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sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Experiências de uma educação não-formal nas greves de uma universidade

1ª atualização: 29/11/2017.

Primeiramente... (FORA TEMER!)

            Sinto que falar sobre as greves na universidade, ao menos para mim, é falar sobre as contradições vividas cotidianamente. Elas não estão aí porque são novidades para serem discutidas, são coisas do dia à dia, que acontecem o tempo todo e permitimos que aconteçam, mas alguém ou um grupo, por ímpeto ou coragem, se levanta, apesar do constrangimento. A greve é utilizar de poder para destituir outro poder sabendo que este detém um lugar privilegiado no sistema de relações em comparação com aqueles que fazem uso do primeiro poder, dito de outra forma, é resistir no jogo de imposição de forças, coisa de demorei para compreender.
            Antes da universidade a greve tinha um valor negativo para mim. Permaneci minha vida toda num mesmo lugar, nesta mesma cidade chamada Campinas, neste mesmo bairro que é a Cidade Universitária, próximo a esta mesma desejada universidade que é a Unicamp. A política era aquela dos noticiários, das conversas em almoços familiares, papo sobre ladrão; política era injustiça, mas eu tinha a impressão, nos meus 15 anos, de que era uma porta giratória sem detector de metal: fácil de entrar, fácil de sair e é um cubículo onde poucas pessoas realmente sabem o que acontecem, e paradoxalmente, todos fora desse cubículo também sabem o que eles fazem, dando a impressão de que os políticos eram grupos de idiotas, sem instrução, com muito dinheiro e que não sabiam planejar bem seus roubos, eram pegos com a boca na botija, então pagavam bem quem sabia sobre eles e os crimes retornavam à normalidade.
            E os cidadãos? Eu nem sabia o que isso significava. Meu único dever era para com minha família, àqueles quem eu gostava muito e comigo mesmo.
            Fazer política, na minha adolescência, era permitir ser contaminado por um vírus extremamente contagioso que me transformaria numa piada em rede nacional com comida boa na mesa e uma casa grande para morar ou ser mais um desses camisas vermelhas preguiçosos que não querem saber de trabalhar. Cidadania era ter nascido em território brasileiro, ter registro no cartório de Campinas e seguir as leis de trânsito (e mais difícil do que entender política foi entender porque as ruas são tão esburacadas e para que serve a faixa de pedestres).
            Dizer “Fora Temer” hoje é reconfortante comparado há 8 anos, quando nem fazia minhas próprias pesquisas e acreditava no que meus pais contavam, por mais que eu não gostasse do que fosse dito. A verdade é que eles pareciam tão fanáticos conversando sobre política que me causava repulsa: minha mãe bradava “Lula é um populista!” e meu pai respondia com dados estatísticos e argumentos econômicos (coisa que não fazia sentido para esse pobre menino). A verdade é que meu problema nunca foi a política, mas pessoas que falavam sobre política, vim descobrir isto apenas na universidade, comparando um bom texto de Filosofia com um mau militante.
            Quando eu fazia piadas sobre mensalão, eu não sabia do que estava falando. Sabia que existiam três poderes que regulavam o país graças às aulas de história e estudando a transição entre império e república no Brasil. Até os 18 anos, eu vivi uma bolha bem resistente contra a política. Minha única política era a de não agir politicamente, e me irritava quando na aula de filosofia/sociologia o professor emitia esse postulado, porque, de uma forma ou de outra, eu estava sendo político.
            O que realmente importava era conversar sobre as pessoas, o que elas sentiam, os planos que faziam para o futuro, modelos alternativos de sociedade, refutar teses criacionistas, falar mal de futebol, se embaraçar com o amor, fazer amigos, entender o sentido da vida, e outras tantas coisas que são política e por resistência insistia em dizer que não eram.
            Não sabia o que era um Congresso Nacional. Nunca existiu Corregedoria-Geral. Ministérios eram três ou quatro. Senador? O que ele faz? Prefeitura tinha em todas as cidades e município era seu sinônimo. A burocracia é velha, lenta e atrasada. Votar era uma bobagem generalizada. Debater era ser emotivo e não racional. A Verdade era uma essência que não estava na Política - esta nos afastava dela.
            De certa forma, a política era a pior forma de solucionar qualquer coisa porque ela não tinha nada que ver com minha realidade: a de um adolescente de classe média, meritocrata, racionalista, hedonista, imediatista, cujos objetivos e projetos pessoais eram rasos e torpes para o atual autor. As experiências na greve universitária foram vitais para que minha visão de mundo virasse de cabeça para baixo.
            Ao prestar o vestibular, na transição dos 17 para os 18 anos, pretendi cursar Psicologia na USP e Pedagogia na Unicamp (não me atraía, mas era o que tinha para aquele garoto). Comecei a cursar Pedagogia porque não obtive a pontuação suficiente na primeira fase do vestibular para a USP, o que foi excelente para minha formação política num ambiente tão contraditório que é o espaço acadêmico da Faculdade de Educação e de seus militantes.
            Todas as greves foram significativas, já que em todas elas eu aprendia mais sobre poder, dinheiro, burocracia, ideologia, direito e educação. Coisas que os espaços formais da sala de aula não davam conta, e provavelmente nunca serão capazes de reconstituir esse tipo de experiências. Por isto, nunca é demais reafirmar as causas políticas que nos formam enquanto cidadãos, de outro modo, um “Fora Temer!” de hoje não é uma ideologia muito bem implantada como querem acreditar alguns personagens nos bastidores deste memorial, compreende-se uma educação rica e ambígua porque singular, na qual sou levado a profanar e consagrar incontáveis vezes o que eu defendo. Minhas palavras ao tornarem-se públicas permitem que os outros me vejam (ou pensem que me veem) por dentro e me julguem: felicitando ou condenando minha fala, sendo a última a mais comum.
            Entretanto, se uma pessoa não fala, como ela pode ser notada? Ao rejeitar a política durante todos esses anos eu assinei um contrato de invisibilidade, dependendo exclusivamente do acaso para fazer com que outra pessoa tivesse os mesmos projetos que os meus e voz para defendê-los. Daqui em diante contarei mais sobre essa educação política que a greve me proporcionou em quatro capítulos.
           
