioteca da cidade, e existia uma relação muito próxima, a gente via isso pelas atividades que se realizavam a nos dias de reuniões de pais, porque a diretora da biblioteca ela vinha participar das reuniões da escola. talvez pela cidade ser pequena, essa dinâmica era possível, ou eu não sei se é pela vontade e pela visão mais ampla que eles tinham, ou a preocupação mais ampla que eles tinham com a formação da gente.

D: e a última pergunta, você sente que a escola contribuiu para formar quem você é hoje, ou contribuiu em alguma medida para sua formação?

E: Ah, eu não tenho dúvida que muito do que eu sou tem a ver com a escola que eu fiz, com todos os grupos nos quais eu me engajei, porque eu estive em TODOS, eu fiz teatro, eu fiz dança, eu era do grupo de dança, o grupo de teatro nos levava para um concurso infantil nacional de teatro, nossa peça ganhou, a peça foi escrita pela gente, a gente escrevia as peças, isso criou um diferencial no que eu sou, na forma de me comunicar, de agir na vida, de enfrentar algumas coisas na vida, eu tenho certeza, até a visão política que eu tenho do mundo a escola primária teve uma grande influência, depois eu passei por outra escola pública que trabalhou o que seria correspondente aqui à sétima, oitava e nona séries, era uma escola maior numa cidade maior, mas que tinha banda de música, tinha teatro, tinha grupo folclórico, conjunto típico, tive professores, por exemplo, de geografia e história que foram muito desafiadores, essas são as disciplinas que eu mais me lembro, embora tivesse uma excelente professora de biologia, mas especialmente esse professores de história e geografia que desafiavam a gente das mais variadas formas, nos colocavam pesquisas de campo extremamente desafiadoras, por isso eu coloco geografia e história dentro desse contexto, e até volto a repetir, parece que toda a rede de ensino no país estavam voltadas para essa questão de ((interpreta o espírito nacionalista panamenho)) somos panamenhos precisamos ter nosso canal de volta, então vocês tem que ser melhores.

D: sim.

E: e é com educação que vocês vão conseguir ((fim da interpretação)), isso tinha, já nesse momento eu tinha uma disciplina que se chamava relações do Panamá com o Estados Unidos, e aí vinha o debate de como o canal passou para mãos norte-americanas, a discussão de todos os tratados, então era uma coisa que era muito trabalhada, principalmente em disciplinas como história, geografia e essa disciplina relações do Panamá com o Estados Unidos, e isso de certa maneira fazia com que você tivesse uma discussão de política internacional muito grande, e essa era pública, já a outra, onde eu fiz meu colegial, o que seria o ensino médio, era uma escola de fé judaica, tempo integral, entrada sete horas da manhã e saía às quatro horas e meia e todas as atividades eram feitas dentro da escola, fazíamos catorze disciplinas por semestre, isso incluía física e disciplinas tradicionais, incluía relações do Panamá com o Estados Unidos, lá o modelo era um pouco diferente, era uma escola particular, de manhã tinham aulas expositivas, mas à tarde quem dava aula era o aluno, era diferente, não era o professor, então à tarde com certeza nós íamos ter que levar um assunto, existia aula de religião para os alunos de fé judaica se eles quisessem, mas nós tínhamos aulas de ecumenismo, onde cada um levava uma passagem da religião que ele praticava, da fé que ele praticava, e se não praticava falava de qualquer outra coisa, você podia conhecer a torá, o alcorão, você conhecia alguns conceitos sobre o hinduísmo, o budismo, porque tinha gente de todas as religiões compartilhando, e era diferente porque éramos somente vinte alunos por sala de aula, não mais, éramos poucos, e a escola ficava numa área de reserva ecológica MUITO BONITA, e ... eu sinto que tudo, assim, educacionalmente muito cuidado nos mínimos detalhes talvez porque éramos poucos por sala, poucos por sala ... e a mesma dinâmica, assim, a reunião de pais e mestres, tinha o grêmio de alunos ... e uma coisa que eu lembro muito, que o pai do dono da escola, ele nos esperava todo dia, porque nós tínhamos ônibus da própria escola que nos recolhia em casa e nos levava pra a escola, e esse senhor nos esperava todo dia, nos recebia com um abraço e ele tinha tatuado uns números no braço dele, aí ... um dia eu perguntei Ô PORQUE VOCÊ TEM ESSE NÚMERO TATUADO? ele me falou ((agora interpretando o senhor com voz minguada)) eu tive num campo de concentração ((fim da interpretação))... e na hora do almoço nos tínhamos roda de conversa às vezes com ele, e ele começava a contar sobre as tragédias da segunda guerra mundial que ele viveu, a família que ele perdeu, mas que ele emigrou para o Panamá e ele conseguiu construir sua família, e o filho dele que fez essa escola, que se chama e existe até hoje e se chama Instituto Pedagógico, então acho que a palavra diz tudo né?

D: diz muita coisa.

E: ISSO, então tinha coisas assim que eu ... comecei a entender muita coisa e gostei né? porque ... vi que eles passaram por uma tragédia uma segunda guerra mundial, mas foi um ponto, pela experiência que ele relatava pra gente como aluno, isso não criou mágoas nele nem a vontade de revanche, mas sim a vontade de construir um mundo melhor através da fundação de uma escola como o Instituto Pedagógico para que uma nova guerra não acontecesse, foi essa a mensagem que ele deixou em mim.

