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sábado, 15 de outubro de 2016

Pedagogia da competição: qual o problema? (Parte 2)

1ª Atualização em 23/12/2017:  complementação da argumentação de O mito de uma economia neoliberal com cidadania com acréscimo de Nicolau (2017) à bibliografia.

O mito da melhoria nas condições de trabalho:

            Quando nos descentramos dos estudos sobre o campo escolar, podemos aludir o campo do trabalho em sua generalidade, não apenas da realidade dos professores, e perceber como ele vem se organizando a partir do sistema econômico capitalista baseado numa economia informacional e global que, a partir de Castells (apud AFONSO & ANTUNES, 2001), pode ser compreendida da seguinte forma:
É informacional porque a produtividade e competitividade das unidades ou agentes desta economia (quer sejam empresas, regiões ou nações) dependem fundamentalmente da sua capacidade de gerar, processar e aplicar com eficácia a informação baseada no conhecimento. É global porque a produção, o consumo e a circulação, assim como os seus componentes (capital, mão-de-obra, matérias-primas, gestão, informação, tecnologia, mercados) estão organizados à escala global, quer de forma direta, quer mediante uma rede de vínculos entre os agentes econômicos. É informacional e global porque, nas novas condições históricas, a produtividade gera-se e a competitividade exerce-se por intermédio de uma rede global de interação. (...) O vínculo histórico entre a base do conhecimento-informação da economia, o seu alcance global e a revolução tecnológica da informação é que dá origem a um sistema econômico novo e distinto (p.85).
            A educação, a partir desta nova racionalização econômica, é pedra angular no funcionamento do sistema de produção global/informacional por ser capaz de incorporar no trabalhador suas qualificações para o trabalho, tornando-o altamente produtivo. Além do mais, trata-se de uma educação durável e especializada, difícil de ser reprogramada (termo de Castells). Esta demanda surge da União Europeia com a crise do Estado-Providência, a partir daí são criados documentos oficiais onde se utilizam largamente de expressões como sociedade de aprendizagem, capital humano, sociedade cognitiva, competividade de empresas e produtividade, cujos interesses são tornar os países-membros produtivos economicamente e garantir um status de sociedade justa e igualitária (AFONSO & ANTUNES, 2001).
            A educação estaria voltada, deste modo, para perceber as mutações nas novas organizações de trabalho e a formar um indivíduo que fizesse avançar a competição que move a ideologia econômica dos países, com o risco de separar os trabalhadores entre qualificados e não qualificados, em que os trabalhadores qualificados estão diretamente ligados aos interesses produtivos e competitivos das empresas e corporações, sem contar que estão diretamente ligados a sua ideologia financeira, enquanto os não qualificados devem passar por programas de educação e formação oferecidos pelos próprios empregadores. Sem contar a diferença entre trabalhadores programados (ou especializados) e genéricos (classificação de Castells), em que o segundo tipo está mais vulnerável e é mais dispensável que o primeiro.
            Com o afastamento do Estado-Providência os trabalhadores passam a se responsabilizar pela sua educação e a “aceitarem os empregos que lhe são propostos, sob pena de perderem subsídios do Estado” (AFONSO & ANTUNES, 2001, p. 89). Os efeitos desta concepção liberal acabam por extinguir a organização coletiva e a solidariedade entre os trabalhadores, que se veem cada vez mais individualizados e com seus interesses e valores modificados para sobreviver dentro de uma sociedade do trabalho em que desaparecem os direitos sociais do trabalhador.
            A educação deveria ser uma aprendizagem contínua sem fim, a possibilidade de um sujeito se reformar a partir da reflexão de si mesmo, de imaginar seus projetos, seus desejos, suas vontades, suas motivações e ter acesso às condições materiais e simbólicas que permitam que ele possa sentir-se realizado com aquilo que ele é, condição de existência promovida pela aprendizagem de conhecimentos, bem como por sua criação ou construção nas relações e interações com o outro (ambiente, instituição, cultura, pessoa, por exemplo). Esta educação é deixada de lado com a interferência de políticas neoliberais que incentivam a competição; desestabilizam as ecologias humanas (e até ameaçam a sustentabilidade de qualquer tipo de relação) por substituir um wellfare state por um workfare state, no raciocínio de Afonso & Antunes (2001).
            A dicotomia entre formar um cidadão/formar um trabalhador, inconciliável na visão de alguns teóricos, é solucionada, ainda com base na competição, por aqueles que defendem a terceira via, que buscaria formas de superar esta dicotomia justamente por nos encontrarmos num mundo globalizado que não pode abrir mão da competição para a produção, mas se preocupa com as condições sociais dos indivíduos que participam nela. March (1991) pode ser considerado um desses teóricos da terceira via (ainda que não declarado) na tentativa de conciliar os interesses de pessoas numa organização e dos códigos da própria organização. Ele argumenta que ambos os sentidos de exploração - exploitation e exploration - são desejáveis e essenciais a qualquer tipo de organização, sendo que “Exploration inclui coisas captadas por termos tais como pesquisa, variação, assumir riscos, a experimentação, o jogo, a flexibilidade, a descoberta, a inovação”, enquanto “Exploitation inclui coisas como refinamento, escolha, produção, eficiência, seleção, implementação, execução” (MARCH, 1991, p.71tradução livre).
            Pensando em questões de aprendizagem, formação e educação, exploration possui uma baixa produtividade à longo prazo, não garante habilidades apropriadas para o trabalho a ser realizado e permite que o indivíduo se afaste dos objetivos da organização, mas permite uma melhor adaptação ao ambiente organizado, surgem inovações no processo produtivo e a experimentação de habilidades, além de ser mais provável que ele adeque suas crenças aos códigos da organização por ter-se utilizado da reflexão para saber se isto poderia ser bom ou não para ele, sendo capaz que este indivíduo tenha algo a contribuir com a organização.
            Em contrapartida, permitir um explorer (no sentido de aventureiro) na organização dissipa aquilo que está instituído, organizado, regrado e que identifica essa organização enquanto organização. Em outras palavras, a algo que torna a Google o que ela é, assim como a Microsot, o Santander, etc. Existem aspectos que precisam ser preservado e são inegociáveis, por isso March (1991) defende a exploitation como contra balanço, um princípio de autoridade que mantém as coisas como elas são e se espera que sejam.
            March (1991) propõe o aprendizado mútuo como modelo de desenvolvimento do conhecimento entre a socialização esperada pela organização e crenças pessoais dos indivíduos, que dispõe de: a) uma realidade externa independente de crenças que incorram a partir dela; b) crenças de um grupo de indivíduos acerca dos códigos dessa organização, recebidos como verdade; c) modificações nas crenças dos indivíduos a partir de sua socialização na organização e aprendizado de um novo código de crença; d) adaptação da organização às crença dos indivíduos, pensando que a diversidade de crenças criam múltiplas realidades acerca da organização e ela deve adaptar-se para atender as várias percepções e expectativas que os indivíduos criam acerca dela.
            O resto do artigo de March (1991) consiste em dados estatísticos que se traduzem nos efeitos de uma socialização rápida (preferível para a produção) ou de uma socialização lenta (preferível para incorporação dos valores e códigos); aprendizagem em grupos heterogêneos é preferível a grupos homogêneos, pois garante diversidade de pensamentos, de ações e contribuições, desde que sejam misturados grupos de aprendizagem rápida e aprendizagem lenta; e ainda ações que seriam preferíveis tomar em situações de recrutamento de um indivíduo ao código de crenças da organização e quando turbulências modificam o ambiente a ponto de impedirem a adaptação (ou o aprendizado) do indivíduo.