Capítulo 1: primeira greve, assembleia e fazer parte da universidade
           
            Esse menino, que não ousaria nunca gritar “Fora Temer!” por achar que Direito e Justiça são coisas iguais, entra na universidade rodeado de cartazes, chapas e rostos sorridentes com camisetas vermelhas. Os alunos pediam três minutinhos para o professor para falar com a sala sobre a nova chapa, pautas e novas configurações do Centro Acadêmico de Pedagogia (CAP). Todos me tratavam muito bem, nunca gritaram comigo quando falavam sobre política, parecia até que eu estive errado minha vida toda sobre o significado dessa palavra.
            Foi anunciado numa aula de Cinema, Educação e Cultura, em 2013, uma assembleia geral dos estudantes para decidir greve. Pouco importa sobre o porquê da greve, a única certeza é que falavam sobre isonomia salarial. O foco aqui é o momento de todos decidindo uma causa comum, numa inscrição de falas bem organizadas, explicando para os novatos como as decisões eram tomadas. Todos os alunos sentiam que participavam de algo importante.
            O gosto que criei pela política não foi racional, foi puramente emocional. O desgosto por ela, da mesma forma, aparece atrelada ao desagrado e desprazer de ouvir posicionamentos políticos de pessoas que confiam em qualquer informação que ouvem nos jornais televisivos, acreditando piamente na imparcialidade da informação, tomando liberdade de considerá-la saber, de dizer “eu sei sobre isto”.
            Mal começou a greve me senti dividido entre meus colegas de faculdade que queriam ter aula e se pautavam no direito à mobilidade, o famigerado “direito de ir e vir” (que recentemente descobri ser um princípio constitucional utilizado apenas e exclusivamente por um magistrado em Direito) contra o direito à liberdade de expressão – ou popularmente conhecido por direito à greve, pelos militantes do CAP e associados.
            Um grupo estava preocupado com sua formação universitária e o ambiente não-formal da greve nada acrescentaria a eles. Corriam o risco de reprovar uma disciplina, de receber um diploma sem as qualificações necessárias para sua obtenção e de agir com libertinagem aos olhos dos pais, familiares, amigos e brasileiros, em geral. O outro grupo reivindicava direitos sem medo de saírem com algumas queimaduras ou de serem observados com desdém, estavam certos de que isto fazia parte da militância.
            Este último grupo me convenceu de que eles viam algo que ninguém mais enxergava. O olhar das pessoas contrárias a eles estavam nublados por alguma ideologia bem incrustada. Eu acreditava na Lei e no que as pessoas chamavam de Lei. Os militantes falavam que as Leis estavam erradas e que não protegiam a verdadeira população.
            Os militantes estavam muito certos do que falavam. Rebatiam com postura todo tipo de argumento que se manifestava contra eles.  Também tinham um grande número de pessoas presente nas assembleias, sempre os mesmos rostos, figurinhas repetidas. Às vezes eram rudes, batiam de frente, eles sabiam o que estavam fazendo ali. Nós, novatos, não sabíamos. Eles eram unidos. Nós mal sabíamos os nomes uns dos outros. Eles tinham oratória. Nós éramos mudos, tímidos. Eles sabiam os números das leis. Nós opinávamos. Eles corrigiam nossa postura na assembleia. Nós nos sentíamos ignorantes.
            Ali, “participando das decisões da universidade”, como diziam nossos veteranos, nós, ingressantes entusiasmados com o ambiente acadêmico, nos sentimos deslocados. As disciplinas da Pedagogia não tinham pré-requisito, a assembleia também não, mas para um cientista político, aquela assembleia era um confronto disciplinador: estudantes sem conhecimentos prévios de como funciona uma assembleia recebendo instruções de seus veteranos, legitimando-os como portadores de um saber que nós não tínhamos. Os militantes demonstravam sua hegemonia pela oposição de ideias: se nossas ideologias não fossem coerentes e harmoniosas, deveríamos ser disciplinados. Nossos corpos sofriam o constrangimento do olhar de uma maioria que estava no poder da situação.
            As pessoas afiliadas ao CAP comandavam as mesas. Convidavam-nos para participar da condução da assembleia, mas quem, em sã consciência, aceitaria tal convite? Somente alguém que sentisse conforto de estar entre eles. “Queremos ouvir ideias opostas, precisamos delas”, eles diziam. Tudo Mentira. Depois de fazermos nossa fala alguém ergueria a mão para se inscrever e rebater nossas pobres opiniões como se vivêssemos doces ilusões. Acrescentariam em discurso “Tem gente que acha que pensar assim, está bem, mas não está”, desmerecendo completamente a fala dos ingressantes, quase um conflito pessoal.
            Entramos em greve por votos que representaram uma maioria esmagadora. Eram todos militantes, afiliados ao CAP e gatos pingados com os motivos mais diversos. Erguer a mão para votar contra? Voto aberto. A retaliação era eminente. Onde foi parar a democracia? Nas mãos dessas pessoas que sorriram para nós no dia de nossa matrícula, e desta vez tinham um olhar sádico e superior.
            Em seguida teve assembleia geral na frente da reitoria. Primeira grande greve. Reitoria ocupada. E eu atento para tudo, cauteloso para não me envolver demais, mesmo que a animação de estar entre tantas pessoas já causasse essa sensação de envolvimento que permitiu eu não me sentir cansado facilmente. As falas das Humanas eram todas iguais, o mesmo teor de libertação e contra a opressão. As Exatas e Biológicas, por outro lado, me surpreenderam pela diversidade: quem não sabe se aventura, e este grupo aventurava-se numa política que sequer conheciam, procurando reinventar a roda. Foi só quebrarem as janelas da reitoria após decidirem ocupar aquele espaço que achei que entraria em problemas. Mascaravam os rostos e eu tive certeza que era hora de ir embora.
            Seguiu-se mais uma assembleia na Faculdade de Educação, quase um mês depois, desta vez para saber se a assembleia continuaria. Para nossa sorte, acabou. Pareceu um mês de tirania para alguns estudantes. Eu não entendia bem o que eu defendia. Não gostava de ver minhas amigas de cabeça baixa e sentindo-se injustiçadas, porém, a greve pareceu um instrumento poderoso de luta que deveria continuar. Poderia fazer funcionar novamente a máquina política e econômica com alguns sacrifícios: algumas tantas aulas e salários de trabalhadores, já que ninguém recebe dinheiro por fazer greve.
            Os professores apenas toleraram a greve. Se ela foi unificada, não lembro. O choque de poder foi tamanho que pouco importava quem, o que, como e porque faziam. Eu tinha aprendido que a assembleia era um dispositivo de poder na mão dos militantes, ela não era de todos, porém, para todos, e por isso, mortífera para quem pisasse nela.

Capítulo 2: Segunda greve e não fazer greve

            Foi preciso coragem de todos para outra assembleia, em 2014. Ouvir de novo o mesmo blá blá blá que todos conheciam. Era difícil alguém dizer “eu nunca ouvi isso”, eles falavam disso o tempo todo, viviam para isso. Achávamos que as pessoas envolvidas com o CAP se matriculavam em menos disciplinas do que os demais para fazer seus cartazes, ir nas manifestações ou até curtir a universidade, não sabíamos direito, era apenas uma vaga impressão.
            Fomos receosos para a assembleia, combinamos de ir aos montes. O resultado seria outro.
            Enquanto eles falavam (a esta altura existia uma polarização estudantil concretizada entre nós e eles). Novamente, não importavam as pautas (isonomia sempre presente), este grupo que convocava a assembleia não era legítimo para uma boa parte dos estudantes de Pedagogia. Tínhamos certeza que eles eram minoria da universidade, mas tomavam as decisões por todos sob a justificativa que “se quiser decidir vem para a assembleia porque ela é soberana”. Esse papinho de soberania era só desculpa para conquistar um poder que eles não tinham sob o manto da justiça democrática e do voto da maioria. Falavam que esse espaço tinha que ser ocupado, quem se ausentava não dava a mínima para a política.
            Foi a primeira vez que falei numa assembleia. Fui lá à frente de todos. O primeiro naquela noite com uma posição contrária, depois de várias bocas vomitarem mesmices.
            Eles estavam irritados com os professores punindo alunos com avaliações. Defendi os professores sob o argumento de que eles eram parciais quanto a esse tipo de posicionamento. Nunca gostaram dos professores. Nunca souberam fazer as alianças corretas. Não vi a possibilidade de eles fazerem o contrário.
            Eles estavam irritados com os alunos que queriam aula. Eu defendi o direito de ter aula, sobretudo, reafirmei uma contradição em termos que significavam esses direitos: se eles tinham validade igual, porque prevalecia o direito de greve?
            Perdemos a votação por muito pouco.
            Senti que desde então eu não fui muito adorado naquela faculdade por meus veteranos. De início não me incomodou, minhas amigas me apoiavam, então eu achava que estava fazendo certo.
            Eu aceitava a greve como instrumento de luta, mas os militantes pareciam precipitados demais, péssimos estrategistas, um bando de baratas tontas que usam força em virtude da técnica. Eu pratiquei taekwon-do antes de entrar para a universidade, nunca fui o mais forte, nem era uma qualidade importante. Todo movimento tinha uma preparação, ondulação (flexão dos pés e joelhos) e execução; cumprido esses três pré-requisitos somados a um conhecimento bem simples sobre pontos vulneráveis e sensíveis na anatomia humana, o único desafio que um adversário poderia apresentar seria uma arma letal ou dominar a mesma técnica.
            Nesse ambiente não-formal da assembleia eles não tinham técnica – os movimentos eram despreparados e desarticulados com sua execução. Já não eram mais convincentes, apenas um circo de horrores que era “legítimo” no espaço da assembleia.
            Foi a primeira greve unificada. Professores suspenderam atividades; alguns propuseram aulas abertas; outros disseram que a greve não impedia o acontecimento das aulas, bastava que todos não concordassem em enviar as notas para a DAC; outros continuaram suas aulas. Os militantes, por sua vez, como sempre, queriam o controle da situação, eles que eram os juízes, aprovavam e desaprovavam a decisão dos professores, não tinha muita diferença entre eles e seus dominantes; a assimetria de poder era compensada com a reversão desse poder: sem as salas de aulas, eles não tinham o que temer e a relação de dominação se invertia, daquele jeito que Paulo Freire já nos avisou, mas eles se esqueceram de ler essa parte do livro ou agiam de má-fé. Os oprimidos não libertavam seus opressores, tomavam o lugar deles.
            Os professores, no entanto, me transmitiam, ao falar da greve, que sabiam de algo que nenhum de nós sabia (similar aos militantes na minha primeira assembleia). Como eles estavam desacreditados e faziam um discurso para ganhar pontos com seu próprio grupo, os professores, categoria que nunca se arriscava demais (como se tivessem o pensamento tático que faltava aos militantes), ganharam minha curiosidade.
            Os militantes citavam Paulo Freire, mas não sabiam nada de Paulo Freire. Nessa greve eu li A Pedagogia do Oprimido para provar isso. Reconheci várias citações, percebi como eles não tinham contexto algum nem respeito pela teoria do velhinho, usavam frases prontas para dar aquele efeito de retórica. Falavam de luta de classes, mas duvido que tenham lido Marx. Falavam de hegemonia, mas Gramsci teria ressalvas a seu respeito. Ideologia talvez fosse a palavra que menos aparecesse por ali. Althusser agradece.
            Tudo piorou quando descobri que eles partilhavam da minha realidade socioeconômica: iam aos mesmos shoppings, comiam a mesma comida, assistiam os mesmos filmes, riam das mesmas piadas. Tinha um ou outro que tinha poder aquisitivo melhor e insistiam em vestir trapos para militar. Eles eram iguais a nós, de onde emanava essa aura de proletário? Comecei a achar que eram alunos recusados pelo Instituto de Artes: as aulas de teatro valeram a pena...
            Num momento eu queria que esses militantes fossem acadêmicos, mas eles não queriam, porque isso significava ser igual ao seu inimigo, daí eles falavam algumas bobagens. E este era meu único acordo com eles. Ressignificar os conhecimentos da academia parecia impossível para eles, a prática construiria a teoria (doce ilusão). Eram poucos que discursavam com uma fidelidade a ideias e conceitos da academia, na maioria das vezes só atrocidades e deslizes grosseiros (precisei de um ano e meio na faculdade para saber quando alguém sabia ou fingia saber alguma coisa).
            Mas e os funcionários terceirizados? Eles estavam no discurso, só isso. Não vi muita coisa acontecendo a respeito. Eles eram os mais prejudicados e quase não sabíamos nada sobre eles. Por fim, os funcionários não tinham a atenção que mereciam.
            Os militantes pareciam fanáticos religiosos lutando por uma boa causa com os motivos errados. Fiz minha greve na frente do meu computador, sem me envolver com nada que não fosse uma votação. Eu ainda não conhecia nada sobre política, mas eu já aprendia seus princípios. Como adverte Shapiro, política é sobre poder, nenhuma análise desse tipo é relevante sem considerá-lo no conjunto da obra.

