1ª Atualização em 23/12/2017: complementação da argumentação de O mito de uma economia neoliberal com cidadania com acréscimo de Nicolau (2017) à bibliografia.
O mito da melhoria nas condições de trabalho:
O mito da melhoria nas condições de trabalho:
Quando nos descentramos
dos estudos sobre o campo escolar, podemos aludir o campo do trabalho em sua
generalidade, não apenas da realidade dos professores, e perceber como ele vem
se organizando a partir do sistema econômico capitalista baseado numa economia
informacional e global que, a partir de Castells (apud AFONSO & ANTUNES,
2001), pode ser compreendida da seguinte forma:
É informacional porque a produtividade e competitividade das unidades ou agentes desta economia (quer sejam empresas, regiões ou nações) dependem fundamentalmente da sua capacidade de gerar, processar e aplicar com eficácia a informação baseada no conhecimento. É global porque a produção, o consumo e a circulação, assim como os seus componentes (capital, mão-de-obra, matérias-primas, gestão, informação, tecnologia, mercados) estão organizados à escala global, quer de forma direta, quer mediante uma rede de vínculos entre os agentes econômicos. É informacional e global porque, nas novas condições históricas, a produtividade gera-se e a competitividade exerce-se por intermédio de uma rede global de interação. (...) O vínculo histórico entre a base do conhecimento-informação da economia, o seu alcance global e a revolução tecnológica da informação é que dá origem a um sistema econômico novo e distinto (p.85).
A educação,
a partir desta nova racionalização econômica, é pedra angular no funcionamento
do sistema de produção global/informacional por ser capaz de incorporar no
trabalhador suas qualificações para o trabalho, tornando-o altamente produtivo.
Além do mais, trata-se de uma educação durável e especializada, difícil de ser reprogramada
(termo de Castells). Esta demanda surge da União Europeia com a crise do
Estado-Providência, a partir daí são criados documentos oficiais onde se
utilizam largamente de expressões como sociedade de aprendizagem, capital
humano, sociedade cognitiva, competividade de empresas e produtividade, cujos
interesses são tornar os países-membros produtivos economicamente e garantir um
status de sociedade justa e igualitária (AFONSO & ANTUNES, 2001).
A educação estaria
voltada, deste modo, para perceber as mutações nas novas organizações de
trabalho e a formar um indivíduo que fizesse avançar a competição que move a
ideologia econômica dos países, com o risco de separar os trabalhadores entre qualificados
e não qualificados, em que os trabalhadores qualificados estão diretamente
ligados aos interesses produtivos e competitivos das empresas e corporações,
sem contar que estão diretamente ligados a sua ideologia financeira, enquanto
os não qualificados devem passar por programas de educação e formação
oferecidos pelos próprios empregadores. Sem contar a diferença entre
trabalhadores programados (ou especializados) e genéricos (classificação de
Castells), em que o segundo tipo está mais vulnerável e é mais dispensável que
o primeiro.
Com o
afastamento do Estado-Providência os trabalhadores passam a se responsabilizar
pela sua educação e a “aceitarem os empregos que lhe são propostos, sob pena de
perderem subsídios do Estado” (AFONSO & ANTUNES, 2001, p. 89). Os efeitos desta
concepção liberal acabam por extinguir a organização coletiva e a solidariedade
entre os trabalhadores, que se veem cada vez mais individualizados e com seus
interesses e valores modificados para sobreviver dentro de uma sociedade do
trabalho em que desaparecem os direitos sociais do trabalhador.
A educação
deveria ser uma aprendizagem contínua sem fim, a possibilidade de um sujeito se
reformar a partir da reflexão de si mesmo, de imaginar seus projetos, seus
desejos, suas vontades, suas motivações e ter acesso às condições materiais e
simbólicas que permitam que ele possa sentir-se realizado com aquilo que ele é,
condição de existência promovida pela aprendizagem de conhecimentos, bem como
por sua criação ou construção nas relações e interações com o outro (ambiente,
instituição, cultura, pessoa, por exemplo). Esta educação é deixada de lado com
a interferência de políticas neoliberais que incentivam a competição;
desestabilizam as ecologias humanas (e até ameaçam a sustentabilidade de
qualquer tipo de relação) por substituir um wellfare
state por um workfare state, no
raciocínio de Afonso & Antunes (2001).