            De qualquer modo, esta ideia da competição está no cuidado para competir. A competição não precisa ser sempre rápida, intensa e produtiva, este tipo de competição é auto-destrutiva, pois as organizações, instituições, corporações e mesmo o Estado lidam com recursos escassos (e não acredito que esta preocupação envolva uma ecologia da natureza). Mach (1991) acredita que toda produção pede competição, mas existem formas produtivas de se competir e formas destrutivas, por isso exploration (aprendizado lento) e exploitation (aprendizado rápido) devem ser formas de conhecimento em equilíbrio.
            Esta posição de Mach (1991), como de Afonso & Antunes (2001), propõe uma ecologia da competição, como quem diz, “já que estamos num mundo globalizado, vamos tentar viver de forma harmoniosa”. Uma proposta mais interessante e ousada do que aderir à globalização ou aos ideais de produtividade e competitividade é uma proposta socialista de Mészáros (2007) de não aderir à lógica do capital e nem de usar qualquer uma de suas ferramentas, pois isso significaria a ínfima possibilidade de retornar a um cenário inconveniente que algum dia já existiu.
            Por mais democrática e atrativa que possa parecer a assertiva de Mach (1991) sobre a organização de um local de aprendizagem onde todos tenham seus sistemas de crenças relevados, deve-se pensar que a propriedade não pertence a todos, a propriedade possui proprietário e existe uma realidade que não pode ser modificada, que é a realidade percebida pelas crenças e verdades do proprietário que detém os maios de produção, e ele só os detém porque os trabalhadores não detém nem propriedade nem meios de produção, por isso eles devem servir aos interesses do proprietário que troca salário por força de trabalho (MARX, 1996).
            Ao falamos de produtividade, falamos de mercadorias. Ao falarmos de mercadorias, falamos de preços que se assemelham ao valor de uso e a quantidade da força de trabalho investida na produção da mercadoria, que é quando a lógica recai sobre o funcionamento do capital pela mais-valia: a exploração da força de trabalho do trabalhador pelo pagamento de uma parcela menor que o total de tempo e energia dispendida no processo de produção, donde as demais parcelas são o lucro apropriado pelo empregador, que também é a força de trabalho não paga do trabalhador (MARX, 1996).
            Por que não fazer como nas escolas que fazem gestão democrática ou privilegiar economias alternativas, como é o caso da economia solidária, em que todos os envolvidos não mantem relações hierárquicas, sentindo-se mais a vontade para cooperar, decidir e exprimir suas ideias? Parte do mito da melhoria nas condições de trabalho acontece pela ideia de que é necessário ter alguém especializado e suficientemente educado para distribuir tarefas, caso contrário os trabalhadores não saberão se organizar. Em parte é verdade, mas preenchendo a lacuna: eles não se organizarão e usarão as técnicas e habilidades exigidas na relação empregador-empregado, pois eles passam a decidir conjuntamente como acontecem os tempos e espaços de trabalho. Os trabalhadores apenas não seguem a organização do sistema de valores e crenças do empregador, e é daí que surge este mito: há uma divisão de pensamento entre trabalhadores genéricos e trabalhadores altamente produtivos, sendo que os últimos carregam a ilusão de serem realmente capacitados, e esta forma só é naturalizada no senso comum quando este empregador ou grupo de empregadores que querem exercer sua dominação levam os trabalhadores (genéricos e altamente produtivos) a crer e afirmar seu discurso como se fosse uma verdade, que funciona como ideologia a favor do grupo dominante;
            Nesse discurso está implícito a institucionalização da educação: onde existe boa educação e onde existe má educação, ou, onde está a educação legítima e que vale a pena ser aprendida. A dominação leva o dominado a acreditar que ele não possui educação e que depende de alguém numa posição superior para educá-lo, permitindo que aconteça uma violência simbólica, cuja função é medir forças entre os valores e crenças dos dominados e dos dominantes de forma que os dominantes consigam subjugar (através da educação) as vontades e desejos que vigoram em seus interesses.
            Trazendo ao tema os profissionais da educação, não se pode negar uma precarização do trabalho que existe com as políticas neoliberais, que prestigia o aspecto prático e técnico da formação. Representantes deste modelo, como a Teach for America forma seus professores em dois meses (FREITAS, 2012) e depois são mandados para áreas de risco para mudar a realidade das crianças que vivem situações de pobreza, violência e conflitos sociais; o trabalho é realizado sob o objetivo declarado (SAVIANI, 1997) de prezar o “desenvolvimento humano”. Apesar do slogan benevolente,
O problema disso tudo é que eles [organismos multilaterais, como a ONU e o Banco Mundial, cujas metas globais são apoiadas por ONGs, como a Teach for America] não pretendem resolver as causas estruturais das injustiças que alegam combater. Assim, as metas globais de desenvolvimento (que aparentam se preocupar com a qualidade de vida, estabelecimento de objetivos para educação, saúde, inclusão social etc.) têm como interesse garantir que os índices de produtividade continuem crescendo, explorando cada vez mais o trabalho das pessoas, que seguem tendo uma vida de grandes sacrifícios e dificuldades. Assim, a meta principal desses organismos é perpetuar as condições para que o capitalismo e suas desigualdades continuem existindo (FUNDAÇÂO ROSA LUXEMBURGO, p.10, destaque do autor).
             Por estas e outras razões há uma aderência a políticas de responsabilização do professor, a avaliações constantes e exposição dos resultados, o profissional da educação passa a ser visto como um trabalhador genérico, facilmente substituível, amputável, descartável e desvalorizado, por isso, desmoralizado.
            A educação boa, com a desmoralização da profissão de professor e educadores, passa ser a educação oferecida por empresários, que ensinarão a partir do paradigma das competências e excelências esperadas do trabalhador num cenário competitivo e produtivo para gerar lucros aos grupos dominantes. Cada vez mais o discurso de que o privado é melhor que o público cresce por assentar-se na meritocracia, o que possibilita privatizações do bem público alegando melhor gerência dos recursos, que de uma forma compacta, acaba no Brasil, no Chile e nos Estados Unidos, só para dar alguns exemplos, implicando em:
  • ·         Relação empregatícia instável pela flexibilização das leis trabalhistas;
  • ·         Baixos salários pensados pelos cortes de gastos (por isso professor trabalha em duas escolas diferentes, faz turno e contraturno, etc.);
  • ·         Liberdade de cátedra reduzida com o ensino apostilado (empresário ditando as regras para ensinar);
  • ·         A competição entre professores trazendo a sensação de que a atenção deve ser redobra às situações de perigo (notas baixas dos alunos, professores que foram bem avaliados);
  • ·         Autoestima e integridades profissional e pessoal ameaçadas;
  • ·         Temperamento irritadiço, insatisfação e sentimento de irrealização do profissional;
  • ·         Atitudes antiéticas do profissional prestigiando resultados (dar resposta de uma questão aos alunos no momento de prova);
  • ·         Concorrência entre valores pessoais e valores necessários para sobreviver no mercado de trabalho;
  • ·         Reafirmação da hierarquia e de relações de poder.
            Eu seria mais dramático e diria que este é um quadro geral para qualquer profissão que toma as políticas neoliberais como norte, uma vez que acaba desresponsabilizando o Estado de seu papel de garantir condições sociais justas a partir de um regime democrático para substitui-lo pelo livre mercado, a concorrência, a competição, a produtividade, capital humano e o que valha para contribuir para uma globalização dos interesses do capital.
            
