1ª atualização: 29/11/2017.
Primeiramente...
(FORA TEMER!)
Sinto que falar sobre as greves na universidade, ao menos para mim, é falar
sobre as contradições vividas cotidianamente. Elas não estão aí porque são
novidades para serem discutidas, são coisas do dia à dia, que acontecem o tempo
todo e permitimos que aconteçam, mas alguém ou um grupo, por ímpeto ou coragem,
se levanta, apesar do constrangimento. A greve é utilizar de poder para
destituir outro poder sabendo que este detém um lugar privilegiado no sistema
de relações em comparação com aqueles que fazem uso do primeiro poder, dito de
outra forma, é resistir no jogo de imposição de forças, coisa de demorei para
compreender.
Antes da universidade a greve tinha um valor negativo para mim. Permaneci minha
vida toda num mesmo lugar, nesta mesma cidade chamada Campinas, neste mesmo
bairro que é a Cidade Universitária, próximo a esta mesma desejada universidade
que é a Unicamp. A política era aquela dos noticiários, das conversas em
almoços familiares, papo sobre ladrão; política era injustiça, mas eu tinha a
impressão, nos meus 15 anos, de que era uma porta giratória sem detector de
metal: fácil de entrar, fácil de sair e é um cubículo onde poucas pessoas
realmente sabem o que acontecem, e paradoxalmente, todos fora desse cubículo
também sabem o que eles fazem, dando a impressão de que os políticos eram
grupos de idiotas, sem instrução, com muito dinheiro e que não sabiam planejar
bem seus roubos, eram pegos com a boca na botija, então pagavam bem quem
sabia sobre eles e os crimes retornavam à normalidade.
E os cidadãos? Eu nem sabia o que isso significava. Meu único dever era para
com minha família, àqueles quem eu gostava muito e comigo mesmo.
Fazer política, na minha adolescência, era permitir ser contaminado por um
vírus extremamente contagioso que me transformaria numa piada em rede nacional
com comida boa na mesa e uma casa grande para morar ou ser mais um desses
camisas vermelhas preguiçosos que não querem saber de trabalhar. Cidadania era
ter nascido em território brasileiro, ter registro no cartório de Campinas e
seguir as leis de trânsito (e mais difícil do que entender política foi
entender porque as ruas são tão esburacadas e para que serve a faixa de
pedestres).
Dizer “Fora Temer” hoje é reconfortante comparado há 8 anos, quando nem fazia
minhas próprias pesquisas e acreditava no que meus pais contavam, por mais que
eu não gostasse do que fosse dito. A verdade é que eles pareciam tão fanáticos
conversando sobre política que me causava repulsa: minha mãe bradava “Lula é um
populista!” e meu pai respondia com dados estatísticos e argumentos econômicos
(coisa que não fazia sentido para esse pobre menino). A verdade é que meu
problema nunca foi a política, mas pessoas que falavam sobre política, vim
descobrir isto apenas na universidade, comparando um bom texto de Filosofia com
um mau militante.
Quando eu fazia piadas sobre mensalão, eu não sabia do que estava falando.
Sabia que existiam três poderes que regulavam o país graças às aulas de
história e estudando a transição entre império e república no Brasil. Até os 18
anos, eu vivi uma bolha bem resistente contra a política. Minha única política
era a de não agir politicamente, e me irritava quando na aula de filosofia/sociologia
o professor emitia esse postulado, porque, de uma forma ou de outra, eu estava
sendo político.
O que realmente importava era conversar sobre as pessoas, o que elas sentiam,
os planos que faziam para o futuro, modelos alternativos de sociedade, refutar
teses criacionistas, falar mal de futebol, se embaraçar com o amor, fazer
amigos, entender o sentido da vida, e outras tantas coisas que são política e
por resistência insistia em dizer que não eram.
Não sabia o que era um Congresso Nacional. Nunca existiu Corregedoria-Geral.
Ministérios eram três ou quatro. Senador? O que ele faz? Prefeitura tinha em
todas as cidades e município era seu sinônimo. A burocracia é velha, lenta e
atrasada. Votar era uma bobagem generalizada. Debater era ser emotivo e não
racional. A Verdade era uma essência que não estava na Política - esta nos
afastava dela.
De certa forma, a política era a pior forma de solucionar qualquer coisa porque
ela não tinha nada que ver com minha realidade: a de um adolescente de classe
média, meritocrata, racionalista, hedonista, imediatista, cujos objetivos e
projetos pessoais eram rasos e torpes para o atual autor. As experiências na
greve universitária foram vitais para que minha visão de mundo virasse de
cabeça para baixo.