A dicotomia
entre formar um cidadão/formar um trabalhador, inconciliável na
visão de alguns teóricos, é solucionada, ainda com base na competição, por
aqueles que defendem a terceira via,
que buscaria formas de superar esta dicotomia justamente por nos encontrarmos
num mundo globalizado que não pode abrir mão da competição para a produção, mas
se preocupa com as condições sociais dos indivíduos que participam nela. March
(1991) pode ser considerado um desses teóricos da terceira via (ainda que não declarado) na tentativa de conciliar os
interesses de pessoas numa organização e dos códigos da própria organização.
Ele argumenta que ambos os sentidos de exploração - exploitation e exploration
- são desejáveis e essenciais a qualquer tipo de organização, sendo que “Exploration inclui coisas captadas por
termos tais como pesquisa, variação, assumir riscos, a experimentação, o jogo,
a flexibilidade, a descoberta, a inovação”, enquanto “Exploitation inclui coisas como refinamento, escolha, produção,
eficiência, seleção, implementação, execução” (MARCH, 1991, p.71tradução
livre).
Pensando em
questões de aprendizagem, formação e educação, exploration possui uma baixa produtividade à longo prazo, não
garante habilidades apropriadas para o trabalho a ser realizado e permite que o
indivíduo se afaste dos objetivos da organização, mas permite uma melhor
adaptação ao ambiente organizado, surgem inovações no processo produtivo e a
experimentação de habilidades, além de ser mais provável que ele adeque suas
crenças aos códigos da organização por ter-se utilizado da reflexão para saber
se isto poderia ser bom ou não para ele, sendo capaz que este indivíduo tenha
algo a contribuir com a organização.
Em
contrapartida, permitir um explorer
(no sentido de aventureiro) na organização dissipa aquilo que está instituído,
organizado, regrado e que identifica essa organização enquanto organização. Em
outras palavras, a algo que torna a Google o que ela é, assim como a Microsot,
o Santander, etc. Existem aspectos que precisam ser preservado e são
inegociáveis, por isso March (1991) defende a exploitation como contra balanço, um princípio de autoridade que
mantém as coisas como elas são e se espera que sejam.
March
(1991) propõe o aprendizado mútuo
como modelo de desenvolvimento do conhecimento entre a socialização esperada
pela organização e crenças pessoais dos indivíduos, que dispõe de: a) uma
realidade externa independente de crenças que incorram a partir dela; b)
crenças de um grupo de indivíduos acerca dos códigos dessa organização,
recebidos como verdade; c) modificações nas crenças dos indivíduos a partir de
sua socialização na organização e aprendizado de um novo código de crença; d)
adaptação da organização às crença dos indivíduos, pensando que a diversidade
de crenças criam múltiplas realidades acerca da organização e ela deve
adaptar-se para atender as várias percepções e expectativas que os indivíduos
criam acerca dela.
O resto do
artigo de March (1991) consiste em dados estatísticos que se traduzem nos
efeitos de uma socialização rápida (preferível para a produção) ou de uma
socialização lenta (preferível para incorporação dos valores e códigos);
aprendizagem em grupos heterogêneos é preferível a grupos homogêneos, pois
garante diversidade de pensamentos, de ações e contribuições, desde que sejam
misturados grupos de aprendizagem rápida e aprendizagem lenta; e ainda ações
que seriam preferíveis tomar em situações de recrutamento de um indivíduo ao
código de crenças da organização e quando turbulências modificam o ambiente a
ponto de impedirem a adaptação (ou o aprendizado) do indivíduo.
De qualquer
modo, esta ideia da competição está no cuidado para competir. A competição não
precisa ser sempre rápida, intensa e produtiva, este tipo de competição é
auto-destrutiva, pois as organizações, instituições, corporações e mesmo o
Estado lidam com recursos escassos (e não acredito que esta preocupação envolva
uma ecologia da natureza). Mach (1991) acredita que toda produção pede
competição, mas existem formas produtivas de se competir e formas destrutivas,
por isso exploration (aprendizado
lento) e exploitation (aprendizado
rápido) devem ser formas de conhecimento em equilíbrio.
Esta
posição de Mach (1991), como de Afonso & Antunes (2001), propõe uma
ecologia da competição, como quem diz, “já
que estamos num mundo globalizado, vamos tentar viver de forma harmoniosa”.