D: muito bonita.

E: aham ((risos)).

D: ((risos)) ... tem algumas coisas que eu não perguntei, mas eu vou pedir pra você se identificar, no caso eu não perguntei sua idade, eu não ... eu não perguntei sua profissão, então eu vou deixar pra você dizer mais ou menos ... pra você dizer quem você é [pra eu =

E: sí ((sim em espanhol)).

D: não falar nenhuma besteira, quem você NÂO É.

E: Eu sou, meu nome é LF. ((a entrevistada pronuncia seu nome completo, suprimido nesta entrevista)), eu sou panamenha, tenho cinquenta e seis anos de idade, sou professora universitária, tenho duas formações, a minha primeira formação foi em tecnologia de alimentos na Universidade Federal de Viçosa, minha segunda formação foi em nutrição, também na Universidade Federal de Viçosa, fiz mestrado e concluí o mestrado e março de mil e novecentos e noventa e um, um mestrado em ciência de alimentos na Universidade Federal de Lavras e concluí meu doutorado em ciências da nutrição na Universidade Estadual de Campinas, unicamp, em mil e novecentos e noventa e sete (esta identificação na apresentação de um currículo pode parecer exagerada para algumas pessoas, porém, justifica-se ao saber que é um dos maiores orgulhos e autorrealizações da entrevistada, reafirmado constantemente por colegas de trabalho e homenagens prestadas por alunos) , atualmente eu sou professora universitária de uma universidade particular, coordeno curso de nutrição, já fazem quinze anos, mas como coordenadora de curso da área de nutrição estou já há vinte anos, esse ano completei vinte anos de experiência e trabalho muito com a dinâmica ((toque de celular ao fundo)) utilizando como ferramenta metodológica programas de extensão para a formação do aluno, talvez seja influência um pouco ((risos)) da formação que eu tive também, então os meus alunos vão muito ao campo, muito em campo e justamente a comunidade, a convivência com a comunidade é que se torna de certa maneira a sala de aula deles, essa interatividade, esse olho no olho ... com a comunidade que acaba mudando certos preceitos que se estabeleceram a nível educacional no Brasil ... e embora de uma particular eu trabalho com alunos que às vezes tem muito problema, que são analfabetos funcionais, literalmente, mas eles estão conseguindo ser nota quatro de enade ((o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes)), então isso pra mim é uma grande recompensa ... e sou mãe de dois rapazes, e mãe de uma menina, então ... essa sou, L. ((pronunciou o primeiro nome)).

D: depois eu vou redigir tudo isso e eu vou ... eu só vou ocultar seu nome, por ...

E: sí.

D: por questão de [ética =

E: sí.

D: e depois eu vou mandar pra você, inclusive.

E: perfeito.

D: posso até mandar o trabalho em que a gente vai colocar porque a gente tá falando de Paulo Freire na disciplina (refiro-me aqui, à disciplina Escola e Currículo, de código EP162, na Faculdade de Educação da UNICAMP, na qual o trabalho citado, em grupo, foi apresentado) ...

 E: ah, [perfeito =

D: e é legal porque a gente pega ... a gente, claro, fez algumas divisões no meio das tarefas e eu li bastante a Pedagogia da Esperança pra fazer o [trabalho =

E: [então ((ela se detém e não continua a fala))

D: e é muito legal, na Pedagogia da Esperança ele fala de ... de pessoas que tão em situações muito difíceis e como que a vida delas é dura porque existe uma certa desigualdade e porque elas não são formadas politicamente, daí elas não podem recorrer aos direitos delas porque elas nem sabem que esses direitos [existem =

E: [mas é que ((ela se detém novamente))

D: ou por conformidade.

E: mas de certa maneira é isso que a gente faz, né? trabalha com a pedagogia a esperança (acredito que ela não tenha se referido ao livro Pedagogia da Esperança, mas a uma pedagogia da esperança) no sentido de que eu levo os alunos para escolas, eles estão nas escolas do município de Nova Odessa, justamente esse olho no olho porque você precisa empoderar a comunidade, mas para empoderar a comunidade antes você precisa fazer um empoderamento do aluno ... e esse aluno, ele vem dessa comunidade, eles vêm dessa comunidade, e os lugares onde a gente têm esses programas de extensão e que eu levo os programas de extensão, são os lugares de onde mais alunos vem pra faculdade *** ((nome da faculdade onde ela trabalha)), que é Nova Odessa, Santa Bárbara ((diminutivo de Santa Bárbara D’Oeste)), né ... a gente acaba devolvendo de certa forma ... essa dádiva deles darem um aluno pra gente formar ... e é isso que a gente faz na nossa rotina.

D: brigado.

E: de na::da.

D: vou desligar [aqui o gravador =

E: po::de sim.

D: e a gente [continua a conversa =

E: pode ((voz baixa))

D: sem o gravador ... nossa, tem quarenta minutos.

E: espero que tenha sido bom.

D: foi sim ((o gravador é desligado)).





[1] Disponível em: < http://www.concordancia.letras.ufrj.br/index.php?option=com_content&view=article&id=52&Itemid=58 >. Acesso em: 22/08/2017.

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