Ao prestar o vestibular, na transição dos 17 para os 18 anos, pretendi cursar
Psicologia na USP e Pedagogia na Unicamp (não me atraía, mas era o que tinha
para aquele garoto). Comecei a cursar Pedagogia porque não obtive a pontuação
suficiente na primeira fase do vestibular para a USP, o que foi excelente para
minha formação política num ambiente tão contraditório que é o espaço acadêmico
da Faculdade de Educação e de seus militantes.
Todas as greves foram significativas, já que em todas elas eu aprendia mais
sobre poder, dinheiro, burocracia, ideologia, direito e educação. Coisas que os
espaços formais da sala de aula não davam conta, e provavelmente nunca serão
capazes de reconstituir esse tipo de experiências. Por isto, nunca é demais
reafirmar as causas políticas que nos formam enquanto cidadãos, de outro modo,
um “Fora Temer!” de hoje não é uma ideologia muito bem implantada como querem
acreditar alguns personagens nos bastidores deste memorial, compreende-se uma
educação rica e ambígua porque singular, na qual sou levado a profanar e
consagrar incontáveis vezes o que eu defendo. Minhas palavras ao tornarem-se
públicas permitem que os outros me vejam (ou pensem que me veem) por dentro e
me julguem: felicitando ou condenando minha fala, sendo a última a mais comum.
Entretanto, se uma pessoa não fala, como ela pode ser notada? Ao rejeitar a
política durante todos esses anos eu assinei um contrato de invisibilidade,
dependendo exclusivamente do acaso para fazer com que outra pessoa tivesse os
mesmos projetos que os meus e voz para defendê-los. Daqui em diante contarei
mais sobre essa educação política que a greve me proporcionou em quatro
capítulos.
Capítulo
1: primeira greve, assembleia e fazer parte da universidade
Esse
menino, que não ousaria nunca gritar “Fora Temer!” por achar que Direito e
Justiça são coisas iguais, entra na universidade rodeado de cartazes, chapas e
rostos sorridentes com camisetas vermelhas. Os alunos pediam três minutinhos
para o professor para falar com a sala sobre a nova chapa, pautas e novas
configurações do Centro Acadêmico de Pedagogia (CAP). Todos me tratavam muito
bem, nunca gritaram comigo quando falavam sobre política, parecia até que eu
estive errado minha vida toda sobre o significado dessa palavra.
Foi anunciado numa aula de Cinema, Educação e Cultura, em 2013, uma
assembleia geral dos estudantes para decidir greve. Pouco importa sobre o
porquê da greve, a única certeza é que falavam sobre isonomia salarial. O foco
aqui é o momento de todos decidindo uma causa comum, numa inscrição de falas
bem organizadas, explicando para os novatos como as decisões eram tomadas.
Todos os alunos sentiam que participavam de algo importante.
O gosto que criei pela política não foi racional, foi puramente emocional. O
desgosto por ela, da mesma forma, aparece atrelada ao desagrado e desprazer de
ouvir posicionamentos políticos de pessoas que confiam em qualquer informação
que ouvem nos jornais televisivos, acreditando piamente na imparcialidade da
informação, tomando liberdade de considerá-la saber, de dizer “eu sei sobre
isto”.
Mal começou a greve me senti dividido entre meus colegas de faculdade que
queriam ter aula e se pautavam no direito à mobilidade, o famigerado “direito
de ir e vir” (que recentemente descobri ser um princípio constitucional
utilizado apenas e exclusivamente por um magistrado em Direito) contra o
direito à liberdade de expressão – ou popularmente conhecido por direito à
greve, pelos militantes do CAP e associados.
Um grupo estava preocupado com sua formação universitária e o ambiente
não-formal da greve nada acrescentaria a eles. Corriam o risco de reprovar uma
disciplina, de receber um diploma sem as qualificações necessárias para sua
obtenção e de agir com libertinagem aos olhos dos pais, familiares, amigos e
brasileiros, em geral. O outro grupo reivindicava direitos sem medo de saírem
com algumas queimaduras ou de serem observados com desdém, estavam certos de
que isto fazia parte da militância.
Este último grupo me convenceu de que eles viam algo que ninguém mais
enxergava. O olhar das pessoas contrárias a eles estavam nublados por alguma
ideologia bem incrustada. Eu acreditava na Lei e no que as pessoas chamavam de
Lei. Os militantes falavam que as Leis estavam erradas e que não protegiam a
verdadeira população.