Capítulo 3: terceira greve (ou quase) e como deveria funcionar uma greve

            Em 2015, à noite, os alunos se reúnem numa sala (ED01 do prédio anexo), temendo a chuva. É uma assembleia para deliberar greve de solidariedade à categoria dos funcionários em greve.
            Eu falei nesse dia também. Colegas me advertiram com medo: “não vale a pena se expor”. Se alguém não falasse, quem iria?
Levantei a mão para me inscrever. Organizei minhas ideias num papel. Colocaram uma carteira à frente de todos para que os inscritos declarassem suas opiniões.
Chegou minha vez. Apresentei minhas ideias antes do tempo limite (quase ninguém respeitava aquele tempo, principalmente os militantes), em resumo foi: a) nem sempre que votamos greve todos participam, se votássemos greve ali e ela acontecesse, seriam 15 estudantes ativos e o restante curtindo seus sofás no conforto de suas casas; b) se eles não tinham a greve planejada, não valia a pena fazer greve; c) se eles estavam propondo greve como primeira opção para a luta, é porque eles não compreendiam o sentido de greve; d) se a greve é em solidariedade tínhamos que ouvir os protagonistas. Inclusive, perguntei se tinha algum representante dos funcionários presente por ali para tirar minhas dúvidas.
Quando retorno para meu lugar, longe dos holofotes, uma funcionária pergunta para a assembleia se ela pode responder minhas dúvidas como uma questão de ordem. Todos concordam. Minhas perguntas estavam todas sistematizadas, eram poucas, mas não agradou o público militante. Imagino que alguns deles entenderam que eu submetia a funcionária a um teste. Puro equívoco.
As perguntas eram algo como: vocês têm um grande número de funcionários mobilizados? Como planejam fazer a mobilização? O que me gerou a alcunha de machista, dada por uma militante que, interrompendo minha fala, afirmou que eu constrangia a mulher. Eu permaneci calado enquanto ela falava, sabia que se eu tentasse atravessar o discurso dela seria levantada a questão de violência de gênero e eu seria o novo machistinha da faculdade, como se não bastasse meu posicionamento de direita (ou assim devia ser conhecido) no ano anterior.
O que mais me assustava era certo carisma dos militantes para arrebanharem ovelhas. Minha atitude foi quase autodestrutiva.
Mesmo sem ter a intenção de ter constrangido a funcionária fui me desculpar com ela. A funcionária, cujo nome me lembro até hoje, disse que eu não me preocupasse com isso, que ela entendia minha preocupação e que não se sentiu constrangida e achou um exagero por parte da estudante (o que me fez sentir menos culpado). Conversamos por um bom tempo. Chegou uma hora que éramos só eu, ela e um outro funcionário da informática que cumprimento até hoje pela faculdade.
Nesse fim de assembleia, cujo resultado não foi greve, mas um dia de paralisia na Faculdade de Educação, eles me explicaram que o mais importante era o número de pessoas no movimento. Fortalece, motiva e não precisa de nenhum planejamento prévio, precisam todos construir juntos e quanto mais pessoas melhor. É difícil planejar tudo antes, eles disseram, tem que torcer para dar certo depois, e a política é móvel demais.
Essas foram as primeiras lições agradáveis sobre política dentro de um espaço não-formal de educação, cuja visão estratégica parecia muito frágil e fácil de ser superada, mas entendi porque eles fazem assim e o que eles esperam disto, ainda que não fossem pontos bem edificados. Os estudantes militantes sempre pareceram ter convicções fortes e pouca estratégia, quiçá pelo pouco tempo de experiência em greves, assim como eu. Esses dois funcionários me ensinaram coisas que eu não posso mais ignorar, e não se passou nem uma hora de conversa.
Parece até que os grevistas podem ser vistos sob o prisma do teorema da incompletude do matemático Gödel: um sistema de proposições não pode ser completo e consistente. Quando os estudantes demonstraram argumentos e ideias completas, sua postura agressiva é inconsistente às práticas, fazem deles oportunistas; quando os funcionários apresentam uma postura consistente com sua luta, a incompletude das ideias não alavanca a confiança que poderíamos ter neles.
            A matemática nos mostra que não pode existir verdade ou mesmo perfeição. Aquele garoto de 15 anos não estava tão errado quanto a política, só esqueceu que essa é uma contradição que existe em todo sistema, político e não-político. Se não há como encontrar aquela essência última que justifica as coisas, eu teria que admitir a contradição inerente às práticas políticas.

Capítulo 4: Quarta greve, mobilização para a greve e conhecimento da universidade