Uma proposta mais interessante e ousada do que aderir à globalização ou aos
ideais de produtividade e competitividade é uma proposta socialista de Mészáros
(2007) de não aderir à lógica do capital e nem de usar qualquer uma de suas
ferramentas, pois isso significaria a ínfima possibilidade de retornar a um
cenário inconveniente que algum dia já existiu.
Por mais
democrática e atrativa que possa parecer a assertiva de Mach (1991) sobre a
organização de um local de aprendizagem onde todos tenham seus sistemas de
crenças relevados, deve-se pensar que a propriedade não pertence a todos, a
propriedade possui proprietário e existe uma realidade que não pode ser
modificada, que é a realidade percebida pelas crenças e verdades do
proprietário que detém os maios de produção, e ele só os detém porque os
trabalhadores não detém nem propriedade nem meios de produção, por isso eles
devem servir aos interesses do proprietário que troca salário por força de
trabalho (MARX, 1996).
Ao falamos
de produtividade, falamos de mercadorias. Ao falarmos de mercadorias, falamos
de preços que se assemelham ao valor de uso e a quantidade da força de trabalho
investida na produção da mercadoria, que é quando a lógica recai sobre o
funcionamento do capital pela mais-valia: a exploração da força de trabalho do
trabalhador pelo pagamento de uma parcela menor que o total de tempo e energia
dispendida no processo de produção, donde as demais parcelas são o lucro
apropriado pelo empregador, que também é a força de trabalho não paga do
trabalhador (MARX, 1996).
Por que não
fazer como nas escolas que fazem gestão democrática ou privilegiar economias
alternativas, como é o caso da economia solidária, em que todos os envolvidos
não mantem relações hierárquicas, sentindo-se mais a vontade para cooperar,
decidir e exprimir suas ideias? Parte do mito da melhoria nas condições de
trabalho acontece pela ideia de que é necessário ter alguém especializado e
suficientemente educado para distribuir tarefas, caso contrário os
trabalhadores não saberão se organizar. Em parte é verdade, mas preenchendo a
lacuna: eles não se organizarão e usarão as técnicas e habilidades exigidas na
relação empregador-empregado, pois eles passam a decidir conjuntamente como
acontecem os tempos e espaços de trabalho. Os trabalhadores apenas não seguem a
organização do sistema de valores e crenças do empregador, e é daí que surge este
mito: há uma divisão de pensamento entre trabalhadores genéricos e
trabalhadores altamente produtivos, sendo que os últimos carregam a ilusão de
serem realmente capacitados, e esta forma só é naturalizada no senso comum
quando este empregador ou grupo de empregadores que querem exercer sua
dominação levam os trabalhadores (genéricos e altamente produtivos) a crer e
afirmar seu discurso como se fosse uma verdade, que funciona como ideologia a
favor do grupo dominante;
Nesse
discurso está implícito a institucionalização da educação: onde existe boa
educação e onde existe má educação, ou, onde está a educação legítima e que
vale a pena ser aprendida. A dominação leva o dominado a acreditar que ele não
possui educação e que depende de alguém numa posição superior para educá-lo,
permitindo que aconteça uma violência simbólica, cuja função é medir forças
entre os valores e crenças dos dominados e dos dominantes de forma que os
dominantes consigam subjugar (através da educação) as vontades e desejos que
vigoram em seus interesses.
Trazendo ao
tema os profissionais da educação, não se pode negar uma precarização do
trabalho que existe com as políticas neoliberais, que prestigia o aspecto
prático e técnico da formação. Representantes deste modelo, como a Teach for America forma seus professores
em dois meses (FREITAS, 2012) e depois são mandados para áreas de risco para
mudar a realidade das crianças que vivem situações de pobreza, violência e
conflitos sociais; o trabalho é realizado sob o objetivo declarado (SAVIANI,
1997) de prezar o “desenvolvimento humano”. Apesar do slogan benevolente,
O problema disso tudo é que eles [organismos multilaterais, como a ONU e o Banco Mundial, cujas metas globais são apoiadas por ONGs, como a Teach for America] não pretendem resolver as causas estruturais das injustiças que alegam combater. Assim, as metas globais de desenvolvimento (que aparentam se preocupar com a qualidade de vida, estabelecimento de objetivos para educação, saúde, inclusão social etc.) têm como interesse garantir que os índices de produtividade continuem crescendo, explorando cada vez mais o trabalho das pessoas, que seguem tendo uma vida de grandes sacrifícios e dificuldades. Assim, a meta principal desses organismos é perpetuar as condições para que o capitalismo e suas desigualdades continuem existindo (FUNDAÇÂO ROSA LUXEMBURGO, p.10, destaque do autor).