Os militantes estavam muito certos do que falavam. Rebatiam com postura todo
tipo de argumento que se manifestava contra eles. Também tinham um grande
número de pessoas presente nas assembleias, sempre os mesmos rostos, figurinhas
repetidas. Às vezes eram rudes, batiam de frente, eles sabiam o que
estavam fazendo ali. Nós, novatos, não sabíamos. Eles eram unidos. Nós mal
sabíamos os nomes uns dos outros. Eles tinham oratória. Nós éramos mudos,
tímidos. Eles sabiam os números das leis. Nós opinávamos. Eles corrigiam nossa
postura na assembleia. Nós nos sentíamos ignorantes.
Ali, “participando das decisões da universidade”, como diziam nossos veteranos,
nós, ingressantes entusiasmados com o ambiente acadêmico, nos sentimos
deslocados. As disciplinas da Pedagogia não tinham pré-requisito, a assembleia
também não, mas para um cientista político, aquela assembleia era um confronto
disciplinador: estudantes sem conhecimentos prévios de como funciona uma
assembleia recebendo instruções de seus veteranos, legitimando-os como
portadores de um saber que nós não tínhamos. Os militantes demonstravam sua hegemonia
pela oposição de ideias: se nossas ideologias não fossem coerentes e
harmoniosas, deveríamos ser disciplinados. Nossos corpos sofriam o
constrangimento do olhar de uma maioria que estava no poder da situação.
As pessoas afiliadas ao CAP comandavam as mesas. Convidavam-nos para participar
da condução da assembleia, mas quem, em sã consciência, aceitaria tal convite?
Somente alguém que sentisse conforto de estar entre eles. “Queremos ouvir
ideias opostas, precisamos delas”, eles diziam. Tudo Mentira. Depois de
fazermos nossa fala alguém ergueria a mão para se inscrever e rebater nossas
pobres opiniões como se vivêssemos doces ilusões. Acrescentariam em discurso
“Tem gente que acha que pensar assim, está bem, mas não está”, desmerecendo
completamente a fala dos ingressantes, quase um conflito pessoal.
Entramos em greve por votos que representaram uma maioria esmagadora. Eram
todos militantes, afiliados ao CAP e gatos pingados com os motivos mais
diversos. Erguer a mão para votar contra? Voto aberto. A retaliação era
eminente. Onde foi parar a democracia? Nas mãos dessas pessoas que sorriram
para nós no dia de nossa matrícula, e desta vez tinham um olhar sádico e
superior.
Em seguida teve assembleia geral na frente da reitoria. Primeira grande greve.
Reitoria ocupada. E eu atento para tudo, cauteloso para não me envolver demais,
mesmo que a animação de estar entre tantas pessoas já causasse essa sensação de
envolvimento que permitiu eu não me sentir cansado facilmente. As falas das
Humanas eram todas iguais, o mesmo teor de libertação e contra a opressão. As
Exatas e Biológicas, por outro lado, me surpreenderam pela diversidade: quem
não sabe se aventura, e este grupo aventurava-se numa política que sequer
conheciam, procurando reinventar a roda. Foi só quebrarem as janelas da
reitoria após decidirem ocupar aquele espaço que achei que entraria em
problemas. Mascaravam os rostos e eu tive certeza que era hora de ir embora.
Seguiu-se mais uma assembleia na Faculdade de Educação, quase um mês depois,
desta vez para saber se a assembleia continuaria. Para nossa sorte, acabou.
Pareceu um mês de tirania para alguns estudantes. Eu não entendia bem o que eu
defendia. Não gostava de ver minhas amigas de cabeça baixa e sentindo-se
injustiçadas, porém, a greve pareceu um instrumento poderoso de luta que
deveria continuar. Poderia fazer funcionar novamente a máquina política e
econômica com alguns sacrifícios: algumas tantas aulas e salários de
trabalhadores, já que ninguém recebe dinheiro por fazer greve.
Os professores apenas toleraram a greve. Se ela foi unificada, não lembro. O
choque de poder foi tamanho que pouco importava quem, o que, como e porque
faziam. Eu tinha aprendido que a assembleia era um dispositivo de poder na mão
dos militantes, ela não era de todos, porém, para todos, e por isso, mortífera
para quem pisasse nela.
Capítulo
2: Segunda greve e não fazer greve
Foi preciso coragem de todos para outra assembleia, em 2014. Ouvir de novo o
mesmo blá blá blá que todos conheciam. Era difícil alguém dizer “eu nunca ouvi
isso”, eles falavam disso o tempo todo, viviam para isso. Achávamos
que as pessoas envolvidas com o CAP se matriculavam em menos disciplinas do que
os demais para fazer seus cartazes, ir nas manifestações ou até curtir a
universidade, não sabíamos direito, era apenas uma vaga impressão.