O mito de uma economia neoliberal com cidadania:

            O último mito firma-se no antagonismo existente entre competição e cidadania. Esta última é entendida como o direito a ter direitos, a termos responsabilidades políticas e dever lutar por elas, a prezar a participação ativa e unir interesses que serão discutidos e ouvidos nos ambientes de relevância para esses temas independente das constituições fenotípicas, da trajetória social, dos valores, crenças e motivações do sujeito de direitos.
            Brandão (1984) percebe uma educação voltada para a produção e para o consumo que cria uma relação de dependência entre o cidadão e os serviços que os representantes do Estado prestam, donde eles não reconhecem a importância de exercer sua atividade política, posicionar-se contra os governantes ou reivindicar seus direitos; os cidadãos formados nesse sistema de ensino tornam-se conformados, passivos e consideram-se clientes do Estado, como se fosse uma relação entre vendedor-comprador. Nesta relação o comprador não pode exigir que o vendedor venda algo que ele não tem, mas quando esta lógica é quebrada não importa se o Estado quer ou não, pode ou não pode oferecer educação, saúde, transporte, saneamento básico, ele deve criar condições para que o direito exigido pelo cidadão aconteça.
            Desta forma justificamos tantos votos brancos, nulos e abstenções das eleições para prefeitos e vereadores no Brasil. Ainda que esta estratégia possa ser entendida como insatisfação ao sistema político brasileiro, também carrega uma passividade de um cidadão que acredita no discurso cabal do senso comum de que política só tem canalha, ladrão, corrupto, aproveitador e que fazer política não adianta para nada senão roubar, sendo mais proveitoso distanciar-se desse nicho e contrair outras preocupações que satisfaçam seus planos pessoais e familiares (amostra de individualização). Por existir pessoas (políticos) que não sabem administrar o bem comum, seria muito melhor que ninguém dependesse de ninguém, já que é natural do ser humano querer ter o que não é seu (e é assim que se cria e difunde um mito poderoso que apenas se perpetua por não ser devidamente investigado).
            Os motivos para não votar ou votar em branco/nulo são tão diversos e criativos que o “fazer política” torna-se um ato de resignação com estratégias que em nada ameaçam o poder dos governantes. A ideia de cidadania sofre reinvenções no seio da população que exerce seus direitos (SILVA, 2004), inclusive pensar que votar em ninguém é melhor do que votar em alguém. Na medida em que isto significa participação, também significa contradição, já que o ato político tem um efeito particular de não envolvimento com nenhuma tragédia que aconteça no cenário político; ao invés de se envolver com o que é público, o cidadão-consumidor escolhe não ter peso algum nas decisões esperando que alguém em algum lugar, como num romance, venha montado num alazão e diga “Estes serviços não podem ficar assim! Você agiu certo em não votar; convocaremos novas eleições com novos representantes sem históricos de corrupção e que realizem pesquisas nos bairros que ficariam sob sua incumbência para que os ideais do povo sejam seus ideais” e de alguma forma, sem muito esforço por parte do sujeito de direitos, isto aconteça.
            Quando deixamos de comprar um produto de uma determinada marca, seu produtor pode falir, pois esta é uma lógica do mercado. Os representantes políticos não estão falindo por alguém deixar de fazer uso de suas políticas ou deixando de fazer seus papéis de cidadãos, os impostos continuam sendo pagos do mesmo jeito, parte desses impostos é revertido em salário e o restante é convertido em subsídios para execução dos projetos desenvolvidos pelos representantes nas eleições. Se os cidadãos estão fiscalizando ou não o bom uso da verba pública isto não faz dos representantes políticos menos políticos, e se as ações deles não são representativas eles não ficam menos políticos também.
            Lógica de mercado para eleições não funciona em insatisfação popular contra governos. A lógica de que o Estado ofereceu algo que eu não quis deve ter como resposta aquilo que eu quero receber do Estado, pois ele, por obrigação a uma constituição baseada na vontade do povo brasileiro, deve atender às expectativas de seus cidadãos, que por sua vez são defendidas por um sistema de representação, ou seja, os governantes representam grupos menores.
            É a impossibilidade de atender a todos os interesses que fortalece concepções neoliberais e traz o questionamento sobre os regimes democráticos com Estado soberano serem possíveis estratégias de grupos dominantes de dar a ilusão aos grupos dominados de que eles participam da política, embora estejam destinados, por uma relação de forças baseada principalmente na própria forma do sistema político que impede que seja de outra forma, dos dominados serem sempre dominados.
            A diferença, entretanto, deve permanecer na obrigatoriedade da realização de um direito e em como os cidadãos reclamam seus direitos. Se um cidadão vê no seu direito uma mercadoria, ele não tardará em encontrar outras formas de conseguir esse direito (como pagar uma escola particular para seus filhos ou ter um convenio com um centro de saúde privado), e aí sim o privado passa a ser melhor que o público, visto que o privado faz tudo o que o público não faz (atender aos interesses e necessidades de um grupo ou classe), mas ele só é melhor porque os cidadãos abandonam o bem público e esperam que seus representantes façam algo que eles não poderiam fazer se esse cidadão não pronuncia de forma explícita sua insatisfação. E com a adição do poder na política fica ainda mais complexo, pois os representantes podem escolher ignorar seus representados mesmo que gritem as incongruências e ineficácia dos governos e governantes. E ainda assim uma atitude passiva não transforma a realidade política.
            Se utilizarmos números: João Doria foi eleito com 3.085.187 votos (53, 29% dos votos diretos), na mesma eleição constam 367.471 votos brancos, 788.379 votos nulos e 1.940.454 abstenções, que somados são 3.096.304, ou seja, tem mais votos brancos, nulos e abstenções do que votantes do João Doria, sendo que São Paulo foi a capital que mais teve abstenções, segundo o Tribunal Superior Eleitoral (BRASIL, 2016), em divulgação on-line. A população apta a votar era de 8.876.324 pessoas, se todas elas votassem (e considero que quem votou em branco, nulo ou se absteve não votaria no Doria), a porcentagem de votos diretos do Doria cairia para 34,75%, e a votação passaria para o segundo turno.
            Podemos supor, de forma bem romântica, que Fernando Haddad recebesse todos os votos brancos, nulos e abstenções, isto é, que os cidadãos-consumistas dos serviços do Estado exercessem o voto direto. Os antigos 16,70% dos votos (967.190 de um total de 5.780.020 votos diretos) tornar-se-iam 45,77% (4.063.494 de um total de 8.876.324).
            Podemos recriar, ainda, um cenário imaginário em que as abstenções diminuíssem em 50% e houvesse apenas 20% dos votos nulos e brancos que constam nas estatísticas, somando 970.227; 630.702,2 e 313976,8 votos diretos, respectivamente, num total de 1.915.906 votos aproveitados que somados aos 5.780.020 já existentes totalizam 7.694.926 votos diretos; 73.494,2 votos brancos; 157.676,8 votos nulos e 970.227 abstenções. Vamos supor, também que Haddad receba apenas 30% destes novos votos diretos, Doria receba 10%, Erundina 20% e o Russomano fique com 40% dos votos. A nova configuração seria a seguinte: Doria (42,59%), Russomano (20,22%), Haddad (20,03%), Marta (7, 63%, nenhum voto adicional) e Erundina (7,36%).
            Doria não alcança 50% dos votos e é convocado um segundo turno com menos representantes. É interessante perceber como Russomano supera Haddad na colocação por quantidade de votos e Erundina agora possui tantos tantos quanto Marta, situação que não aconteceu na verdadeira votação. Só não melhora a situação de Henrique Áreas, que nesta situação hipotética fica com 0,01% dos votos (de um total de 5.780.020 votos diretos), ao contrário dos votos reais, que foram 0,02% (de um total de 7.694.926 votos diretos no cenário hipotético).
            Para convocar um segundo turno seria necessário aproximadamente 400.000 votos diretos, isto é, um candidato que tivesse mais votos que a Erundina e menos votos que a Marta. Estes votos poderiam ter vindo das abstenções, o que significaria 20,61% de abstenções decidindo seu representante, que também significa apenas 4,5% da população de São Paulo apta a votar, votando de fato.
           Ainda que o novo turno não signifique vitória de algum outro representante em função do Doria, traz novas expectativas e possibilidades no cenário político que poderiam levar a reviravoltas num segundo turno. Se nesta mesma configuração hipotética de apenas 50% de abstenções e 20% de votos nulos e votos brancos, todos recebessem os novos 1.914.906 votos distribuídos entre os onze candidatos, ainda assim haveria um segundo turno, pois Doria não teria alcançado os 50% dos votos, estaria com 42,6% dos votos, antes com 53,29%; Haddad teria 14,83% ao invés de 16,70% e Henrique Ária teria 2,27% dos votos em relação aos esperados 0,02%. O aumento na quantidade de votos diretos faz diferença tanto nas aparências daqueles que receberam poucos votos quanto desfavorece os candidatos mais próximos dos 50% necessários para serem eleitos, e não é necessário mais que 4,5% da população para que isto aconteça. 
            Se uma população como a da cidade de Mauá votasse, o cenário de eleição seria diferente. Seria mais difícil para aqueles que recebem a maioria dos votos serem eleitos, pois uma minoria demonstra seus interesses a partir do voto, se posiciona como cidadão numa ação direta, de outro modo, todas as ações são indiretas, seu voto são os votos dos outros.
             Sem mencionar que a Câmara dos Vereadores faz diferença na aprovação dos projetos de lei do prefeito, logo, os cidadãos deveriam preocupar-se em votar vereadores com alinhamento político igual ou semelhante ao do prefeito. Da mesma forma, o voto para presidência pede um alinhamento político com o voto de deputado para garantir sustentação parlamentar. As eleições para o Executivo parecem dominar a atenção dos eleitores a ponto de não se lembrarem de seus votos para o Legislativo. Nicolau (2017) apresenta algumas estatísticas do Estudo Eleitoral Brasileiro (Eseb) de 2014, na pesquisa os eleitores são solicitados a dizerem em quem votaram para deputado federal: "46% não lembram ou não sabiam responder, 33% listaram nomes de algum candidato e 22% disseram ter anulado ou deixado o voto em branco" (NICOLAU, 2017, p.65). Na consulta sobre os votos para deputado estadual, dessa mesma pesquisa, os resultados foram respectivamente 49%, 29% e 22%. Esses resultados geram a seguinte consideração: "o fato de cerca de metade dos eleitores já não se lembrar do voto para deputado federal e estadual poucas semanas após o primeiro turno é um sinal da reduzida importância que essa opção tem para eles", bem como as eleições para o Legislativo de uma forma geral (NICOLAU, p.66). 
               Ainda utilizando a pesquisa do Eseb-2014, citada por Nicolau (2017), 68% dos eleitores responde não ter predileção por um partido. Mesmo aqueles que dizem possuir uma predileção, com PT (18%) e PSDB (7%) como os principais partidos da pesquisa, mais de 30% desses eleitores votam em outros partidos. Por fim, passa a existir uma incongruência entre os votos para deputado federal e para  presidente em 34% das respostas no Eseb-2014 demonstrada por Nicolau (2017), considerando apenas as respostas dos eleitores que lembram-se dos seus votos, com 40% de votos nulos ou brancos. Sugiro um comportamento eleitoral idêntico para as eleições municipais anteriormente descritas.
            Se votos brancos e nulos nãos são válidos para eleger um candidato (BRASIL, 2014) eles não possuem poder de decisão, e a educação competitiva tende a fazer o cidadão utilizar estratégias em que ele desconhece o funcionamento de outros campos que não sejam o saber-fazer e o tecnicismo do trabalho, por isso, esvazia, como foi o exemplo, o debate político de discussões que importam e enchem-no de futilidades e falsas convicções que não levam a mudança alguma. O cidadão perde de vista as transformações e como fazê-las (SILVA, 2004), pois sua realidade, no mundo competitivo, restringe sua atenção para o que o faz ascender na hierarquia, como progredir, o pensamento é em direção ao que ele sabe que funciona, e presume que funciona porque todos fazem deste jeito. O sujeito faz porque “sempre foi assim” (BOURDIEU, 2001).