Por estas e outras razões há uma aderência a
políticas de responsabilização do professor, a avaliações constantes e
exposição dos resultados, o profissional da educação passa a ser visto como um
trabalhador genérico, facilmente substituível, amputável, descartável e
desvalorizado, por isso, desmoralizado.
A educação
boa, com a desmoralização da profissão de professor e educadores, passa ser a
educação oferecida por empresários, que ensinarão a partir do paradigma das
competências e excelências esperadas do trabalhador num cenário competitivo e
produtivo para gerar lucros aos grupos dominantes. Cada vez mais o discurso de
que o privado é melhor que o público cresce por assentar-se na meritocracia, o
que possibilita privatizações do bem público alegando melhor gerência dos
recursos, que de uma forma compacta, acaba no Brasil, no Chile e nos Estados
Unidos, só para dar alguns exemplos, implicando em:
- · Relação empregatícia instável pela flexibilização das leis trabalhistas;
- · Baixos salários pensados pelos cortes de gastos (por isso professor trabalha em duas escolas diferentes, faz turno e contraturno, etc.);
- · Liberdade de cátedra reduzida com o ensino apostilado (empresário ditando as regras para ensinar);
- · A competição entre professores trazendo a sensação de que a atenção deve ser redobra às situações de perigo (notas baixas dos alunos, professores que foram bem avaliados);
- · Autoestima e integridades profissional e pessoal ameaçadas;
- · Temperamento irritadiço, insatisfação e sentimento de irrealização do profissional;
- · Atitudes antiéticas do profissional prestigiando resultados (dar resposta de uma questão aos alunos no momento de prova);
- · Concorrência entre valores pessoais e valores necessários para sobreviver no mercado de trabalho;
- · Reafirmação da hierarquia e de relações de poder.
Eu seria
mais dramático e diria que este é um quadro geral para qualquer profissão que
toma as políticas neoliberais como norte, uma vez que acaba
desresponsabilizando o Estado de seu papel de garantir condições sociais justas
a partir de um regime democrático para substitui-lo pelo livre mercado, a
concorrência, a competição, a produtividade, capital humano e o que valha para
contribuir para uma globalização dos interesses do capital.
O mito de uma economia neoliberal com cidadania:
O último
mito firma-se no antagonismo existente entre competição e cidadania. Esta
última é entendida como o direito a ter direitos, a termos responsabilidades
políticas e dever lutar por elas, a prezar a participação ativa e unir
interesses que serão discutidos e ouvidos nos ambientes de relevância para
esses temas independente das constituições fenotípicas, da trajetória social,
dos valores, crenças e motivações do sujeito de direitos.
Brandão
(1984) percebe uma educação voltada para a produção e para o consumo que cria
uma relação de dependência entre o cidadão e os serviços que os representantes
do Estado prestam, donde eles não reconhecem a importância de exercer sua
atividade política, posicionar-se contra os governantes ou reivindicar seus
direitos; os cidadãos formados nesse sistema de ensino tornam-se conformados,
passivos e consideram-se clientes do Estado, como se fosse uma relação entre
vendedor-comprador. Nesta relação o comprador não pode exigir que o vendedor
venda algo que ele não tem, mas quando esta lógica é quebrada não importa se o
Estado quer ou não, pode ou não pode oferecer educação, saúde, transporte,
saneamento básico, ele deve criar condições para que o direito exigido pelo
cidadão aconteça.
Desta forma
justificamos tantos votos brancos, nulos e abstenções das eleições para
prefeitos e vereadores no Brasil. Ainda que esta estratégia possa ser entendida
como insatisfação ao sistema político brasileiro, também carrega uma
passividade de um cidadão que acredita no discurso cabal do senso comum de que
política só tem canalha, ladrão, corrupto, aproveitador e que fazer política
não adianta para nada senão roubar, sendo mais proveitoso distanciar-se desse
nicho e contrair outras preocupações que satisfaçam seus planos pessoais e
familiares (amostra de individualização). Por existir pessoas (políticos) que
não sabem administrar o bem comum, seria muito melhor que ninguém dependesse de
ninguém, já que é natural do ser humano querer ter o que não é seu (e é assim
que se cria e difunde um mito poderoso que apenas se perpetua por não ser
devidamente investigado).