Fomos receosos para a assembleia, combinamos de ir aos montes. O resultado
seria outro.
Enquanto eles falavam (a esta altura existia uma polarização
estudantil concretizada entre nós e eles). Novamente, não
importavam as pautas (isonomia sempre presente), este grupo que convocava a
assembleia não era legítimo para uma boa parte dos estudantes de Pedagogia.
Tínhamos certeza que eles eram minoria da universidade, mas tomavam
as decisões por todos sob a justificativa que “se quiser decidir vem para a
assembleia porque ela é soberana”. Esse papinho de soberania era só desculpa
para conquistar um poder que eles não tinham sob o manto da justiça democrática
e do voto da maioria. Falavam que esse espaço tinha que ser ocupado, quem se
ausentava não dava a mínima para a política.
Foi a primeira vez que falei numa assembleia. Fui lá à frente de todos. O
primeiro naquela noite com uma posição contrária, depois de várias bocas
vomitarem mesmices.
Eles estavam
irritados com os professores punindo alunos com avaliações. Defendi os
professores sob o argumento de que eles eram parciais quanto a esse
tipo de posicionamento. Nunca gostaram dos professores. Nunca souberam fazer as
alianças corretas. Não vi a possibilidade de eles fazerem o contrário.
Eles estavam irritados com os alunos que queriam aula. Eu defendi o direito de
ter aula, sobretudo, reafirmei uma contradição em termos que significavam esses
direitos: se eles tinham validade igual, porque prevalecia o direito de greve?
Perdemos a votação por muito pouco.
Senti que desde então eu não fui muito adorado naquela faculdade por meus
veteranos. De início não me incomodou, minhas amigas me apoiavam, então eu
achava que estava fazendo certo.
Eu aceitava a greve como instrumento de luta, mas os militantes pareciam
precipitados demais, péssimos estrategistas, um bando de baratas tontas que
usam força em virtude da técnica. Eu pratiquei taekwon-do antes de entrar para
a universidade, nunca fui o mais forte, nem era uma qualidade importante. Todo
movimento tinha uma preparação, ondulação (flexão dos pés e joelhos) e execução;
cumprido esses três pré-requisitos somados a um conhecimento bem simples sobre
pontos vulneráveis e sensíveis na anatomia humana, o único desafio que um
adversário poderia apresentar seria uma arma letal ou dominar a mesma técnica.
Nesse ambiente não-formal da assembleia eles não tinham técnica – os
movimentos eram despreparados e desarticulados com sua execução. Já não eram
mais convincentes, apenas um circo de horrores que era “legítimo” no espaço da
assembleia.
Foi a primeira greve unificada. Professores suspenderam atividades; alguns
propuseram aulas abertas; outros disseram que a greve não impedia o
acontecimento das aulas, bastava que todos não concordassem em enviar as notas
para a DAC; outros continuaram suas aulas. Os militantes, por sua vez, como
sempre, queriam o controle da situação, eles que eram os juízes,
aprovavam e desaprovavam a decisão dos professores, não tinha muita diferença
entre eles e seus dominantes; a assimetria de poder era compensada
com a reversão desse poder: sem as salas de aulas, eles não tinham o
que temer e a relação de dominação se invertia, daquele jeito que Paulo Freire
já nos avisou, mas eles se esqueceram de ler essa parte do livro ou
agiam de má-fé. Os oprimidos não libertavam seus opressores, tomavam o lugar
deles.
Os professores, no entanto, me transmitiam, ao falar da greve, que sabiam de
algo que nenhum de nós sabia (similar aos militantes na minha
primeira assembleia). Como eles estavam desacreditados e faziam um
discurso para ganhar pontos com seu próprio grupo, os professores, categoria
que nunca se arriscava demais (como se tivessem o pensamento tático que faltava
aos militantes), ganharam minha curiosidade.
Os militantes citavam Paulo Freire, mas não sabiam nada de Paulo Freire. Nessa
greve eu li A Pedagogia do Oprimido para provar isso. Reconheci
várias citações, percebi como eles não tinham contexto algum nem respeito pela
teoria do velhinho, usavam frases prontas para dar aquele efeito de retórica.
Falavam de luta de classes, mas duvido que tenham lido Marx. Falavam de
hegemonia, mas Gramsci teria ressalvas a seu respeito. Ideologia talvez fosse a
palavra que menos aparecesse por ali. Althusser agradece.