Considerações finais:

Esses mitos tornam-se mais fáceis de serem difundidos quando nos defrontamos com as fatalidades de se viver num mundo globalizado – “O mundo inteiro funciona assim, não tem outro jeito” – ou quando fazemos apelo à ignorância – “Me diga um país no mundo que não seja competitivo e tenha um bom IDH”.
Esta forma de pensar é típico de um país colonial que ainda vê na terras europeias as melhores formas de se viver, modelando-se a imagem de seus antigos proprietários e querendo fazer como eles fazem porque gostaríamos de viver como eles vivem. Parece muito menos viver dignamente como eles vivem, mas é exatamente viver a dignidade que eles vivem; e como todo país tem seus problemas e conflitos, não podemos dizer que os países europeus vivem na plena dignidade, justiça e com cidadãos exemplares, ainda que a França seja  utilizada como exemplo de um povo que luta por boa educação e nós tenhamos aproveitado muito da pedagogia e da filosofia francesa para construir a educação brasileira. 
Perdemos de vista as vivências baseadas na exploration (MARCH, 1991), de aventurar-se, de descobrir, de inventar e inovar as coisas, fazer as coisas no nosso próprio ritmo, produzir coisas que são boas para nós porque nós fizemos, sabemos o que vivemos e podemos mudá-las sem maiores dificuldades, uma vantagem sobre os meios de produção (MARX, 1996; MÉSZÁROS, 2008), sem precisar recorrer à competição.
A política e o exercício da cidadania envolvem tanto mais exploration quanto exploitation dos conhecimentos. Existe uma realidade que é constitucional e de direitos sociais e imutáveis, e mesmo assim, se fosse um acordo entre uma gama significativa da população poderiam haver mudanças neste realidade (in)tangível. A cidadania, entretanto, é fundamental, pois se baseia numa educação essencial (MÉSZÁROS, 2008) que faz do sujeito um ser crítico e não alienado. Não há escapatória para qualquer mudança, de forma dialogada, que não seja pela cidadania.
A escola, instituição formal de educação, não é a solução de todos os problemas sociais, econômicos e políticos como governos e governantes imaginaram e até imaginam (AFONSO & ANTUNES, 2001; SOBRAL, 2000), pois a sociedade não se constitui de um único sistema formal, também não é uma instituição formal que será capaz de formar sem erros os cidadãos, pois formar sem erros (ou formar mentes) nos leva a crer que saímos acabados da escola, quando na verdade ela nos apresenta algumas possibilidades de educação e de (des)construção (em todos os sentidos). É pela educação não ter fim, acabar só na morte do último par de neurônios de um sujeito, que ela deve ser essencial e não formal, como diz Mészáros (2008), e com isto quero dizer que existe educação fora da escola. A escola pública não deve ser toda a educação, mas deve ser também uma educação.
A escola pública é, e digo sem pestanejar, um dos primeiros locais em que a criança entende o que é conviver com diversidades, de ver e sentir o outro. É onde ela encontra um conflito e não pode fugir para onde quer, e se foge (para casa ou para outro lugar) deve voltar alguma ora e lidar com uma realidade que é inicialmente desprazerosa por não acontecer como a criança espera que ela aconteça.
A cidadania pede conflito, diversidade, alteridade, comprometimento, reciprocidade, respeito e senso de coletividade, além de uma constituição que assegure o direito a ter direitos. Tudo isto aparece de forma confusa no neoliberalismo, na produtividade, na flexibilização de propostas, sob o discurso do capital humano; a competição ameaça de forma considerável a existência de uma democracia deliberativa. Podemos selecionar os campos em que a competição é preferível, como nas empresas, talvez nos esportes (e Bourdieu, numa Sociologia do Esporte, e Adorno, recorrendo a Auschwitz, ainda teriam críticas duras a serem tecidas sobre a competição, principalmente quando remontamos no cenário das competições internacionais o esporte como forma de dominação entre países), mas de forma alguma a política e a educação se interessam pela competição se elas estiverem moralmente envolvidas com uma perspectiva democrática de sociedade e da prática cidadã.
Em todo caso, o cenário educativo traçado pelos órgãos internacionais, empresários e por políticos economicistas se traduz em formar um indivíduo “produtivo no trabalho, subordinado na vida cotidiana, dócil na política” (BRANDÃO, p.189, 1984), por isso, não formam cidadãos.