Os motivos
para não votar ou votar em branco/nulo são tão diversos e criativos que o
“fazer política” torna-se um ato de resignação com estratégias que em nada
ameaçam o poder dos governantes. A ideia de cidadania sofre reinvenções no seio
da população que exerce seus direitos (SILVA, 2004), inclusive pensar que votar
em ninguém é melhor do que votar em alguém. Na medida em que isto significa
participação, também significa contradição, já que o ato político tem um efeito
particular de não envolvimento com nenhuma tragédia que aconteça no cenário
político; ao invés de se envolver com o que é público, o cidadão-consumidor
escolhe não ter peso algum nas decisões esperando que alguém em algum lugar,
como num romance, venha montado num alazão e diga “Estes serviços não podem ficar assim! Você agiu certo em não votar;
convocaremos novas eleições com novos representantes sem históricos de
corrupção e que realizem pesquisas nos bairros que ficariam sob sua incumbência
para que os ideais do povo sejam seus ideais” e de alguma forma, sem muito
esforço por parte do sujeito de direitos, isto aconteça.
Quando
deixamos de comprar um produto de uma determinada marca, seu produtor pode
falir, pois esta é uma lógica do mercado. Os representantes políticos não estão
falindo por alguém deixar de fazer uso de suas políticas ou deixando de fazer
seus papéis de cidadãos, os impostos continuam sendo pagos do mesmo jeito,
parte desses impostos é revertido em salário e o restante é convertido em
subsídios para execução dos projetos desenvolvidos pelos representantes nas
eleições. Se os cidadãos estão fiscalizando ou não o bom uso da verba pública
isto não faz dos representantes políticos menos políticos, e se as ações deles
não são representativas eles não ficam menos políticos também.
Lógica de
mercado para eleições não funciona em insatisfação popular contra governos. A lógica de que o
Estado ofereceu algo que eu não quis deve ter como resposta aquilo que eu quero
receber do Estado, pois ele, por obrigação a uma constituição baseada na
vontade do povo brasileiro, deve atender às expectativas de seus cidadãos, que
por sua vez são defendidas por um sistema de representação, ou seja, os
governantes representam grupos menores.
É a
impossibilidade de atender a todos os interesses que fortalece concepções
neoliberais e traz o questionamento sobre os regimes democráticos com Estado
soberano serem possíveis estratégias de grupos dominantes de dar a ilusão aos
grupos dominados de que eles participam da política, embora estejam destinados,
por uma relação de forças baseada principalmente na própria forma do sistema
político que impede que seja de outra forma, dos dominados serem sempre
dominados.
A
diferença, entretanto, deve permanecer na obrigatoriedade da realização de um
direito e em como os cidadãos reclamam seus direitos. Se um cidadão vê no seu
direito uma mercadoria, ele não tardará em encontrar outras formas de conseguir
esse direito (como pagar uma escola particular para seus filhos ou ter um
convenio com um centro de saúde privado), e aí sim o privado passa a ser melhor
que o público, visto que o privado faz tudo o que o público não faz (atender
aos interesses e necessidades de um grupo ou classe), mas ele só é melhor
porque os cidadãos abandonam o bem público e esperam que seus representantes
façam algo que eles não poderiam fazer se esse cidadão não pronuncia de forma
explícita sua insatisfação. E com a adição do poder na política fica ainda mais
complexo, pois os representantes podem escolher ignorar seus representados
mesmo que gritem as incongruências e ineficácia dos governos e governantes. E
ainda assim uma atitude passiva não transforma a realidade política.
Se
utilizarmos números: João Doria foi eleito com 3.085.187 votos (53, 29% dos
votos diretos), na mesma eleição constam 367.471 votos brancos, 788.379 votos
nulos e 1.940.454 abstenções, que somados são 3.096.304, ou seja, tem mais
votos brancos, nulos e abstenções do que votantes do João Doria, sendo que São
Paulo foi a capital que mais teve abstenções, segundo o Tribunal Superior
Eleitoral (BRASIL, 2016), em divulgação on-line.
A população apta a votar era de 8.876.324 pessoas, se todas elas votassem (e
considero que quem votou em branco, nulo ou se absteve não votaria no Doria), a
porcentagem de votos diretos do Doria cairia para 34,75%, e a votação passaria
para o segundo turno.