            Esta greve começa numa assembleia que não deliberou greve, mas durante as exposições um punhado de militantes sugerem incluir a votação de greve nas pautas. Nunca se falou tanto sobre racismo e ocupação da universidade como nessa assembleia e nessa greve. Os argumentos eram válidos, renovados, e só um tolo para contrariar esse tipo de humanismo. Desta vez parecia que a luta fazia sentido, atraía um coletivo nunca visto antes e não podiam esperar.
            Pareciam mais organizados do que nas demais assembleias. Seus propósitos, certeiros. A mesma luta com um novo slogan, com mais pessoas, mais legítimo, mais intenso.
            Dessa vez, quando eles falavam bravos e agressivamente, não parecia violência, foi empoderamento. O único momento em que a faculdade parava para ouvir os estudantes negros, suas histórias, suas dificuldades, o preconceito sofrido, as expectativas e suas realidades atuais. O que algumas pessoas chamam precipitadamente de vitimismo (direcionado às minorias políticas) era pouco sólido, visto que esses estudantes passavam pelo constrangimento de se expor, estavam em situações delicadas diante de multidões, tinham sua imagem comprometida por relatos de experiência em prol da luta.
            Eles tinham uma vida mergulhada na dor de serem negros e/ou pobres, ainda por cima deviam se orgulhar disso, pois os brancos não fariam isso por eles. Se não fossem os estudantes negros para encrespar seus cabelos, seriam alisados pela universidade.
            A música deles incomoda. Seus rituais religiosos são satânicos. Seu intelecto é inferior. Sua cor é sexualizada. Sua beleza beira a feiúra. Sua pele é suja. Nos sonhos, são as trevas e as sombras. Na sociedade, são os pobres, marginais, assaltantes, pedreiros, lixeiros. Sua cultura é menosprezada, isso quando é considerada cultura: “vocês acham que preto não faz filosofia?”, eles nos perguntaram, “quantos autores negros temos nessa faculdade?”. E mais tarde fomos descobrir que não sabíamos nada sobre África, conhecíamos apenas os relatos dos europeus e estereótipos afins.
            Nenhum livro teria me ensinado isso, e sempre li muito. Nenhum livro teria feito eu sentir na pele, pela primeira vez, o arrepio de uma história contada a choros e raiva semicontida. Nenhum livro teria feito eu olhar nos olhos de um negro que fala sobre si e sentir a vergonha da história de meus descendentes. Nenhum livro teria apontado o dedo para mim e dito “você é um racista”. Nenhum livro, por mais bem escrito que fosse, faria meu corpo vibrar com aquela roda de relatos, cada um mais surpreendente e incômodo que o outro. Nenhum livro me traria tanta tristeza ao perceber que esses estudantes estavam certos. Algumas pessoas que os ouviam, não todas, conversavam distraidamente enquanto muitos se debulhavam em lágrimas revivendo memórias que deveriam manter guardadas, como a prostituição, a prisão de irmãos e amigos na favela, a invasão de policiais a suas casas sem mandato judicial com armas prontas para serem usadas.
            Um efeito blasé generalizado do mais alto nível. Tínhamos estudantes, professores e funcionários atentos e se emocionando, mas e esses outros que faziam pouco dessas pessoas corajosas que se expunham? Quem eles pensavam que eram?
            Provavelmente essa é a parte mais marcante dessa greve.
            Esta foi a única greve que eu vi tomando proporções colossais e que durou mais de um mês. Da Faculdade de Educação, esse debate, somado à falta de vagas na moradia universitária, tornou-se uma greve de boa parte dos estudantes de graduação de praticamente todos os institutos da universidade, contando com estudantes da pós-graduação e apoio de alguns professores.
            A luta era legítima e numerosa. Os estudantes discutiam como estrategistas. Invadiram a reitoria prevendo o impacto simbólico que isso teria. À meia noite, estávamos todos dividindo as funções. Planejava dormir na reitoria. Até o momento em que vi que nem todos poderiam ficar ali. Muitas pessoas atrapalhariam, mas eu voltaria alguma ora.
            E faltava alguma coisa...
            Talvez conhecimentos de Direito. Estudar mais Economia. Saber as políticas públicas destinadas à universidade.
            Os estudantes se envolveram de uma forma que eu nunca tinha visto. Eu me envolvi de uma forma que nunca aconteceu antes. Esqueci todos os meus trabalhos, parei meu TCC, nem olhava mais meus e-mails (não tinha tempo). Nunca passei tanto tempo na universidade interessado em estar junto com outros estudantes, me sentindo parte da universidade, sabendo que eu não lutava por uma causa perdida e sem me importar se minhas amigas concordavam ou não.
            Os dois primeiros meses foram aulas abertas, palestras e rodas de conversa sobre a universidade, democracia e espaços públicos, sempre trazendo à tona as minorias políticas, que partilhavam daquele espaço. Depois a luta assumiu outros traços: estudar tudo o que acontecia nas rodas de conversa em casa, ir n’algumas assembleias (como do Instituto de Físca Gleb Wataghin, Instituto de Química e Instituto de Economia) e correr para a reitoria toda vez que anunciassem possibilidade de reintegração de posse.
            Àquela altura da greve eu era bem recebido pelos militantes da minha faculdade, eram meus colegas, conseguíamos rir de pequenas coisas, mas nunca uma conversa elaborada. Ainda me sentia desconfortável perto deles.
            Bem depois, de volta à reitoria, percebi que minha semidesistência da luta era porque eu não tinha nenhuma familiaridade com nada que acontecia ali dentro. Eu não compartilhava nenhum traço de identidade com nenhuma causa dali: eu não era negro, pobre, favelado, gay, injustiçado, humilhado, nem nada, nem todos que lutavam eram tudo isso ao mesmo tempo, mas eles eram minoria política, eles resistiam do jeito que sabiam e faziam como achavam melhor, seria um insulto alguém querer ensinar eles como fazer isso. Também reivindicávamos a universidade pública, mas essa luta só existiu porque não temos tantos negros quanto esperávamos.
            Simplesmente desisti porque não me encaixei ali, mesmo assim continuei solidário, ao menos indo à universidade participar de algumas assembleias nos institutos, nas assembleias gerais e em todos os alarmes falsos de reintegração de posse, da reitoria e de outros locais da universidade. Mas a gestão e o planejamento ficaram com esses estudantes que ajudavam seus pares a conquistar o espaço público da universidade.
             Esta greve também foi mobilizada, em parte, pelo golpe de Michel Temer. Sem esse envolvimento com a greve o “Fora Temer!” nunca faria sentido ou qualquer outro posicionamento parecido. O currículo da graduação seria insuficiente para pensar a política, por mais política que seja a Educação.
            Aquele garoto de 18 anos que ingressa a faculdade não quer se envolver demais, não vive o mundo, acredita que os problemas são os outros, não percebe boa parte dos conflitos sociais, acredita no poder da justiça, naquilo que pensa. Prisioneiro de si mesmo, sofre a angústia de ter que viver o outro, é mais fácil que cada um cuide do que é seu. Não é assim para todos? Não gostamos de ter nosso Eu preservado? A universidade não fragiliza o Eu? Enquanto eu permaneço intacto e vejo na universidade minha própria cultura crescendo e aumentando, com ela eu me satisfaço, ela é uma extensão dos meus planos para mim mesmo, só tenho a desfrutar dela. E para esses grupos que exclamam devido a violência simbólica? Eles simplesmente forjam sua identidade, dando fins às greves? Nossos habitus eram diferentes: as formas de falar, pensar e agir eram distantes demais para dar certo juntas.
            E esse papo de Eu e Outro continua muito estranho. É o que um acadêmico diria. Os grevistas só queriam cama na moradia e preto na universidade nessa última greve, como eles mesmos diziam. Querem seus pares se formando para conseguir um bom emprego, ocupar uma ótima posição social, dar uma educação boa para suas crianças (não podemos nos esquecer das mães, estudantes e/ou trabalhadoras naquela greve), contribuir para o bem estar da sua comunidade. Conhecimento? Querem algum saber para usar no mercado, não são como aquela elite de filósofos ociosos. Depois que tudo isto estiver arrumado nós podemos falar de Eu e Outro, conceitos de um modelo teórico útil para algumas ciências, por isso, não podemos dizer que eles adotam essa mesma ladainha. Se adotam, facilitam para nós, os acadêmicos.
            Ah! Aí está a distância...
            Os propósitos da greve de 2016 não foram extraordinários, suas pautas existiram em todas as outras greves, entretanto, coadjuvantes, ofuscados por coisas que pareciam mais importantes enquanto os verdadeiros grupos alvo das políticas públicas não se manifestavam.
            Se não greve, então o que?
            A greve é benéfica para todos, com um efeito singular em todos os corpos, muitas vezes é sobre experiências partilhadas, e aí ela conquista seu sentido. Para mim, me levou a refletir sobre continuar uma vida medíocre ou passar por um período de experimentação, sem saber o que esperar disso. Eu não preciso viver da mesma forma que esses grupos, e sei que não posso fazer tudo por eles. Não serei eu, portanto, que irá calar sem pesar.
            Todo esse drama interior possui pegadas apagadas no chão das assembleias. Nela, um outro eu fala, aquele que tem que se posicionar politicamente sem duvidar de si mesmo. E no final das contas, estar na assembleia só me faz pensar o que falta para eu ser como eles, e inversamente, o que falta para eles serem como eu. No fim disto tudo, a greve cumpre com sucesso estimular politicamente o estudante ou trabalhador a posicionar-se diante de outras pessoas, a formular uma política de si: a repensar-se num espaço, a repensar as pessoas nesse espaço, a consolidar as relações, a ouvir os diversos locais de fala, a colocar-se num lugar de escuta, a perceber as contradições, angustiar-se com as contradições típicas da existência, finalmente encontrar uma verdade e vê-la desmanchar sem aviso prévio, e com ela desmancham-se as certezas sobre si mesmo, o pensamento volta-se novamente para esse mundo fraturado.
            Greves podem ser extremamente pedagógicas simplesmente por proporcionar experiências únicas. A política enuncia poderes, as assembleis problematizam-nos com maior ou menor grau de sucesso e o participante movimenta-se num plano imaginário perguntando-se “e onde eu estou nessa história toda?” ou reafirmando sua posição atual, certo de si. Nesses espaços ouvimos o que queremos e o não queremos, o que nos agrada e o que nos desagrada, o que nos faz vibrar e o que nos faz murchar, o que nos faz sorrir e o que faz chorar, o que nos aproxima e o que nos afasta. O mais incrível é perceber como locais pequenos, como uma Faculdade de Educação, abrigam tantas discordâncias e tantos grupos, daí para a dificuldade de encontrar uma pauta comum ou consenso nas lutas prioritárias.

            A maior dificuldade, como já disse, é ter que fixar-se num espaço que te desestabiliza, devo ter certeza que sou a favor ou contra esta ou aquela pauta, porém, se isto acontece é porque minha prática política talvez seja um tanto imatura. De outra forma, poderia ser um sentimento banal e comum dentro deste ambiente. Serviu-me, de qualquer maneira, para confirmar a necessidade de uma ação política. Mesmo na derrota política, a tentativa de agir para alguma coisa foi mais fundamental que não fazê-lo devido a mitos vulgares de minha cabeça de 15 anos. Conhecer-me como um ser político foi uma das mais satisfatórias descobertas durante o período da universidade, de ser colocado em contradição e compreender que algumas contradições nunca desaparecem, que as certezas ou verdades são provisórias e que a ideia de poder (dominar e ser dominado) ainda é frágil, tanto entre aqueles que o sofrem quanto entre aqueles que o tornam objeto de estudo, podendo acontecer as duas coisas ao mesmo tempo.

Salvador Dalí. Metamorfose de Narciso. Tinta a óleo. Tate Modern. 1937.

O que tem na creche do neném?

Apresentação e outras coisas importantes

            O seguinte relatório foi elaborado com o propósito de servir como avaliação final para a disciplina Estágio Supervisionado III – Educação Infantil (EP912-A), cursada na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas. Destaca-se aqui uma característica narrativa[1], vem relatar a experiência do ponto de vista do estagiário, favorecendo seu protagonismo sem correr o risco de sumir com o observador; pode falar sobre si mesmo, da própria participação, dos acontecimentos no plano afetivo, dos pensamentos, das intuições, das angústias e da rede na qual está inserido.

Metodologia ou narrar o vivido

            A narrativa é tanto um exercício de memória quanto reconhecer o portador das memórias, a possibilidade da narrativa ser objeto de conhecimento está na afirmação de um sujeito cognitivo-reflexivo. Desta forma, a creche, local onde foi realizado o estágio, não é a priori ou por excelência objetiva em si, a parcialidade implica numa dialética entre a realidade objetiva da creche e sua assimilação subjetiva pelo estagiário, cuja história de vida (suas narrativas profissionais e pré-profissionais[2], ambas narrativas pessoais) desvelada justifica compreender a creche tal como ela é relatada por ele.
            Sabendo que a narrativa pede um sujeito para dizer algo sobre si numa determinada situação, não vemos motivos para não continuar com um pronome pessoal do caso reto em primeira pessoa: “eu”[3]. Assim, como num conto leve e investigativo (como num Sherlock Holmes[4]), pretendo cumprir meus objetivos como estagiário de pedagogia que visitou uma creche com fins mais ou menos certos.

Objetivos: por que mais ou menos certos?