Tudo piorou quando descobri que eles partilhavam da minha realidade
socioeconômica: iam aos mesmos shoppings, comiam a mesma comida, assistiam os
mesmos filmes, riam das mesmas piadas. Tinha um ou outro que tinha poder
aquisitivo melhor e insistiam em vestir trapos para militar. Eles eram
iguais a nós, de onde emanava essa aura de proletário? Comecei a achar que
eram alunos recusados pelo Instituto de Artes: as aulas de teatro valeram a
pena...
Num momento eu queria que esses militantes fossem acadêmicos, mas eles não
queriam, porque isso significava ser igual ao seu inimigo, daí eles falavam
algumas bobagens. E este era meu único acordo com eles. Ressignificar os
conhecimentos da academia parecia impossível para eles, a prática
construiria a teoria (doce ilusão). Eram poucos que discursavam com uma
fidelidade a ideias e conceitos da academia, na maioria das vezes só
atrocidades e deslizes grosseiros (precisei de um ano e meio na faculdade para
saber quando alguém sabia ou fingia saber alguma coisa).
Mas e os funcionários terceirizados? Eles estavam no discurso, só isso. Não vi
muita coisa acontecendo a respeito. Eles eram os mais prejudicados e quase não
sabíamos nada sobre eles. Por fim, os funcionários não tinham a atenção que
mereciam.
Os militantes pareciam fanáticos religiosos lutando por uma boa causa com os
motivos errados. Fiz minha greve na frente do meu computador, sem me envolver
com nada que não fosse uma votação. Eu ainda não conhecia nada sobre política,
mas eu já aprendia seus princípios. Como adverte Shapiro, política é sobre
poder, nenhuma análise desse tipo é relevante sem considerá-lo no conjunto da
obra.
Capítulo
3: terceira greve (ou quase) e como deveria funcionar uma greve
Em 2015, à noite, os alunos se reúnem numa sala (ED01 do prédio anexo), temendo
a chuva. É uma assembleia para deliberar greve de solidariedade à categoria dos
funcionários em greve.
Eu falei nesse dia também. Colegas me advertiram com medo: “não vale a pena se
expor”. Se alguém não falasse, quem iria?
Levantei a mão para me inscrever. Organizei
minhas ideias num papel. Colocaram uma carteira à frente de todos para que os
inscritos declarassem suas opiniões.
Chegou minha vez. Apresentei minhas ideias
antes do tempo limite (quase ninguém respeitava aquele tempo, principalmente os
militantes), em resumo foi: a) nem sempre que votamos greve todos participam,
se votássemos greve ali e ela acontecesse, seriam 15 estudantes ativos e o
restante curtindo seus sofás no conforto de suas casas; b) se eles não tinham a
greve planejada, não valia a pena fazer greve; c) se eles estavam propondo
greve como primeira opção para a luta, é porque eles não compreendiam o sentido
de greve; d) se a greve é em solidariedade tínhamos que ouvir os protagonistas.
Inclusive, perguntei se tinha algum representante dos funcionários presente por
ali para tirar minhas dúvidas.
Quando retorno para meu lugar, longe dos
holofotes, uma funcionária pergunta para a assembleia se ela pode responder
minhas dúvidas como uma questão de ordem. Todos concordam. Minhas perguntas
estavam todas sistematizadas, eram poucas, mas não agradou o público militante.
Imagino que alguns deles entenderam que eu submetia a funcionária a um teste. Puro
equívoco.
As perguntas eram algo como: vocês têm um
grande número de funcionários mobilizados? Como planejam fazer a mobilização? O
que me gerou a alcunha de machista, dada por uma militante que, interrompendo
minha fala, afirmou que eu constrangia a mulher. Eu permaneci calado enquanto
ela falava, sabia que se eu tentasse atravessar o discurso dela seria levantada
a questão de violência de gênero e eu seria o novo machistinha da
faculdade, como se não bastasse meu posicionamento de direita (ou
assim devia ser conhecido) no ano anterior.
O que mais me assustava era certo carisma dos
militantes para arrebanharem ovelhas. Minha atitude foi quase autodestrutiva.
Mesmo sem ter a intenção de ter constrangido
a funcionária fui me desculpar com ela. A funcionária, cujo nome me lembro até
hoje, disse que eu não me preocupasse com isso, que ela entendia minha
preocupação e que não se sentiu constrangida e achou um exagero por parte da
estudante (o que me fez sentir menos culpado). Conversamos por um bom tempo. Chegou
uma hora que éramos só eu, ela e um outro funcionário da informática que
cumprimento até hoje pela faculdade.
Nesse fim de assembleia, cujo resultado não
foi greve, mas um dia de paralisia na Faculdade de Educação, eles me explicaram
que o mais importante era o número de pessoas no movimento. Fortalece, motiva e
não precisa de nenhum planejamento prévio, precisam todos construir juntos e
quanto mais pessoas melhor. É difícil planejar tudo antes, eles disseram, tem
que torcer para dar certo depois, e a política é móvel demais.