Podemos
supor, de forma bem romântica, que Fernando Haddad recebesse todos os votos
brancos, nulos e abstenções, isto é, que os cidadãos-consumistas dos serviços
do Estado exercessem o voto direto. Os antigos 16,70% dos votos (967.190 de um
total de 5.780.020 votos diretos) tornar-se-iam 45,77% (4.063.494 de um total
de 8.876.324).
Podemos
recriar, ainda, um cenário imaginário em que as abstenções diminuíssem em 50% e
houvesse apenas 20% dos votos nulos e brancos que constam nas estatísticas,
somando 970.227; 630.702,2 e 313976,8 votos diretos, respectivamente, num total
de 1.915.906 votos aproveitados que somados aos 5.780.020 já existentes
totalizam 7.694.926 votos diretos; 73.494,2 votos brancos; 157.676,8 votos
nulos e 970.227 abstenções. Vamos supor, também que Haddad receba apenas 30%
destes novos votos diretos, Doria receba 10%, Erundina 20% e o Russomano fique
com 40% dos votos. A nova configuração seria a seguinte: Doria (42,59%),
Russomano (20,22%), Haddad (20,03%), Marta (7, 63%, nenhum voto adicional) e
Erundina (7,36%).
Doria não
alcança 50% dos votos e é convocado um segundo turno com menos representantes.
É interessante perceber como Russomano supera Haddad na colocação por
quantidade de votos e Erundina agora possui tantos tantos quanto Marta,
situação que não aconteceu na verdadeira votação. Só não melhora a situação de
Henrique Áreas, que nesta situação hipotética fica com 0,01% dos votos (de um
total de 5.780.020 votos diretos), ao contrário dos votos reais, que foram
0,02% (de um total de 7.694.926 votos diretos no cenário hipotético).
Para
convocar um segundo turno seria necessário aproximadamente 400.000 votos diretos,
isto é, um candidato que tivesse mais votos que a Erundina e menos votos que a
Marta. Estes votos poderiam ter vindo das abstenções, o que significaria 20,61%
de abstenções decidindo seu representante, que também significa apenas 4,5% da
população de São Paulo apta a votar, votando de fato.
Ainda que o novo turno não signifique vitória de algum outro representante em
função do Doria, traz novas expectativas e possibilidades no cenário político
que poderiam levar a reviravoltas num segundo turno. Se nesta mesma
configuração hipotética de apenas 50% de abstenções e 20% de votos nulos e
votos brancos, todos recebessem os novos 1.914.906 votos distribuídos entre os
onze candidatos, ainda assim haveria um segundo turno, pois Doria não teria
alcançado os 50% dos votos, estaria com 42,6% dos votos, antes com 53,29%;
Haddad teria 14,83% ao invés de 16,70% e Henrique Ária teria 2,27% dos votos em
relação aos esperados 0,02%. O aumento na quantidade de votos diretos faz
diferença tanto nas aparências daqueles que receberam poucos votos quanto desfavorece
os candidatos mais próximos dos 50% necessários para serem eleitos, e não é
necessário mais que 4,5% da população para que isto aconteça.
Se uma
população como a da cidade de Mauá votasse, o cenário de eleição seria
diferente. Seria mais difícil para aqueles que recebem a maioria dos votos
serem eleitos, pois uma minoria demonstra seus interesses a partir do voto, se
posiciona como cidadão numa ação direta, de outro modo, todas as ações são
indiretas, seu voto são os votos dos outros.
Sem mencionar que a Câmara dos Vereadores faz diferença na aprovação dos projetos de lei do prefeito, logo, os cidadãos deveriam preocupar-se em votar vereadores com alinhamento político igual ou semelhante ao do prefeito. Da mesma forma, o voto para presidência pede um alinhamento político com o voto de deputado para garantir sustentação parlamentar. As eleições para o Executivo parecem dominar a atenção dos eleitores a ponto de não se lembrarem de seus votos para o Legislativo. Nicolau (2017) apresenta algumas estatísticas do Estudo Eleitoral Brasileiro (Eseb) de 2014, na pesquisa os eleitores são solicitados a dizerem em quem votaram para deputado federal: "46% não lembram ou não sabiam responder, 33% listaram nomes de algum candidato e 22% disseram ter anulado ou deixado o voto em branco" (NICOLAU, 2017, p.65). Na consulta sobre os votos para deputado estadual, dessa mesma pesquisa, os resultados foram respectivamente 49%, 29% e 22%. Esses resultados geram a seguinte consideração: "o fato de cerca de metade dos eleitores já não se lembrar do voto para deputado federal e estadual poucas semanas após o primeiro turno é um sinal da reduzida importância que essa opção tem para eles", bem como as eleições para o Legislativo de uma forma geral (NICOLAU, p.66).