Referências:

AFONSO, Almerindo Janela; ANTUNES, Fátima. Educação, Cidadania e Competitividade: Questões em torno de uma nova agenda. Cadernos de Pesquisa, n.113, p.83-112, junho/2001.

BOURDIEU, Pierre. Meditações Pascalianas. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Educação alternativa na sociedade autoritária. In PAIVA, V. (org). Perspectivas e dilemas da Educação Popular. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1984.

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Imagens:



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Pedagogia da competição: qual o problema? (Parte 1)

Introdução:

A educação costuma ser atravessada pela socialização, a instrumentalização de um indivíduo para agir num mundo. O planeta não é um mundo, senão uma multiplicidade de mundos. Logo, crianças em diferentes partes do globo aprendem e apreendem o mundo em que nascem, e nem sempre seus aprendizados podem ser estendidos para situações fora deste mundo: sua cultura, sua sociedade, seu grupo, sua casa.
No mundo globalizado a educação parece perder um pouco suas características locais, aquilo que é próprio de uma cultura, de uma sociedade ou de um grupo, para ser pensada a nível internacional. Cada uma dessas localidades incorporam a sua educação os preceitos de uma educação pensada no mundo globalizado, marcado principalmente pelo mercado internacional e pela mão-de-obra qualificada.
A educação passa a ser pensada para o trabalho, para a produção de riquezas de um país, seguida de uma competição entre mercados internacionais. A conclusão é que a competição é base da educação num mundo globalizado. E o princípio da competição aparece para atender aos interesses do capitalismo e de um mercado com uma variedade de serviços buscando o monopólio.
Há estudos sociais que defendem a possibilidade de uma educação que possa conciliar a formação da cidadania com a qualificação para o mercado competitivo, entretanto, não é esta a realidade que pretendo trazer aqui. Parece-me inconsistente uma educação que pelo incentivo à competição queira formar cidadãos com consciência crítica, política e de participação ativa nas decisões da sociedade. Também considero importante apontar que a competição favorece apenas os interesses de uma economia neoliberal e que em nada se aproximam da educação para a cidadania esperada, pelo contrário, desestimulam a participação política do cidadão por uma educação que valoriza os lucros e o ranqueamento do país no mercado internacional almejando ser o mais rico.
Este artigo contempla as experiências brasileiras de educação, em primeiro lugar, por mais que flerte com uma perspectiva mundial da influência da competição no trabalho, na produção de conhecimento e educação do povo.

O mito do darwinismo social:

O primeiro mito é um background que busca explicar os funcionamentos da natureza humana e suas formas de evolução. Pela teoria da evolução das espécies, de Charles Darwin, ocorre a seleção de mutações nos genes dos seres vivos que permitem que eles se adaptem ao seu ambiente externo. Transpondo para o darwinismo social: estão mais aptos a viver socialmente aqueles que se adequam ao seu meio social, o que é um argumento interessante para pensar a escola como preparação do indivíduo para a sociedade, como proposto por Émile Durkheim.
Os preguiçosos, os fracos, os desinteressados, os imaturos, os desobedientes, todos estes estão fadados a ser excluídos dos genes sociais, são selecionados pelo ambiente social os infatigáveis, os fortes, os motivados, os maduros, os obedientes, os escolarizados e todos que fazem funcionar a sociedade-organismo. Existiria um princípio competitivo na natureza humana que nos direcionaria à evolução, prevenindo qualquer complicação que pudesse ameaçar a extinção da humanidade.
Com um pouco de atenção percebemos que a teoria de Darwin, conhecida por seu famoso livro A Origem das Espécies “foi comumente mal interpretada como uma explicação de um progresso intelectual e moral em vez de uma explicação de como coisas vivas se adaptam a um nicho ecológico” (PINKER, p.15, 2002, tradução livre). É Herbert Spencer, discípulo de Darwin, que vê na teoria de seu mentor a possibilidade de expandir a teoria de base biológica para explicar o progresso das nações e das raças, onde estão as melhores economias, as melhores políticas e as melhores sociedades. Vale lembrar que Francis Galton, sobrinho de Darwin, aparece como incentivador de políticas eugênicas para promover o avanço da sociedade, sendo uma delas não se incomodar com a fome no país (PINKER, 2002).
 Por esta perspectiva, temos a competição como alavanca para a existência da vida humana e das espécies em geral. Pelo darwinismo social desvenda-se a natureza humana com o princípio da competição para a sobrevivência, e a partir disto faz sentido uma economia baseada no livre mercado, um mundo globalizado em que as melhores culturas são aquelas que não criam raízes e exploram outras culturas (ou resistem aos choques de culturas), a educação depende da sobrevivência dos mais aptos.
Até este ponto a escola deveria ter o papel de a) selecionar os melhores alunos ou b) criar condições para que os piores alunos sobrevivam, e ainda assim podemos imaginar que alguns não se adaptariam completamente. Este tipo de escola encontra seus entraves entre os anos 50-60, quando a escola e a educação oferecida devem garantir mobilidade social (SOBRAL, 2000), ou seja, estar de acordo com a escola tipo b). É esse período do pós-guerra que permite questionar as experiência dos discursos eugênicos de Adolf Hitler e sua expansão baseada na supremacia da raça ariana.
O progresso, a tecnologia e a competição não podem ser considerados avanços se estão próximas da barbárie (MORIN & WULF, 2003). É curioso como algumas pessoas conseguem agradecer a guerra por ter trazido os celulares, a internet, descobertas nas ciências da natureza e esquecerem-se das mortes, do medo, da exclusão e do autoritarismo reinantes nesse momento de avanço da civilização.
A guerra promove a competição pela vitória, pelo massacre do adversário, por aniquilar antes de ser aniquilado: esta é a primeira forma de competição. E para negar este tipo de competição cito Magalhães (2007):

Apenas as espécies menos complexas (referindo-nos ao ponto de vista do desenvolvimento de seus órgãos) parecem à primeira vista obedecer a teoria malthusiana que serviu de base a Darwin, em que há um número prodigioso de descendentes em cada geração, dos quais só poucos chegarão à fase adulta e apta para a reprodução, e em que a sobrevivência parece ser devida ao acaso e à maior adaptação ao meio. Alguns peixes, répteis e insetos podem comer uns aos outros e até mesmo seus parceiros sexuais e seus próprios ovos. Mas animais como os mamíferos superiores parecem agir diferentemente, com estruturas sociais mais elaboradas e o cuidado coletivo da prole. Portanto, mesmo em níveis menos complexos do que o homem, a regra não é a competição e a seleção, mas sim a cooperação e a interdependência entre os organismos, e isto não decorre de razões egoístas, pois está em concordância com a tendência à complexificação por nós defendida, que leva ao surgimento de componentes de socialização (p.23).