            Por um lado, é obrigatório, não há escapatória da disciplina e cumprir o estágio está determinado no currículo, tem que ser assim mesmo que eu não queira; por outro, fazer estágio (e sei disso por conta de ter vivido outros estágios) aproxima o graduando em pedagogia da ideia de creche ou de escola, e chegando lá vê, compara as coisas humanas e não-humanas com os mitos e fantasias que inundavam seus pensamentos íntimos, espantando-se, alegrando-se, entristecendo-se, angustiando-se, surpreendendo-se com o que encontra.
            Os objetivos são mais ou menos certos porque viver as experiências de estágio pedem reconsiderações sobre os planos iniciais. Se eu, permita-me pressupor, vou para observar o desenvolvimento sensório-motor dos bebês, posso me surpreender com os cuidados muito bem dados a eles e elas pelo(a) professor(a) e me interessar por isso de forma que me esqueça de observar como as crianças seguram, olham e mordem os brinquedos, algo totalmente plausível para fins de estágio, o que poderia ser imensamente reprovável em outras situações, como alguma pesquisa sobre bebês em que pensar a formação do profissional é uma digressão comparada à observação do comportamento dos pequeninos e pequeninas.
            Devo apresentar-me: sou pedagogo e estudante (informações esperadas e requisitadas); irmão mais velho (sempre foi exigido que eu cuidasse de meus irmãos-crianças, mesmo sendo criança); morador de república estudantil (sei o quão importante é conversar e combinar regras para conviver harmoniosamente, atitudes que eu esperava ver na creche com a noção de gestão democrática); leitor inquieto (tentarei ser o menos prolixo possível); violonista (me interessa uma educação artística para as crianças); contemplador de árvores (admirador da natureza e espero que as crianças tenham oportunidade de fazer o mesmo); e registrador de sonhos (me interessa seus mistérios tanto quanto aqueles que as crianças guardam consigo, e nem sempre são lógicos, às vezes são uma não-razão, razão-sem-lugar ou razão outra).

Vamos falar da creche e seus participantes

            Eu acordava às 6h da manhã para chegar à creche às 7h,  horário para receber os pais. Este estagiário que fala contigo, entretanto, mora bem perto da creche, essa que fica próxima a um hospital dentro de uma universidade estadual e pública, inclusive, a creche começa como iniciativa de uma enfermeira ligada a esse hospital. Essa mesma creche não recebe qualquer criança, apenas aquelas de funcionários e estudantes dessa universidade.
            Os pais deviam acordar as crianças cedo, como 5h, e uma professora uma vez me contou que elas acordavam às 4h30. Informação das conversas rápidas que os pais têm com as professoras quando retornam entre 12h-13h para buscar seus filhos (13h começa outro período que vai até 19h).
            A creche possui ótimas instalações: luz, água potável, cozinhas, espaço a céu aberto com caixa de areia e brinquedos de parquinho (escorregador, gangorra, balanço, trepa-trepa, casinha, etc.), salas das turmas, sala de professores, espaços cobertos com almofadas, outros brinquedos, piscina de bolinha, jogos de tabuleiro, cantinho de fantasias, um jardim com mesinhas e mais brinquedos próximo às salas de coordenação e secretaria (vale mencionar o aquário em frente dessas salas, as crianças de 2 anos ou mais adoravam ver os peixinhos ao passarem por lá).
            Há uma diversidade de crianças por lá, embora predominem as crianças brancas, pelo que percebi. As diferentes etnias justificam-se, na maioria das vezes, pelas crianças serem filhas de estrangeiros. Isto apenas confirma o processo de exclusão de algumas categorias sociais pela incapacidade da universidade receber um público mais diversificado. A diversidade da creche justifica-se mais pelas crianças dos estudantes e funcionários com funções vistas como menos prestigiadas do que pelos professores universitários.
            Foram 60h de estágio na creche com as crianças e profissionais do local (professoras, cozinheiras(os), auxiliar de limpeza, nutricionista e diretora). Todas as professoras possuíam graduação em pedagogia, uma delas me informou que era doutoranda em educação infantil e outra estava prestes a terminar o mestrado, também em educação infantil. Verifica-se no grupo gestor especializações em área de pedagogia, informação significativa para uma administração pedagógica dos recursos escolares como foi presenciado no estágio. Enquanto isso, as auxiliares de limpeza e as(os) cozinheiras(os) tinham, no máximo, ensino médio completo. A maioria completou o ensino fundamental.
            As crianças são divididas em turmas de acordo com sua idade. As turmas recebem o nome de Convivência, uma concepção diferente da divisão em Séries, essencial para a ideia de interação que sustenta a educação infantil. A isto devemos a ida das crianças de 6 meses à 1 ano e 11 meses para o Convivência I, das crianças de 2 anos à 3 anos e 11 meses para o Convivência II e, por fim, das crianças de 4 anos à 6 anos ao Convivência III. Estagiei 24 horas no Convivência I, 24 horas no Convivência II e 12 horas no Convivência III, divisão de horários atribuída pela orientadora pedagógica, responsável por receber os alunos de estágio.