Ainda utilizando a pesquisa do Eseb-2014, citada por Nicolau (2017), 68% dos eleitores responde não ter predileção por um partido. Mesmo aqueles que dizem possuir uma predileção, com PT (18%) e PSDB (7%) como os principais partidos da pesquisa, mais de 30% desses eleitores votam em outros partidos. Por fim, passa a existir uma incongruência entre os votos para deputado federal e para presidente em 34% das respostas no Eseb-2014 demonstrada por Nicolau (2017), considerando apenas as respostas dos eleitores que lembram-se dos seus votos, com 40% de votos nulos ou brancos. Sugiro um comportamento eleitoral idêntico para as eleições municipais anteriormente descritas.
Sem mencionar que a Câmara dos Vereadores faz diferença na aprovação dos projetos de lei do prefeito, logo, os cidadãos deveriam preocupar-se em votar vereadores com alinhamento político igual ou semelhante ao do prefeito. Da mesma forma, o voto para presidência pede um alinhamento político com o voto de deputado para garantir sustentação parlamentar. As eleições para o Executivo parecem dominar a atenção dos eleitores a ponto de não se lembrarem de seus votos para o Legislativo. Nicolau (2017) apresenta algumas estatísticas do Estudo Eleitoral Brasileiro (Eseb) de 2014, na pesquisa os eleitores são solicitados a dizerem em quem votaram para deputado federal: "46% não lembram ou não sabiam responder, 33% listaram nomes de algum candidato e 22% disseram ter anulado ou deixado o voto em branco" (NICOLAU, 2017, p.65). Na consulta sobre os votos para deputado estadual, dessa mesma pesquisa, os resultados foram respectivamente 49%, 29% e 22%. Esses resultados geram a seguinte consideração: "o fato de cerca de metade dos eleitores já não se lembrar do voto para deputado federal e estadual poucas semanas após o primeiro turno é um sinal da reduzida importância que essa opção tem para eles", bem como as eleições para o Legislativo de uma forma geral (NICOLAU, p.66).
Ainda utilizando a pesquisa do Eseb-2014, citada por Nicolau (2017), 68% dos eleitores responde não ter predileção por um partido. Mesmo aqueles que dizem possuir uma predileção, com PT (18%) e PSDB (7%) como os principais partidos da pesquisa, mais de 30% desses eleitores votam em outros partidos. Por fim, passa a existir uma incongruência entre os votos para deputado federal e para presidente em 34% das respostas no Eseb-2014 demonstrada por Nicolau (2017), considerando apenas as respostas dos eleitores que lembram-se dos seus votos, com 40% de votos nulos ou brancos. Sugiro um comportamento eleitoral idêntico para as eleições municipais anteriormente descritas.
Se votos
brancos e nulos nãos são válidos para eleger um candidato (BRASIL, 2014) eles
não possuem poder de decisão, e a educação competitiva tende a fazer o cidadão
utilizar estratégias em que ele desconhece o funcionamento de outros campos que
não sejam o saber-fazer e o tecnicismo do trabalho, por isso, esvazia, como foi
o exemplo, o debate político de discussões que importam e enchem-no de
futilidades e falsas convicções que não levam a mudança alguma. O cidadão perde
de vista as transformações e como fazê-las (SILVA, 2004), pois sua realidade,
no mundo competitivo, restringe sua atenção para o que o faz ascender na
hierarquia, como progredir, o pensamento é em direção ao que ele sabe que
funciona, e presume que funciona porque todos fazem deste jeito. O sujeito faz
porque “sempre foi assim” (BOURDIEU, 2001).
Considerações finais:
Esses mitos tornam-se mais fáceis de serem difundidos quando nos defrontamos com as fatalidades de se viver num
mundo globalizado – “O mundo inteiro
funciona assim, não tem outro jeito” – ou quando fazemos apelo à ignorância
– “Me diga um país no mundo que não seja
competitivo e tenha um bom IDH”.