Podemos compreender, assim, que a teoria da seleção natural não explica sozinha a adaptação dos seres vivos aos seus ambientes, pois levaria tempo para a seleção dos genes e os ambientes mostram-se instáveis para considerarmos adaptações baseadas numa competição natural geracional. O biólogo e psicólogo Piaget (2001), cujos estudos repercutem até hoje na educação, oferece o desequilíbrio como princípio de aprendizagem do ser humano. O desequilíbrio é típico de um mundo que sempre se apresenta de forma diferente para a ação humana, e só há desequilíbrio externo (mundo) porque há desequilíbrio interno (organismo); é pelo aprendizado do mundo, garantido por processos constantes de assimilação e acomodação, que a criança cria estruturas cognitivas para se adaptar ao mundo, portanto, ela se equilibra, se adequa ao ambiente externo graças a um mecanismo filogenético que permite a ela apreender o mundo em estruturas próprias das fases de desenvolvimento da criança.
A natureza humana, para Piaget (2001), respeitaria os períodos sensório-motor (0-2 anos), pré-operatório (2-7 anos), operatório (7-11 ou 12 anos) e concreto (acima de11 ou 12 anos) e não está baseada na competição, mas na adaptação, o que inclui estágios para desenvolvimento da moralidade e da convivência em grupo, em que pouco importa combater, rechaçar ou possuir condições diversas a outro grupo, interessa saber como o grupo cria coesão interna a partir do ambiente criado pelos seus participantes.

A própria evolução se dá de forma a que a vida seja cada vez mais homeostática (capaz de regular suas condições fisiológicas internas, a despeito de variações no meio), até chegar nos pássaros e mamíferos que são homeotérmicos. (MAGALHÃES, p.24, 2007)

Não é a competição que gera desequilíbrio para avançar o desenvolvimento humano, é próprio da natureza biológica do homem que, segundo Piaget (2001), o ser humano desenvolva-se equilibrando-se ao ambiente e criando condições para que outros seres humanos desenvolvam-se também. Isto pode significar tanto a) um grupo que institui uma moral a ser seguida a risca, ou seja, a criação das escolas durkheimnianas que preparam os alunos para se adaptarem ao ambiente externo (a sociedade), quanto b) um grupo ciente de suas capacidades de mudar a natureza para atender as suas necessidades, daí o equilíbrio não está na adaptação, mas na transformação do ambiente externo, e com isto, a escola que pergunta porque as regras (a moral) são como são e se são justas.
Uma escola construtivista atende a conclusão b), não se baseia na competição, mas está atenta para as fases do desenvolvimento infantil e sugere situações de desequilíbrio para assimilação e acomodação de uma aprendizagem (para os estágios sensório-motor e pré-operatório, principalmente). No estágio operatório, a escola construtivista se interessa por criar espaços de conflitos entre os alunos para provocar o diálogo, a tomada de decisões coletivas e a autonomia. O planejamento das atividades do dia envolvendo professor e alunos ou mesmo os grêmios estudantis (que horizontalizam as relações hierárquicas entre alunos e a gestão escolar) são exemplos de espaços de conflitos sem competição.
Não existe competição onde existe senso de coletividade. O pleno desenvolvimento de uma vida só não perdura quando não são dadas as condições ambientes para que ela aconteça. Concluímos que a evolução, como já disse Lévi-Strauss (1976), não é apenas para frente. Se tomarmos um tabuleiro de xadrez como analogia as peças recuam, avançam, se deslocam para os lados, o próprio rei (que pode simbolizar aqui o objetivo da evolução) não é fixo e se move, e a dificuldade de capturá-lo é maior quanto mais ele se movimenta. Cada jogo de xadrez pede uma adaptação ao estilo de jogo do adversário, e de forma mais complicada, cada jogo exige que o jogador se adapte a cada jogada do adversário, pois a estratégia do adversário muda conforme o primeiro jogador mostra sua estratégia.
Conforme um ser vivo vive sua história num ambiente, está em completa interação com ele, não está sujeito apenas a ser mudado pelo ambiente, mas possui também artifícios para modificá-lo, e da mesma forma, o ambiente não está apenas sujeito as transformações do sujeito, mas transforma o sujeito. E tudo se dá de forma homeostásica.
Passando do complicado para o complexo, a competição é uma das estratégias a ser utilizadas, e geralmente ela faz o papel do peão no tabuleiro, com movimentos mínimos, curtos, sem recuar. Por mais que haja chances de se tornar uma rainha no fim do tabuleiro, o peão precisa ser protegido para chegar ao final do tabuleiro, o que pede riscos desnecessários e sacrifícios de outros peões ou de peças igualmente importantes. Em geral, os argumentos que utilizam o darwinismo social para sustentar a competição na educação demonstra a força do senso comum e de uma ideologia que encobre as lutas entre grupos ou classes na sociedade a partir de naturalizações sobre o desenvolvimento humano e formas produtivas de se desenvolver (que flertam com lógicas fordistas e tayloristas, por exemplo), que são importantes apenas para a manutenção de um sistema capitalista de produção.

O mito da melhoria da pesquisa no ensino superior:

A ideia de que a competitividade acontece através educação, inicia-se nos anos 90 (SOBRAL, 2000). É o auge da globalização, as fronteiras e os mercados estão abertos para as trocas comerciais, desenvolvimento tecnológico, novas especializações e oportunidades nas áreas de trabalho, e novas responsabilidades para a educação de gerar trabalhadores competentes para o mundo globalizado.
A educação passa a ser cada vez mais sistematicamente uma educação para o trabalho, como o termo capital humano (de Schultz) passa a designar. Isto não aconteceria sem as empresas que fazem girar o mercado e de uma menor intervenção do Estado na economia, típico de uma estratégia neoliberal. As empresas, nesse momento, produzem baseadas no conhecimento científico e precisam de inovações, de recursos que nenhuma outra empresa tem, e suas estratégias consistem em buscar “formação de pesquisadores altamente qualificados pelas universidades e pelos sistemas de pós-graduação e que são responsáveis pela produção científica de ponta e pela produção de novas tecnologias” (SOBRAL, p.5, 2000).
Estas parcerias são interessantes para o poder público sob o discurso de que seriam poupados investimentos no ensino superior na parte de pesquisa e essa verba poderia ser redirecionada para o ensino básico, principalmente para o ensino fundamental. O Fundef (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério), criado em 1996, não destina recursos ao ensino fundamental apenas por ser o inicio das conquistas da cidadania e da justiça social,

É o ensino fundamental que dá a formação básica para o futuro cientista, tecnólogo, técnico ou trabalhador, pois a introdução e a absorção de novas tecnologias características do novo paradigma produtivo exigem, além da formação específica, certos conhecimentos básicos e gerais. (SOBRAL, p.7, 2000).


Só em 2007, com o Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Básico de Valorização dos Professionais da Educação), os recursos que antes eram destinados apenas ao ensino fundamental alcançam o ensino infantil, o ensino médio e a educação de jovens e adultos.