Sonecas sonolentas e brincadeiras saborosas 
    
            Optarei por relatar o cotidiano da escola, as coisas que acontecem dia após dia, muitas vezes de forma repetitiva, o que tornava previsível as atividades apenas por olhar o relógio por transformar-se em rotina.
            De uma forma geral, as atividades seguiam um cronograma: receber as crianças, brincar dentro da sala, comer, brincar fora da sala, brincar dentro da sala, tomar banho (apenas para crianças das Convivências I e II, o grupo Convivência III brinca nesse mesmo horário), comer, dormir (apenas para crianças das Convivências I e II, o Convivência III brinca nesse mesmo horário), brincar fora da sala se acordar e esperar os pais/ser acordado pelos pais (Convivência III brinca no parque e as crianças esperam os pais por ali, não dormem nesse horário).
            Algumas crianças chegavam à creche dormindo nos braços dos pais, e mantê-las acordadas não era trabalho fácil. Uma criança do Convivência II em especial, com síndrome de down, não media esforços para dormir, encostava-se nos brinquedos, no tapete de encaixar e apenas dormia, enquanto outras da mesma idade dirigiam-se à professora e informavam que estavam com sono (por gestos ou palavras).
            As professoras se esforçavam muito para não permitir que as crianças dormissem, o que me causava um desconforto. Talvez por empatia, já que eu também chegava cansado no estágio por ter dormido de 3 à 4 horas, eu tivesse puxado os colchonetes da sala para essas crianças que estivessem mais ou menos cansadas. As professoras, por outro lado, evitavam deixar as crianças dormirem.
            No Convivência I acontecia das crianças dormirem, era comum, embora não fosse incentivado. Quando as crianças choravam tomávamos, nós cuidadores e educadores, algumas atitudes: entregar um brinquedo ou conversar com a criança; outras abordagens eram carregá-la no colo, algumas paravam de chorar instantaneamente, outras requisitavam um passeio e uma boa conversa, algumas precisavam ser balançadas, postas no dormidor, mas dormir era a última opção das professoras.
            Havia a opção de deixar o bebê chorando, acontecia muito quando nenhuma das outras tentativas funcionava. Este último justificava-se pela birra, que, segundo as professoras, não deveria ser incentivado. Pareceu-me mais uma habilidade intuitiva que a associação do comportamento do bebê a um sinal correlato, ou, em outras palavras, qualquer ação que levasse ao choro poderia ser considerada birra, e só era birra porque alguma professora afirmava o fato, acompanhado de concordância geral das demais professoras.
            De forma geral, não apenas no Convivência I, as professoras conheciam as crianças a ponto de pressupor quais atitudes seriam mais eficazes com qual criança. Digo isto por perceber que diante de uma mesma situação as professoras apresentavam posições diferentes para crianças diferentes. Por exemplo, elas reconheciam que algumas crianças choram por birra porque querem o colo que os pais estão acostumados a dar sempre que ela chora, enquanto outra chora porque a professora sabe que está com sono, dá pra ver como está cansado.
            Com isto quero dizer que encontro nas professoras um esforço de compreenderem as crianças que chamam de suas. Quando elas anunciavam a birra numa criança o mais comum é que ela chorasse por um tempo, parasse e observa-se o ambiente, como se verificasse o que está acontecendo, retornando a chorar. Esse choro intermitente era o que as professoras caracterizavam como birra, diferente dos choros contínuos, que causavam uma verdadeira comoção.
            Dormir era para algumas crianças (Convivências I e II) uma atividade forçada. Lá pelas 11h30 as professoras puxavam os colchonetes, pegavam os lençóis nas bolsas de cada criança e deitavam-nas de barriga para baixo. Algumas dormiam num piscar de olhos, outras levavam seu tempo para adormecer e os mais arteiros (os irrequietos e barulhentos) eram ninados: elas cantavam ou cantarolavam e davam tapinhas carinhosos na fralda dos pequeninos (conheço pais que fazem a mesma coisa para ajudar os filhos dormirem). Muitas vezes, para evitar que eles se levantassem do colchão as professoras utilizavam o braço como barras de contenção, sua força prestigiada permitia que elas obrigassem as crianças a permanecerem deitadas já que estava na hora da soneca.
            Esta demora em descrever o sono dos bebês e suas possibilidades na escola acontece por uma preocupação que tenho sobre o sonhar e a atividade onírica da criança. Os sonhos como o poço das imagens que falam sobre o si mesmo é desacreditado demais[5], preferível pensar o sono como o descanso do corpo, como fazem as professoras. O sono possui uma função de recobrar as energias das crianças para o brincar, porém, há uma contradição: se o importante é brincar e a criança sem sono quer brincar, as professoras se veem numa situação delicada ao impedirem essa atividade da criança ao pô-las a dormir com seus braços-com-função-de-camisa-de-força. Por outro lado, evitam ambientes caóticos demais, já que uma atividade vale para todos, como dormir.
            Sorte das crianças do Convivência III que não dormem e nunca parecem cansadas, o que é assombroso demais para mim que chegava ao estágio pensando em quão ruim seria deitar em um dos colchonetes (e não o fiz por refletir sobre minha conduta moral enquanto estagiário: hora de dormir ou hora de ficar com as crianças e aprender algo com elas?).
            Dito isto, passemos adiante.
            As brincadeiras das crianças acontecem a todo o momento: nas salas, no parque, no banho, no refeitório, quando se preparam para dormir. Brincam com ou sem brinquedos. Nas salas, em todas elas, por querer proporcionar um espaço amplo para o deslocamento das crianças os brinquedos nem sempre estão no mesmo nível delas, o que dificulta um pouco sua autonomia, que acaba sendo incentivada de outras formas. As salas são muito parecidas, todavia, há um toque especial dado por cada professora e partir de seu sujeito profissional para a sala, o que é suficiente para criar diferenças entre esses espaços.
            Os brinquedos quase sempre estão em caixas de plástico e divididas por semelhanças. Uma caixa possui apenas carrinhos e caminhões, outra apenas bonecas, outra apenas panelas e comidinhas de plástico, outra apenas bolas de plástico.
            No Convivência I há redes penduradas no teto para bolas coloridas do tamanho de bolas de futebol e de tamanhos maiores. Portanto, bastava olhar para cima e ver um monte de bolas coloridas e bonitas acima das nossas cabeças. Também havia bambolês com fitas penduradas neles, como se fossem halos de luz, só que eram halos de fitas (o do Convivência I ficava dentro da sala e o do Convivência II ficava fora dela).
            Os brinquedos mais pesados costumam ficar em cima, enquanto os mais leves ficam embaixo. Foi somente no Convivência III que eu percebi os brinquedos dispostos de forma mais livre. Mesmo com as prateleiras para guardar as caixas de brinquedos, alguns são maiores, como o fogãozinho, o cantinho da casinha (com tábua de passar roupa), os fantoches pendurados num suporte para parede e não amontoados na prateleira com outros brinquedos.
            Durante as brincadeiras as crianças contam com imagens (desenhos, fotos, impressões e outros tipos de representações gráficas) colocadas à parede, o que chamava a atenção e podia virar brincadeira também, momento em que elas apontavam para as imagens e dirigiam a brincadeira que acontecia no chão para a parede. O brincar mudava de plano, com isso pude ver carrinhos nas paredes, bonecas nas paredes, crianças coladas às paredes.
            As brincadeiras livres em sala eram acompanhadas por música, o que é muito bem visto por este narrador-instrumentista. Pena que nem sempre as professoras sabiam o que tocavam para as crianças. Quando eram músicas com letra, como composições do grupo Palavra Cantada, tinham o nome das músicas na ponta da língua, mas as músicas instrumentais eram compilações retiradas de algum canto mais ou menos certo da internet, como do Youtube (e dizer apenas isto não me parece uma referência satisfatória). No Convivência II, onde apareceu em maior quantidade as músicas instrumentais enquanto estive por lá, as professoras me disseram que procuraram por música instrumental para bebês/crianças e encontravam músicas que além de sons seguindo harmonias e melodias eram atravessados por uma sonoplastia que lembrava a natureza, como o agitar do vento, o correr da água, o farfalhar das árvores e o cantar dos pássaros.
            A recepção das crianças também era musical, formavam-se rodas ou as crianças ficavam dispostas em fila na parede (serve de sustentação para os menores, assim conseguem permanecer sentados) para receber bom dia e serem incentivadas a dar bom dia, o qual era cantado e o nome das crianças também.
            Em frente às sala de aula estavam locais abertos nos quais todas as crianças das salas da mesma Convivência brincavam juntas, há muitos brinquedos com funções variadas (ensinadas ou ressignificadas pelas crianças): montar, escalar, escorregar, esconder-se e saltar, por exemplo. São, em sua maioria, castelinhos pequenos, casinhas de plástico e até um trenzinho da altura de uma mesa de jantar e comprido como uma porta, exclusivos do Convivência II.
            No Convivência III predominam brinquedos de cimento (como a casinha), metal (o trepa-trepa) e madeira (o castelinho). É interessante reparar como o ambiente é preparado para as crianças: no Convivência I o chão é quase todo cimentado, com pouca grama, dois arbustos e a caixa de areia, na qual não presenciei nenhuma brincadeira com água (as brincadeiras com água aconteciam fora da areia). No Convivência II a grama ganha maior presença, há uma árvore grande e uma caixa de areia que está a maior parte do tempo molhada. No Convivência III, o chão é inteirinho de terra e com uma quantidade de árvores maior; areia e água estão à disposição das crianças.
            Com isto quero apenas apontar a relação das crianças com a natureza dentro da escola, acontece principalmente nesses espaços. Outros dois espaços alternativos para brincadeiras eram o pátio da entrada da creche, rodeado de árvores e com piso de concreto, local ótimo para desenhar com giz, como acompanhei o Convivência III desenhando borboletas, serpentes e outras imagens sem sentido para os adultos e igualmente criativas; Convivência II também fez uso dele para usar as motocas, com uma quantidade impressionante de cores rosa, que rende a seguinte digressão: a professora dessa turma me contou que alguns pais ajudam a comprar as motocas, nisto uma mãe desculpa-se com a professora por não trazer o brinquedo no dia combinado, só encontrara motocas rosa. A professora, que naquele momento conversava apenas comigo, aponta para o filho dessa mãe e diz “Faz alguma diferença a cor da motoca? Olha só, ele não tá nem ligando, tá brincando e nem aí pra cor”. Ali, concordamos que a cor era um mito enraizado no pensamento dos pais.
            Retornando, o outro espaço alternativo é o jardim ao lado da diretoria, passando pelo aquário, este possui jardineiras, vasos, pergolado com vinha, araras de madeira penduradas na parede, um sapo de cerâmica encantador aos bebês (outras vezes um incômodo por ser mais ou menos assustador), flores plantadas no solo e mesinhas de plástico. Pelo que vi, foi mais utilizado pelo Convivência I para levar os bebês para brincarem com as grandes bolas coloridas.
            As crianças possuíam uma grande liberdade para experimentarem a areia nas roupas, nas mãos, de sentir as folhas caídas no chão, de brincar onde quer que fosse e como fosse (com ressalvas para lugares altos, como subir num banco ou ficar de pé no trenzinho). Eram orientadas a não arrancarem as plantas do solo, mas a observá-las, acariciá-las, tocá-las delicadamente para não machucá-las.
            O jardim era um lugar que eu admirava muito e achava bem confortável para estar com o bebês (mais que o concreto). Além dele, gostava de ficar na caixa de areia também, e brincava com as crianças usando as formas de areia, bolas e bonecos(as) espalhados pela caixa de areia do Convivência II.
            Destas brincadeiras todas, sua extensão era o refeitório, ao menos para as crianças do Convivência I e II, já que o Convivência III começava um disciplinamento alimentar. Os bebês tentavam tocar sua comida com as mãos, não eram impedidos de fazê-lo, as professoras permitiam que as crianças sentissem a comida, fossem nos comedores (cadeirões) ou nas mesinhas da altura das crianças e sentadas em cadeiras (os bebês tinham cadeiras de madeira parecidas com cadeirões). Os bebês, ao interessar-se pelo prato de comida, reviravam-no ou agitavam suas mãos, que ao contato com o prato podia esparramar comida, daí as professoras afastavam o prato da criança.
            Como sempre, a conversa com os bebês eram constantes durante a refeição, fosse para questionar (“Não vai comer a cenoura?”), parabenizar (“Parabéns! Hoje comeu tudo!), orientar (“Agora é hora de comer”) ou corrigir (“Não te dei a colher para jogar no chão, não é pra jogar no chão, agora vai ficar comigo!).
            No Convivência II as crianças eram incentivadas a usar os talheres, experimentavam à vontade o como comer. Eram igualmente orientadas, parabenizadas, questionadas e corrigidas. Não existia forma certa de segurar o talher, elas seguravam como conseguiam, o importante ali era o contato com a experiência de usar o garfo ou a colher.
            Para o Convivência III a conversa acaba. Segundo a nutricionista que acompanha a creche em tempo integral, é importante neste momento dos 4 anos não incentivar a conversa durante a comida para contribuir com a aquisição de hábitos alimentares saudáveis, entre eles, a concentração e a descoberta do próprio ritmo para a comida.
            Pareceu-me um momento de meditação na alimentação, dado o silêncio obrigatório, e, óbvio, as crianças não estavam nem aí para hábitos alimentares. Trocavam olhares, cochichavam, gracejavam, faziam caretas, mímicas e pantomimas. As refeições são as novas sonecas, as novas experiências disciplinadoras. Se antes era ao dormir que o prazer era interditado, será na alimentação que a disciplina se reinventa. Porém, ao contrário dos bebês, em que o princípio de prazer é régio, as crianças maiores, nesse período de desenvolvimento em que as regras passam a ser fundamentais para a descentração do ego, aceitam mais abertamente as orientações de fazer silêncio quando comem. Usam uma tática para se esquivar da regra, algo parecido com fico em silêncio quando estão por perto, se estão longe ou se esquecem de nós, posso falar.
            Algumas crianças do Convivência II transitam das fraldas para o toalete, informam às professoras que querem ir ao banheiro e são acompanhadas e orientadas na higiene pessoal, a qual ocorre de forma individualizada. No Convivência III o banheiro (sem portas ou paredes, como nas turmas da Convivência anterior, apenas está no corredor), além de momentos de necessidade, antecede as refeições, daí todas as crianças se organizam para usar os vasos sanitários, veem os corpos umas das outras e isto é tratado com a maior naturalidade entre elas e pelas professoras. Depois lavam as mãos, e dificilmente precisam de ajuda para pressionar a saboneteira (com sabonete líquido) ou esfregar as mãos, a autonomia vai sendo desenvolvida no banheiro.
            As brincadeiras também prosseguem por ali, principalmente na hora do banho, com as Convivências I e II, quando os brinquedos são levados para o banheiro, pelo toque/sensações, pela conversa ou pelas fotografias dos amigos coladas nas paredes (para o Convivência II), e delas as professoras perguntam às crianças “quem é esse amigo?”, “você sabe quem está aqui?”. As crianças mantém o olhar fixo nas fotografias, balbuciam, sorriem ou prestam atenção em outras coisas, como a água que molha seu corpo e atenção ao próprio corpo.
            Vi o Convivência III brincar poucas vezes no banheiro, e geralmente eram correrias, resultando na intervenção da professora em aparar o momento lúdico dessa relação para prepará-las para comer.