Essas foram as primeiras lições agradáveis
sobre política dentro de um espaço não-formal de educação, cuja visão
estratégica parecia muito frágil e fácil de ser superada, mas entendi porque
eles fazem assim e o que eles esperam disto, ainda que não fossem pontos bem
edificados. Os estudantes militantes sempre pareceram ter convicções fortes e
pouca estratégia, quiçá pelo pouco tempo de experiência em greves, assim como
eu. Esses dois funcionários me ensinaram coisas que eu não posso mais ignorar,
e não se passou nem uma hora de conversa.
Parece até que os grevistas podem ser vistos
sob o prisma do teorema da incompletude do matemático Gödel: um sistema de
proposições não pode ser completo e consistente. Quando os estudantes demonstraram
argumentos e ideias completas, sua postura agressiva é inconsistente às
práticas, fazem deles oportunistas; quando os funcionários apresentam uma
postura consistente com sua luta, a incompletude das ideias não alavanca a
confiança que poderíamos ter neles.
A matemática nos mostra que não pode existir verdade ou mesmo perfeição. Aquele
garoto de 15 anos não estava tão errado quanto a política, só esqueceu que essa
é uma contradição que existe em todo sistema, político e não-político. Se não há
como encontrar aquela essência última que justifica as coisas, eu teria que
admitir a contradição inerente às práticas políticas.
Capítulo
4: Quarta greve, mobilização para a greve e conhecimento da universidade
Esta
greve começa numa assembleia que não deliberou greve, mas durante as exposições
um punhado de militantes sugerem incluir a votação de greve nas pautas. Nunca
se falou tanto sobre racismo e ocupação da universidade como nessa assembleia e
nessa greve. Os argumentos eram válidos, renovados, e só um tolo para
contrariar esse tipo de humanismo. Desta vez parecia que a luta fazia sentido,
atraía um coletivo nunca visto antes e não podiam esperar.
Pareciam mais organizados do que nas demais assembleias. Seus propósitos,
certeiros. A mesma luta com um novo slogan, com mais pessoas, mais
legítimo, mais intenso.
Dessa vez, quando eles falavam bravos e agressivamente, não parecia violência,
foi empoderamento. O único momento em que a faculdade parava para ouvir os
estudantes negros, suas histórias, suas dificuldades, o preconceito sofrido, as
expectativas e suas realidades atuais. O que algumas pessoas chamam
precipitadamente de vitimismo (direcionado às minorias políticas) era pouco
sólido, visto que esses estudantes passavam pelo constrangimento de se expor,
estavam em situações delicadas diante de multidões, tinham sua imagem
comprometida por relatos de experiência em prol da luta.
Eles tinham uma vida mergulhada na dor de serem negros e/ou pobres, ainda por
cima deviam se orgulhar disso, pois os brancos não fariam isso por eles. Se não
fossem os estudantes negros para encrespar seus cabelos, seriam alisados pela
universidade.
A música deles incomoda. Seus rituais religiosos são satânicos. Seu intelecto é
inferior. Sua cor é sexualizada. Sua beleza beira a feiúra. Sua pele é suja.
Nos sonhos, são as trevas e as sombras. Na sociedade, são os pobres, marginais,
assaltantes, pedreiros, lixeiros. Sua cultura é menosprezada, isso quando é
considerada cultura: “vocês acham que preto não faz filosofia?”, eles nos
perguntaram, “quantos autores negros temos nessa faculdade?”. E mais tarde
fomos descobrir que não sabíamos nada sobre África, conhecíamos apenas os
relatos dos europeus e estereótipos afins.
Nenhum livro teria me ensinado isso, e sempre li muito. Nenhum livro teria
feito eu sentir na pele, pela primeira vez, o arrepio de uma história contada a
choros e raiva semicontida. Nenhum livro teria feito eu olhar nos olhos de um
negro que fala sobre si e sentir a vergonha da história de meus descendentes.
Nenhum livro teria apontado o dedo para mim e dito “você é um racista”. Nenhum
livro, por mais bem escrito que fosse, faria meu corpo vibrar com aquela roda
de relatos, cada um mais surpreendente e incômodo que o outro. Nenhum livro me
traria tanta tristeza ao perceber que esses estudantes estavam certos. Algumas
pessoas que os ouviam, não todas, conversavam distraidamente enquanto muitos se
debulhavam em lágrimas revivendo memórias que deveriam manter guardadas, como a
prostituição, a prisão de irmãos e amigos na favela, a invasão de policiais a
suas casas sem mandato judicial com armas prontas para serem usadas.