A educação que atende aos interesses empresariais é tratada como mercadoria, é uma educação para a vida toda, deve ser escolhida com cuidado pelo usuário e será aceita pelo empregador se for conveniente para ele. Entrar no mercado de trabalho significa ter a educação (a mercadoria) que o mercado e os empregadores exigem, e toda educação pode ser recusada se não for conveniente.
A privatização do ensino superior significa mais do que instituições privadas trazendo recursos para que os laboratórios e departamentos das faculdades e institutos públicos façam pesquisas que lhes interessem, é a adequação do ensino superior à lógica do mercado. É desta forma que laboratórios de química se envolvem mais ativamente pesquisando cosméticos, laboratórios de farmácia e medicina são incentivados a escrever artigos omitindo informações negativas sobre o uso de um produto novo e caro que chega ao mercado, laboratórios de biologia selecionando e cruzando genes para gerar plantas transgênicas que atendam aos gostos do mercado.
A ideia da possibilidade de comprar esse produto traz a ilusão de que as empresas, em sua grande maioria, estão a nosso favor, que elas possuem alguma consciência sustentável e social. A concorrência parece boa quando empresas de telecomunicações oferecem serviços diferenciados de telefonia e tentam melhorar a qualidade baseado no seu concorrente, garantia para o comprador de serviços de que ele poderá contar com um ótimo serviço de telefonia se houver competição (e obviamente se não houver formação de carteis).
Passa a ser ainda melhor pensar que podem existir parcerias público-privado entre a universidade pública e empresas para que aconteça o avanço na qualidade dos produtos, que podem ser consumidos por todos porque é público. O maior problema é a criação de uma patente que transforma o conhecimento de um espaço público com responsabilidade social pertencendo a uma empresa, daí o acesso ao conhecimento passa pelo pagamento à empresa que contribuiu para gerá-lo.
O trabalho das empresas considera o lucro, por isso estão próximas de laboratórios das áreas de ciências da natureza e matemática. Se não for possível gerar lucro com a pesquisa (que se transforma em produto com a patente) ela é apenas perda de tempo, um conhecimento que não gera ganhos. Por este motivo que as ciências humanas não possuem tantos vínculos com empresas, a não ser que haja tecnologia como palavra-chave da pesquisa. Na área de educação, as empresas se envolvem mais quando está implícito a criação de recursos audiovisuais pedagógicos, jogos educativos ou aplicativos de redes móveis. Em suma, algo que possa ser patenteado para ser vendido. Os estudos de ciências sociais, por exemplo, tem como tema a violência, a política, a distribuição de riquezas, interesse sobre o bem público, disputas entre grupos, preconceitos, produção de conhecimento. Dificilmente vende-se esse tipo de conhecimento, a não ser por cursos e palestras, e só é possível se o pesquisador do tema for apresenta-lo, dinâmica totalmente diferente de usar um produto sem precisar que seu pesquisador esteja lá para explicar o produto.
O compartilhamento entre o público-privado num mesmo espaço só acontece quando ambos possuem o mesmo interesse. O público, por definição, é de todos, logo, não pode se reduzir ao privado, que é o que há de mais particular num bem. O privado, em sua particularidade, pode vincular e desvincular seus interesses de acordo com sua vontade, pode inclusive agir em prol do público com solidariedade e reciprocidade, que é o que esperamos dos agentes públicos: pessoas que representam o Estado e cujo trabalho consiste em acatar aos interesses da população, mesmo que estes não sejam seus próprios interesses. O privado mostra-se muito flexível, o público não. O público só não é flexível porque suas decisões são tomadas de forma mais complexa do que no privado, o público comporta muitas privacidades (cada pessoa da população) e os interesses nem sempre são convergentes.
O público só se comporta como privado quando um agente público numa posição de poder utiliza sua influência para servir aos seus próprios interesses. Esta parece ser uma ideia tão atrativa que não vemos apenas um ou outro político nesta situação, mas uma rede de representantes do setor público atuando como se fossem entes privados: tomam um bem de todos como se fosse um bem pessoal.
Se as empresas estão dentro das universidades públicas é porque temos reitores, diretores, chefes de departamentos e pesquisadores interessados em trabalhar conjuntamente com as empresas. A discussão torna-se mais complicada por serem as empresas que possuem a tecnologia de ponta, logo, para que se produza conhecimento novo e inovador, é impensável fazê-lo sem o auxílio das empresas, suas patentes e suas tecnologias. Por outro lado, as empresas buscam as universidades, nos anos 90, porque são elas que possuem um conhecimento que interessa as empresas, porque há pesquisas com potencial para vendas – novos produtos no mercado. Não seria correto afirmar que quando as empresas começam a adentrar as universidades elas passam a se apropriar dos novos conhecimentos produzidos nesse espaço público e por isso hoje em dia é a universidade que deve ceder aos caprichos de algumas empresas (e torcer que elas queiram utilizar esse espaço) e não o contrário, como nos anos 90.
Tudo isto decorre de uma lógica neoliberal que se apresenta num pensamento mercantilista da educação, a mesma lógica que leva os governos de Fernando Henrique Cardoso e Lula a adequarem a educação pública aos interesses econômicos em voga, daí se aprova a Lei da Filantropia, em 1998, trazendo vantagens fiscais para as instituições privadas; Lei de Inovação Tecnológica, em 2004, que permite a transferência de tecnologias das universidades e centros de pesquisa para as empresas; Lei da Parceria Público-Privado, também em 2004, já mencionada; A Lei de Diretrizes e Bases que reconhece instituições privadas sem fins lucrativos como possíveis de participar na educação; o Plano Nacional de Educação apontando para uma “racionalização dos gastos públicos e o incentivo à composição de um sistema de educação superior diversificado, com instituições que atendam diferentes demandas e funções” (MANCEBO & LÉDA, p.3, 2009); criação de bolsas estudantis pagas com verba pública para o ingresso de estudantes em instituições privadas, como é o interesse pela expansão do FIES (Programa de Financiamento Estudantil) e o surgimento do ProUni (Programa Universidade para Todos).
Parte desse incentivo às instituições de educação superior privadas só acontece, como mencionam Mancebo & Léda (2009), por recomendação do Banco Mundial para criar um ambiente positivo para que as instituições privadas de ensino superior possam ter condições de igualdade a partir de incentivos financeiros provindos do Estado.
Para Léda & Mancebo (2009), é evidente que só poderemos retomar o ensino superior público com “a superação do modelo neoliberal e a retomada da esfera pública como central e estratégica”. Mesmo porque as lógicas entre o público e o privado acontecem de formas diametralmente opostas, por mais que as pessoas queiram acreditar que as empresas possam ser um bem elas se iludem em achar que os valores dos empresários são primordialmente sociais e não econômicos, e ainda se fosse, tentam justificar questões tipicamente sociais com avanços econômicos e reduzir aquilo que é tema de uma sociologia, antropologia, ciências políticas ou educação à competição econômica do país a nível internacional.
De boas intenções o inferno está cheio, e muitas dessas boas intenções caminham juntas do darwinismo social: “Como você espera dar educação para todo mundo?” ou “Universidade pública não aguenta tanta gente assim” são questionamentos que estão na contramão do direito à educação. É dever do Estado oferecer educação, e não há discussão, se ainda não é possível que todos tenham essa educação é de responsabilidade do Estado investir de forma que todos consigam ter uma boa educação, pois não estamos falando de uma mercadoria que pode ou não estar a venda, é um direito fundamental inalienável de qualquer sujeito de direitos no planeta Terra, embora ela seja tratada como luxo quando vira mercadoria.
Os mais utilitaristas utilizarão o darwinismo social dizendo que tudo bem não ter educação para todos, não são todos que estão adaptados para chegar à universidade, o que acaba com o problema de contingenciamento de estudantes nas universidades. É interessante até para a produção científica e para a pesquisa, que não precisará lidar com pessoas atrasadas (e geralmente evocam-se eugenias de todo tipo aqui, principalmente, no Brasil, com relação às etnias africanas e afro-brasileiras associadas à pobreza e a péssima educação).
O neoliberalismo na educação não contribui para a afirmação do direito à educação, como demonstra a história brasileira nos anos 90. Estimula-se uma educação para as empresas, para a prestação de serviços, daí que o ensino técnico é tão importante para essas propostas econômicas, e a cidadania é formação secundária, por mais que seja entendida pelos empreendedores como possível. A universidade passa a ser lugar de poucos e a meritocracia faz o papel de illusio (BOURDIEU, 2001), isto é, ela encobre os reais interesses econômicos de um campo fazendo-os parecerem interesses que privilegiem o bem comum. E como sabemos todo campo social está em disputa com outro campo social, ele concorre e compete por um capital escasso. Competição incentivada pela necessidade de sobrevivência no campo, que é mais um problema social (ontogenético) do que de natureza humana (filogenético).
As empresas lutam pelo primeiro lugar no pódio da economia, o Estado possui o mesmo interesse e se une às empresas (uma vez que boa economia é vista como sinônimo de poder), mas a cidadania não é uma questão de primeiro lugar ou de ter muito dinheiro: é ter dinheiro suficiente para que os investimentos em educação proporcionem distribuição dos capitais político, simbólico e cultural para que a educação básica consiga favorecer a participação ativa dos cidadãos na sociedade, sua autonomia sobre o mundo em que vivem e que não sejam meros consumidores dos serviços do Estado (BRANDÃO, 1984).