Considerações finais

            Este tom descritivo da narrativa possui fortes influências de As trocinhas do bom retiro, de Florestan Fernandes[6]. Na condição de escolher de forma relativamente livre como eu poderia escrever o relatório, optei por descrever o visto e menos por atribuir um valor equivocado sobre as coisas, por isso a descrição do ambiente, dos brinquedos, das ações, algo que se assemelha muito a um estudo etnográfico com fins para a Sociologia do que para a Pedagogia propriamente dita, daí as perguntas “o que se aprende?”, “como se desenvolve?”, “como interagem entre pares?” estiveram atreladas mais ao “brincar”, nem sempre ao “como brincar?”, mas às possibilidades de brincadeiras e como a escola e seus profissionais se posicionam diante da brincadeira. O brincar, portanto, recobra o sentido pedagógico do relatório.
            As práticas pedagógicas na escola e a preparação dos profissionais me pareceu muito adequada para os rumos da Educação Infantil numa perspectiva nacional, caso fosse possível reproduzir essas experiências. O ambiente é muito rico em recursos e seu planejamento é igualmente invejável, contando com participação da família, estagiários e pesquisadores.
            Há na creche uma preocupação unânime (ao menos com as profissionais com as quais estive) do direito ao brincar, cuja única contradição é a questão da soneca dos bebês e crianças do Convivência I e II. Mesmo a disciplina do silêncio para a alimentação, com todos seus desprazeres, possui fundamentos científicos apresentados pela nutricionista e não visam a disciplina em si, mas a melhoria de hábitos alimentares para proporcionar uma vida nutricional mais qualificada para o sujeito.
            Para finalizar, é importante ressaltar discrepâncias que surgem, na condição de estagiário, entre as experiências pré-profissionais (antes de inserir-se na função de educador) e experiências profissionais (inserido na função de educador). Independentemente dos objetivos iniciais da disciplina Estágio Supervisionado III – Educação Infantil (EP912-A), encontro no estágio a oportunidade de aprender, construir, reformular, questionar, discordar e reavaliar concepções de educação (anteriores ou posteriores ao ofício de pedagogo).
            Igualmente, o estágio não está aí para fabricar profissionais. Encontro no estágio a oportunidade de rever valores, conceitos, ideais e princípios pessoais com valores, conceitos, ideais e princípios científicos, somados à ética profissional exigida do pedagogo, muitas vezes contrário à moral societária (moral da ordem social). Por exemplo: o brincar é ócio criativo para o desvelar de experiências, um sentir-se e sentir o outro da criança, inconciliável com uma educação para o labor, como promete o mundo veloz do capitalismo globalizante: planeta da melancolia, do gozo artificial e da produção desmedida do excesso[7].
            Assim como a Educação Infantil é um espaço para a criatividade e produção de si mesmo da criança pela própria experiência, e simplesmente por viver experiências significativas, o estágio é uma oportunidade de colocar em xeque as próprias vivências (por escrita de memórias; narrativas como esta; discussões sobre nosso próprio gênero, raça, classe e desejos em sala; filmes que dialogam com a realidade da educação e das crianças, para mencionar alguns artifícios utilizados na disciplina) para ilustrar nosso mundo interno e confrontá-lo com o mundo externo, de saber nossas projeções e introjeções[8]. Essas que deslocam a nós pedagogos, educadores, agentes sociais, pessoas que se conectam e se relacionam com outras, com o outro[9].



________________________________________
[1] BENJAMIN, Walter. O Narrador: Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura [Obras escolhidas. Volume 1] São Paulo: Ed. Brasiliense, 1987.
[2] TARDIF, M.; RAYMOND, D. Saberes, tempo e aprendizagem do trabalho no magistério. Educação & Sociedade, ano XXI, n. 73, Dezembro, 2000.
[3] LARROSA, J. Tecnologias do Eu e Educação. In: O Sujeito da Educação: estudos foucaultianos. SILVA, T. T. (org.). Petrópolis: Vozes. 1994.
[4] DOYLE, Arthur Conan. A Face Amarela. [Coleção Sherlock Holmes] São Paulo: Ed. Rideel, s/d.
[5] JUNG, Carl Gustav. A Energia Psíquica. 14ª Ed. [Obra Completa de C. G. Jung]. Petrópolis: Vozes, 2013.
[6] FLORESTAN, Fernandes. As “Trocinhas” do Bom Retiro. Pro-Posições, v.15, n.1(43) – jan./abr. 2004.
[7] CORBANEZI, Elton. Melancolia, de Lars von Trier: um diagnóstico do presente. Baleia na Rede – Estudos em arte e sociedade, vol. 9, n. 1, 2012.
[8] KLEIN, Melanie. Nosso mundo adulto e suas raízes na infância. In: Inveja e Gratidão e outros trabalhos. 4ª ed. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
[9] As teorias da infância que adentram timidamente este texto (com ênfase na experiência da criança) resultam de sínteses das leituras, discussões e produções realizadas também na disciplina Pedagogia da Educação Infantil (EP139-A), cujo objeto de estudo central é a criança e a infância, passando por autores como Phillipe Ariès, Elisabeth Badinter, Jens Qvortrup, Fúlvia Rosemberg, Tizuko Kishimoto, Florestan Fernandes, entre outros. A noção de infância e criança aqui possuem bases nessa outra disciplina cursada concomitantemente com a disciplina de estágio, cujos objetivos estão nas práticas pedagógicas do professor (neste caso, estagiário), o que justifica, mais uma vez, minha escolha por um método narrativo-descritivo. Outro ponto importante é justificar a pouca descrição da interação entre estagiário-criança pelo recorte que quis dar neste relatório não ao que o estagiário faz, mas o que estagiário vê, o que poderia compor uma próxima parte do relatório: o que estagiário faz com o que vê? Questão partilhada nas aulas presenciais e, pode-se dizer, pano de fundo delas. Não foi, entretanto, o objetivo deste relatório final.

terça-feira, 22 de agosto de 2017

Entrevista: memórias dos tempos de escola no Panamá contada por uma professora

1ª atualização: 29/11/2017

Nota introdutória

            Esta entrevista, iniciada como parte de um trabalho em grupo para a disciplina Escola e Currículo (código EP162 no catálogo), oferecida pela Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas, durante a graduação, e cuja transcrição envolve um projeto de natureza diversa dos interesses da disciplina e do referido trabalho, está dedicada a tomar conhecimento das memórias de uma panamenha sobre as escolas que ela frequentava em seu país a partir de seu discurso. Diante disto, não seguimos todas as normas de transcrição fonética, optando por uma articulação da ortografia da norma culta com a palavra falada, com suas variações linguísticas. Por exemplo: na sentença “comecei a enxergar isso mais tarde, talvez quando eu tava na terceiro série” (trecho da entrevista), optou-se por escrever tarde e não tardi (como consta no áudio), bem como manter o diminutivo da palavra estava: tava. Foram suprimidos alguns truncamentos e retiramos algumas interrupções discursivas, com a finalidade de tornar o texto o mais palatável possível, ou, numa sociedade na qual predomina a cultura escrita, visualmente estético. Retiramos também vícios de linguagem, como hem ou ham, entretanto, sem perder particularidades discursivas da entrevistada. Por exemplo, mantivemos expressões, que, ao meu ver, em nada dificultam a leitura do texto e são de consciência da entrevistada, como a palavra . As pausas no texto representam sempre mais de dois segundos, aquelas abaixo de dois segundos não foram expressadas. As maiúsculas no início das palavras podem significar um nome (Raquel), um país (Brasil), um acontecimento/evento histórico (Cortina de Ferro), uma obra (Pedagogia da Esperança) ou um lugar (Faculdade de Americana). O restante das normas de transcrição foi seguido utilizando-se as convenções destacadas no Projeto de Cooperação Internacional Brasil-Portugal[1].
            Ressaltando, esta transcrição não atende aos interesses do campo da Linguagem, mas da Educação e, possivelmente, da História e de outras Ciências Sociais, sendo, aqui, a pura demonstração de uma memória falada.