Um efeito blasé generalizado do mais alto nível. Tínhamos estudantes,
professores e funcionários atentos e se emocionando, mas e esses outros que
faziam pouco dessas pessoas corajosas que se expunham? Quem eles pensavam que
eram?
Provavelmente essa é a parte mais marcante dessa greve.
Esta foi a única greve que eu vi tomando proporções colossais e que durou mais
de um mês. Da Faculdade de Educação, esse debate, somado à falta de vagas na
moradia universitária, tornou-se uma greve de boa parte dos estudantes de
graduação de praticamente todos os institutos da universidade, contando com
estudantes da pós-graduação e apoio de alguns professores.
A luta era legítima e numerosa. Os estudantes discutiam como estrategistas.
Invadiram a reitoria prevendo o impacto simbólico que isso teria. À meia noite,
estávamos todos dividindo as funções. Planejava dormir na reitoria. Até o
momento em que vi que nem todos poderiam ficar ali. Muitas pessoas
atrapalhariam, mas eu voltaria alguma ora.
E faltava alguma coisa...
Talvez conhecimentos de Direito. Estudar mais Economia. Saber as políticas
públicas destinadas à universidade.
Os estudantes se envolveram de uma forma que eu nunca tinha visto. Eu me
envolvi de uma forma que nunca aconteceu antes. Esqueci todos os meus
trabalhos, parei meu TCC, nem olhava mais meus e-mails (não tinha tempo). Nunca
passei tanto tempo na universidade interessado em estar junto com outros
estudantes, me sentindo parte da universidade, sabendo que eu não lutava por
uma causa perdida e sem me importar se minhas amigas concordavam ou não.
Os dois primeiros meses foram aulas abertas, palestras e rodas de conversa
sobre a universidade, democracia e espaços públicos, sempre trazendo à tona as
minorias políticas, que partilhavam daquele espaço. Depois a luta assumiu
outros traços: estudar tudo o que acontecia nas rodas de conversa em casa, ir
n’algumas assembleias (como do Instituto de Físca Gleb Wataghin, Instituto de
Química e Instituto de Economia) e correr para a reitoria toda vez que
anunciassem possibilidade de reintegração de posse.
Àquela altura da greve eu era bem recebido pelos militantes da minha faculdade,
eram meus colegas, conseguíamos rir de pequenas coisas, mas nunca uma conversa
elaborada. Ainda me sentia desconfortável perto deles.
Bem depois, de volta à reitoria, percebi que minha semidesistência da luta era
porque eu não tinha nenhuma familiaridade com nada que acontecia ali dentro. Eu
não compartilhava nenhum traço de identidade com nenhuma causa dali: eu não era
negro, pobre, favelado, gay, injustiçado, humilhado, nem nada, nem todos que
lutavam eram tudo isso ao mesmo tempo, mas eles eram minoria política, eles
resistiam do jeito que sabiam e faziam como achavam melhor, seria um insulto
alguém querer ensinar eles como fazer isso. Também reivindicávamos a
universidade pública, mas essa luta só existiu porque não temos tantos negros
quanto esperávamos.
Simplesmente desisti porque não me encaixei ali, mesmo assim continuei
solidário, ao menos indo à universidade participar de algumas assembleias nos
institutos, nas assembleias gerais e em todos os alarmes falsos de reintegração
de posse, da reitoria e de outros locais da universidade. Mas a gestão e o
planejamento ficaram com esses estudantes que ajudavam seus pares a conquistar
o espaço público da universidade.
Esta greve também foi mobilizada, em parte, pelo golpe de Michel Temer.
Sem esse envolvimento com a greve o “Fora Temer!” nunca faria sentido ou
qualquer outro posicionamento parecido. O currículo da graduação seria
insuficiente para pensar a política, por mais política que seja a Educação.
Aquele garoto de 18 anos que ingressa a faculdade não quer se envolver demais,
não vive o mundo, acredita que os problemas são os outros, não percebe boa
parte dos conflitos sociais, acredita no poder da justiça, naquilo que pensa.
Prisioneiro de si mesmo, sofre a angústia de ter que viver o outro, é mais
fácil que cada um cuide do que é seu. Não é assim para todos? Não gostamos de
ter nosso Eu preservado? A universidade não fragiliza o Eu? Enquanto eu
permaneço intacto e vejo na universidade minha própria cultura crescendo e
aumentando, com ela eu me satisfaço, ela é uma extensão dos meus planos para
mim mesmo, só tenho a desfrutar dela. E para esses grupos que exclamam devido a
violência simbólica? Eles simplesmente forjam sua identidade, dando fins às
greves? Nossos habitus eram diferentes: as formas de falar, pensar e
agir eram distantes demais para dar certo juntas.