Este segundo tipo de competição em muito se parece com aquela das guerras, o que muda é que o desenvolvimento tecnológico, o incentivo a ciência e a qualificação para o trabalho são as novas armas e os índices econômicos tornam-se o placar; o objetivo passa a ser focado em resultados, é uma competição maquiavélica em que os meios justificam os fins, e feita de forma tão dissimulada que chegam a encobrir seus objetivos reais com objetivos declarados que estão em completo acordo com a Lei (SAVIANI, 1997).

O mito da melhoria das escolas públicas pela gestão empresarial:

Se a competição fosse desejável nós poderíamos utilizá-la sem pestanejar. Poderíamos desejar entregar bonificações aos professores com maiores notas nas avaliações internas e, principalmente, externas da escola; comparar as avaliações externas entre escolas, premiando as mais competentes, quem sabe publicar os resultados de cada escola e de cada professor nos jornais; e porque não comparar os alunos entre eles com as notas num grande mural da escola?
O problema é que essas competições acabam voltadas para os resultados, assim como no segundo mito – da melhoria da pesquisa do ensino superior – e pode-se perceber que os profissionais perdem o senso de colaboração e as relações interpessoais dentro da escola são desmanchadas, o que diminui a qualidade das condições de trabalho no local e torna as pessoas mais aversivas e distantes simplesmente porque competem entre si por um salário melhor. O fim esperado pelo professor é um aumento, só o recebe porque seu aluno conseguiu a nota esperada pela meta da escola.
Em geral, o salário dos professores é dividido em uma parte fixa e outra variável, o bom desempenho dos alunos contribui para que essa parte varável cresça. A educação virá “bater meta”, assim como nas empresas, e os alunos sentem a diferença na sua educação, é exigido um desempenho crescente deles, deve ser cada vez maior.
As notas dos alunos não se refletem apenas no salário dos professores, mas também na classificação entre escola para decidir qual receberá aumento de verba. “Premidos pela necessidade de apresentar sua escola como uma boa instituição à comunidade, reproduzirão práticas que tenderão a afastar de suas salas e de suas escolas alunos com dificuldades para a aprendizagem” (FREITAS, 2012).
Sem contar que a distribuição de verbas para as escolas visando a premiação pela classificação, mesmo que haja uma quantidade fixa no repasse, aumenta a verba das escolas que estão bem colocadas, permitindo que elas possam melhorar suas instalações e comprar recursos essenciais para melhorar ainda mais seu desempenho nos testes padronizados (comprando material escolar bom para os alunos, pagando bem os professores, pintando a escola, consertando as carteiras, etc.), enquanto as escolas que não estão bem classificadas continuarão do jeito que estão, recebendo o repasse de sempre, tendo que escolher muito bem em que será investido, sendo que poderiam ter um resultado melhor se fossem destinados recursos a elas.
Esta competição é, para Freitas (2012), formas de responsabilizar o aluno e a escola pelo péssimo desempenho nos testes padronizados sob a justificativa meritocrática, sendo a responsabilização e a meritocracia acompanhadas de privatização das escolas.
Freitas (2012) constata que os reformadores empresariais da educação além de diminuir as interações entre grupos, a diluir o senso de coletividade pela individualização das ações e criar um ambiente fatigante e desestimulante para os trabalhadores e para os alunos, percebe, ainda, o estreitamento curricular: “A escola cada vez mais se preocupa com a cognição, com o conhecimento, e esquece outras dimensões da matriz formativa, como a criatividade, as artes, a afetividade, o desenvolvimento corporal e a cultura” e afirma que “se conseguir ensinar o básico, já está bom, em especial para os mais pobres” (FREITAS, p.389, 2000).
As fraudes dos testes padronizados são outro aspecto conhecido nas escolas que são colocadas sob atmosferas competitivas: “As variáveis que afetam a aprendizagem do aluno não estão todas sob controle do professor. Esta pressão e controle produzem um sentimento de impotência, associada à necessidade de sobreviver, que tem levado à fraude” (FREITAS, p.392-3, 2012).
As escolas, prezando seus resultados nos testes padronizados, passam a escolher melhor seus alunos, a selecioná-los de forma que aumente a segregação socioecônomica no território e nas escolas, como menciona Freitas (2012). Os alunos redirecionados são conhecidos por alunos de risco.
Geralmente, no ensino básico, a privatização começa nos cargos administrativos da gestão escolar. O que permite acesso e autonomia para cortes nos recursos da escola (mesmo que viole o princípio da gestão democrática) para fazê-la funcionar de forma eficiente e utilizando o menor número de materiais possível, ao mesmo tempo, o ensino dos alunos é baseado numa cartilha ou outro material que economize tempo de aula e tenha um conteúdo minimalista (como deixar de abordar gênero na sala de aula, relações étnico-raciais, pouca ênfase nas artes e na educação corporal), servindo a interesses ideológicos.
Isto tende a acontecer com facilidade porque os diretores escolares costumam ser indicados pelos secretários de educação. São poucas as escolas que se utilizam de um sistema democrático dentro da escola para eleger seus gestores.

Justamente pela falta de critérios sérios e claros, o que se verifica Brasil afora é a prática das indicações políticas para os cargos de confiança e a escola, é claro, não foge à regra. Interesses partidários se sobrepõem às necessidades e aos desejos da comunidade escolar que, sem participação efetiva, muitas vezes tem de receber uma pessoa cuja trajetória se desconhece, tampouco os critérios que a conduziram à função. Essa alienação de professores, pais e alunos pode, se não tornar a gestão impraticável, ao menos iniciá-la de maneira forçosa. (GURGEL, On-line)

Paro (2011), sobre a função do diretor, comenta que sua formação não pode ser pensada apenas em seu aspecto técnico (como acontece no neoliberalismo). O diretor não é apenas administrador ou executor de um serviço, deve pensar a escola não apenas como uma economia, há a pedagogia por detrás, ou melhor, não há lugar que represente de forma tão simbólica a pedagogia como faz a escola. O gestor é primeiramente um pedagogo, pois seus interesses estão voltados para a educação, e como já venho argumentando, uma educação para a competição não é uma educação para o cidadão. Segundo Paro (2011), os professores e demais funcionários da escola (podemos chamar a todos de educadores) estabelecem ótimas relações dentro da escola quando conhecem de perto os trabalhos dos funcionários, quando mantém correspondência direta e convivem com seus colegas de trabalho. Isto reforça ainda mais a eleição de diretores como participação política da comunidade escolar, respeito ao princípio da gestão democrática, e fortalece a democracia como direção moral dentro da escola e fator importante para a formação política de todos os envolvidos: educadores, educandos, família e comunidade.
Esta competição é tão maquiavélica quanto a que acontece no ensino superior, só que a competição do segundo mito está voltada para a apropriação dos meios de produção (conhecimento e tecnologia científica) (MARX, 1996) por um pequeno grupo do setor privado, enquanto o ensino básico é o momento de preparar o aluno para o cenário competitivo que ele encontrará no mundo; é uma competição para predisposição das ações, das expectativas, de formas de pensamento, linguagem e de fazer o indivíduo apreciar o mundo da competição, em outras palavras, é o ensino formador de um habitus (BOURDIEU, 2001), que declaro explicitamente como habitus competitivo.

(continua no próximo post)