Esta forma de pensar é típico de
um país colonial que ainda vê na terras europeias as melhores formas de se
viver, modelando-se a imagem de seus antigos proprietários e querendo fazer
como eles fazem porque gostaríamos de viver como eles vivem. Parece muito menos
viver dignamente como eles vivem, mas é exatamente viver a dignidade que eles
vivem; e como todo país tem seus problemas e conflitos, não podemos dizer que
os países europeus vivem na plena dignidade, justiça e com cidadãos exemplares,
ainda que a França seja utilizada como
exemplo de um povo que luta por boa educação e nós tenhamos aproveitado muito
da pedagogia e da filosofia francesa para construir a educação brasileira.
Perdemos de vista as vivências
baseadas na exploration (MARCH,
1991), de aventurar-se, de descobrir, de inventar e inovar as coisas, fazer as
coisas no nosso próprio ritmo, produzir coisas que são boas para nós porque nós
fizemos, sabemos o que vivemos e podemos mudá-las sem maiores dificuldades, uma
vantagem sobre os meios de produção (MARX, 1996; MÉSZÁROS, 2008), sem precisar
recorrer à competição.
A política e o exercício da
cidadania envolvem tanto mais exploration
quanto exploitation dos
conhecimentos. Existe uma realidade que é constitucional e de direitos sociais
e imutáveis, e mesmo assim, se fosse um acordo entre uma gama significativa da
população poderiam haver mudanças neste realidade (in)tangível. A cidadania,
entretanto, é fundamental, pois se baseia numa educação essencial (MÉSZÁROS,
2008) que faz do sujeito um ser crítico e não alienado. Não há escapatória para
qualquer mudança, de forma dialogada, que não seja pela cidadania.
A escola, instituição formal de
educação, não é a solução de todos os problemas sociais, econômicos e políticos
como governos e governantes imaginaram e até imaginam (AFONSO & ANTUNES,
2001; SOBRAL, 2000), pois a sociedade não se constitui de um único sistema
formal, também não é uma instituição formal que será capaz de formar sem erros
os cidadãos, pois formar sem erros (ou formar mentes) nos leva a crer que
saímos acabados da escola, quando na verdade ela nos apresenta algumas
possibilidades de educação e de (des)construção (em todos os sentidos). É pela
educação não ter fim, acabar só na morte do último par de neurônios de um
sujeito, que ela deve ser essencial e não formal, como diz Mészáros (2008), e
com isto quero dizer que existe educação fora da escola. A escola pública não
deve ser toda a educação, mas deve ser também uma educação.
A escola pública é, e digo sem
pestanejar, um dos primeiros locais em que a criança entende o que é conviver
com diversidades, de ver e sentir o outro. É onde ela encontra um conflito e
não pode fugir para onde quer, e se foge (para casa ou para outro lugar) deve
voltar alguma ora e lidar com uma realidade que é inicialmente desprazerosa por
não acontecer como a criança espera que ela aconteça.
A cidadania pede conflito,
diversidade, alteridade, comprometimento, reciprocidade, respeito e senso de
coletividade, além de uma constituição que assegure o direito a ter direitos.
Tudo isto aparece de forma confusa no neoliberalismo, na produtividade, na
flexibilização de propostas, sob o discurso do capital humano; a competição
ameaça de forma considerável a existência de uma democracia deliberativa.
Podemos selecionar os campos em que a competição é preferível, como nas
empresas, talvez nos esportes (e Bourdieu, numa Sociologia do Esporte, e
Adorno, recorrendo a Auschwitz, ainda teriam críticas duras a serem tecidas
sobre a competição, principalmente quando remontamos no cenário das competições internacionais o
esporte como forma de dominação entre países), mas de forma alguma a política e a educação
se interessam pela competição se elas estiverem moralmente envolvidas com uma
perspectiva democrática de sociedade e da prática cidadã.
Em todo caso, o cenário educativo
traçado pelos órgãos internacionais, empresários e por políticos economicistas
se traduz em formar um indivíduo “produtivo no trabalho, subordinado na vida
cotidiana, dócil na política” (BRANDÃO, p.189, 1984), por isso, não formam
cidadãos.
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Questões em torno de uma nova agenda. Cadernos de Pesquisa, n.113, p.83-112,
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