E esse papo de Eu e Outro continua muito estranho. É o que um acadêmico diria.
Os grevistas só queriam cama na moradia e preto na universidade nessa última
greve, como eles mesmos diziam. Querem seus pares se formando para conseguir um
bom emprego, ocupar uma ótima posição social, dar uma educação boa para suas
crianças (não podemos nos esquecer das mães, estudantes e/ou trabalhadoras
naquela greve), contribuir para o bem estar da sua comunidade. Conhecimento?
Querem algum saber para usar no mercado, não são como aquela elite de filósofos
ociosos. Depois que tudo isto estiver arrumado nós podemos falar de Eu e Outro,
conceitos de um modelo teórico útil para algumas ciências, por isso, não podemos
dizer que eles adotam essa mesma ladainha. Se adotam, facilitam para nós, os
acadêmicos.
Ah! Aí está a distância...
Os propósitos da greve de 2016 não foram extraordinários, suas pautas existiram
em todas as outras greves, entretanto, coadjuvantes, ofuscados por coisas que
pareciam mais importantes enquanto os verdadeiros grupos alvo das políticas
públicas não se manifestavam.
Se não greve, então o que?
A greve é benéfica para todos, com um efeito singular em todos os corpos,
muitas vezes é sobre experiências partilhadas, e aí ela conquista seu sentido.
Para mim, me levou a refletir sobre continuar uma vida medíocre ou passar por
um período de experimentação, sem saber o que esperar disso. Eu não preciso
viver da mesma forma que esses grupos, e sei que não posso fazer tudo por eles.
Não serei eu, portanto, que irá calar sem pesar.
Todo esse drama interior possui pegadas apagadas no chão das assembleias. Nela,
um outro eu fala, aquele que tem que se posicionar politicamente sem duvidar de
si mesmo. E no final das contas, estar na assembleia só me faz pensar o que
falta para eu ser como eles, e inversamente, o que falta para eles serem
como eu. No fim disto tudo, a greve cumpre com sucesso estimular politicamente
o estudante ou trabalhador a posicionar-se diante de outras pessoas, a formular
uma política de si: a repensar-se num espaço, a repensar as pessoas nesse
espaço, a consolidar as relações, a ouvir os diversos locais de fala, a
colocar-se num lugar de escuta, a perceber as contradições, angustiar-se com as
contradições típicas da existência, finalmente encontrar uma verdade e vê-la
desmanchar sem aviso prévio, e com ela desmancham-se as certezas sobre si
mesmo, o pensamento volta-se novamente para esse mundo fraturado.
Greves podem ser extremamente pedagógicas simplesmente por proporcionar
experiências únicas. A política enuncia poderes, as assembleis
problematizam-nos com maior ou menor grau de sucesso e o participante movimenta-se
num plano imaginário perguntando-se “e onde eu estou nessa história toda?” ou
reafirmando sua posição atual, certo de si. Nesses espaços ouvimos o que
queremos e o não queremos, o que nos agrada e o que nos desagrada, o que nos
faz vibrar e o que nos faz murchar, o que nos faz sorrir e o que faz chorar, o
que nos aproxima e o que nos afasta. O mais incrível é perceber como locais
pequenos, como uma Faculdade de Educação, abrigam tantas discordâncias e tantos
grupos, daí para a dificuldade de encontrar uma pauta comum ou consenso nas
lutas prioritárias.
A maior dificuldade, como já disse, é ter que fixar-se num espaço que te
desestabiliza, devo ter certeza que sou a favor ou contra esta ou aquela pauta,
porém, se isto acontece é porque minha prática política talvez seja um tanto
imatura. De outra forma, poderia ser um sentimento banal e comum dentro deste
ambiente. Serviu-me, de qualquer maneira, para confirmar a necessidade de uma
ação política. Mesmo na derrota política, a tentativa de agir para alguma coisa
foi mais fundamental que não fazê-lo devido a mitos vulgares de minha cabeça de
15 anos. Conhecer-me como um ser político foi uma das mais satisfatórias
descobertas durante o período da universidade, de ser colocado em contradição e
compreender que algumas contradições nunca desaparecem, que as certezas ou
verdades são provisórias e que a ideia de poder (dominar e ser dominado) ainda
é frágil, tanto entre aqueles que o sofrem quanto entre aqueles que o tornam
objeto de estudo, podendo acontecer as duas coisas ao mesmo tempo.