Entrevista

            As perguntas preparadas para a entrevista foram: a) Que memórias você tem dos seus dias de aluna na escola?; b) Vocês tinham alguma rotina na escola?; c) Como eram organizadas as salas de aula?; d) O que vocês aprendiam nas salas de aula?; e) As famílias participavam do processo educativo dentro da escola?; f) Você sentia que havia espaço para os alunos  desenvolverem sua autonomia?; g) A escola contribuiu para a formação de quem é hoje?
            A entrevistada é uma mulher estrangeira do Panamá, 56 anos, ensino superior completo e professora universitária. O ambiente no qual ocorre a entrevista é a sala da casa da entrevistada. O documentador-transcritor (eu) senta-se à poltrona, a entrevistada escolhe um sofá espaçoso. Estamos levemente de perfil um para o outro. A entrevista começa a ser gravada após consentida pela entrevistada. No começo decidimos se faríamos a entrevista em espanhol ou em português. Decidimos que seria em português. O sotaque do espanhol é sempre presente na pronúncia da entrevistada.

Documentador (D): geralmente nessas entrevistas, como esta, são importantes [as memórias =

Entrevistada (E): [sim.

D: que a gente [recolhe =

E: [okey.

D: das pessoas, e, inclusive, o sentido afetivo que as memórias têm pra as pessoas, e a primeira pergunta é que memórias você têm dos seus dias de aluna na escola e quais são [as memórias que você lembra =

D: [sim, [da minha escola =

A: [da escola?

D: sim, do início da escola primária?

A: momentos da escola, em todos os momentos você pode selecionar [livremente =

E: [sim.

D: algum deles.

E: bom, das memórias que eu tenho da minha escola primária que se chamava Juana Vernaza e era, é, uma escola pública e inicialmente nós tínhamos horário integral de estudo, então nós entrávamos de manhã e nós saíamos por volta de quatro horas da tarde com horário de almoço, já naquela época, década de sessenta, já a gente tinha um programa de alimentação escolar, existia na escola, e fora isso nós tínhamos além do curriculum ((referencia ao latim)) básico, normal das disciplinas, espanhol, geografia, história, né, nós tínhamos disciplinas da parte mais cultural, né, tínhamos música, tínhamos teatro, e tínhamos uma disciplina que se chamava educação para o lar, mas a educação para o lar não era uma disciplina destinada para meninas, era uma disciplina destinada para todo mundo, tanto meninos quanto meninas, onde tínhamos ((pigarro)) um professor que nos ensinava boas práticas de alimentação, de higiene, e nos ensinava a fazer o preparo dos alimentos, outro detalhe que tinha minha escola, que lembro com muito carinho, é que tínhamos uma horta, nós tínhamos a disciplina agricultura, então tinha uma horta e tínhamos o professor que nos ensinava a plantar e fazer a colheita, mas não era qualquer pessoa, era uma pessoa com formação na área, era engenheiro agrícola, era agrônomo, mas eles tinham que fazer cursos na área de pedagogia para poder lidar com a gente, então ele plantava com a gente, aprendíamos toda a parte de métodos, pra plantar, de irrigação, dos nutrientes que a planta precisava, e, sobretudo, de como plantar sem agredir o meio ambiente, porque isso já era trabalhado nessa escola, essa escola, ela é atualmente modelo nacional, embora ela fique numa cidade pequena, em província, ela é uma escola que já ganhou várias vezes o título de melhor escola do país, e ela é pública, né, e o que era plantado lá na horta, era trazido para a disciplina educação pro lar e nós preparávamos para comer, então nós plantávamos e preparávamos nossa comida, independentemente do gênero, todos éramos obrigados a saber colocar uma mesa, a saber preparar, como se preparava, quais eram as técnicas que tinham que ser utilizadas pra gente perder menos nutrientes, isso era nessa disciplina, tá? naquela época ... aula de música também era uma aula que eu tenho uma memória excelente, porque fazíamos uma associação entre música e matemática, né, e outras questões, e a minha professora de música, o nome dela era Raquel, né, e tínhamos outras disciplinas como arte, educação cívica, né, que isso a gente tinha desde o primário, a educação cívica era uma disciplina que passava, de certa maneira, transversalmente por todas as disciplinas, e se faziam muitas discussões de cidadania, discussões, até de certa maneira, políticas, já com essa idade que nós estávamos vivendo aquele período onde nós tínhamos a quinta fronteira, que era o canal ((a entrevistada refere-se ao Canal do Panamá)), que estava em mãos norte-americanas, e os governantes da época, os intelectuais da época acharam que o caminho para a gente reconquistar essas terras e o canal não seriam através de uma guerra porque nós éramos um país muito pequeno, então isso tinha que ser feito através do ensino, então eu enxergo hoje em dia que grande parte da dinâmica que existia na escola era justamente para sensibilizar a gente, para que a gente tivesse essa consciência de qual era nosso papel nessa luta e que para alcançar um desenvolvimento dentro do país e dentro da vida das pessoas a educação e a saúde eram parte extremamente importante, onde que eu vejo isso? na forma como eram trabalhada a agricultura, a forma como era trabalhada a questão alimentar, a higiene, que tem a ver com saúde, mais as outras disciplinas que tinham a ver com o contexto sociopolítico que o país tinha naquele momento, então eu enxergo ... comecei a enxergar isso mais tarde, talvez quando eu tava na terceiro série, na quarta série eu não tivesse essa consciência, mas hoje ... hoje em dia, já na minha idade e depois quando eu saí do país ((a entrevistada refere-se ao Panamá)), que eu vim pro Brasil, o mundo se abriu no sentido de que eu percebi, embora fosse uma escola pública, eu tinha sido privilegiada, porque eu não vejo em qualquer escola aqui ter uma aula de teatro, de música, essas disciplinas são tidas como... não importa, qualquer coisa ((há um tom de indignação na voz)) ...

D: com certeza (a entrevistada parecia esperar uma resposta neste momento).

E: depois, quando eu já tava quase no final do primário, as escolas não eram mais tempo integral, elas começaram a ser meio período, mas essas atividades de teatro, isso a gente ia no período da tarde e fazia no período da tarde como um extra, passaram a ser um extra, mas nessa escola até hoje, essa atividade acontece e uma questão que, também, eles trabalham muito é a questão do folclore nacional, até porque nessa cidade se realizam um dos maiores festivais de folclore, no Panamá, tínhamos uma disciplina que de fato ela era ligada à disciplina de arte, que era uma disciplina onde todos nós aprendíamos a costurar, a fazer uma barra, a pregar um botão, meninos e meninas, não existia essa diferença no fogão, no cuidado de uma casa, eu, nesse momento, não foi feito um muro que separa-se meninos e meninas quanto atividades e atribuições, nós fazíamos exatamente o mesmo, todos eles tinham que bordar, tinham que costurar, eu lembro que sim nas reuniões de pais, todos nós estávamos presentes nas reuniões de pais, né, existiam algumas reuniões em que os alunos participavam e davam suas opiniões, alguns pais se manifestaram contra os meninos, sobretudo os homens se manifestaram contra, mas era algo que nem esse fato levou a suspender esse tipo de atividade porque as próprias crianças achavam bom, era um momento em que a gente conversava, confraternizava e a gente ficava focado, porque é difícil você deixar uma criança atenta a uma atividade e eu via que essas atividades da horta, as atividade de bordar, costurar e de educação para o lar, que era a parte de culinária. Todo mundo ficava focado e todos os grupos queriam fazer o seu melhor, né, porque era algo que você fazia, de certa maneira, pra compartilhar, então essas são as memórias que eu tenho do meu primário, e claro, a matemática, essas outras disciplinas, aconteciam do jeito normal e mesmo sendo primário eu lembro, me lembro muito bem, assim, até hoje eu guardo isso, que já na sexta série a gente discutia, por exemplo, países mais distante, em conflito naquela época, a gente discutia sobre a cortina de ferro, a gente discutia sobre o conflito Estados Unidos Rússia , o muro de Berlim, a consequências da segunda guerra mundial, todos os muros que se estabeleceram, que existiam por conta de diferenças ideológicas, a guerra de Biafra, do Vietnã, eu devia ter o que? onze anos, doze anos, não mais que isso, mas a gente já discutia, penso que essa formação política, não sei se chamá-la de prematura, talvez isso acontecia pelo momento político que a gente vivia e pela necessidade que a gente tinha de resgatar e reaver um território nosso que era o canal, que a gente conseguiu depois, no trinta e um de dezembro de mil novecentos e noventa e um, ter revertido para o governo panamenho, porque a assinatura dos tratados foi em mil e novecentos e setenta e seis, de setenta e seis até mil e novecentos ... perdão, mil e novecentos e noventa e nove, trinta e um de dezembro de mil e novecentos e noventa e nove, cada ano uma base militar das que existiam no canal iam sendo revertida para o governo panamenho, até que o canal ficou todo administrado por profissionais panamenhos, então essas são as minhas memórias da escola primária.

A: você antecipou muito algumas perguntas, o que eu achei muito bom, e eu vou repassar algumas delas, e você também falou muito do que você tinha não só na escola, mas de coisas que aconteciam fora da escola, como o cenário político e que era importante para a forma como vocês construíam a escola.

D: sim.

A: você falou muito de disciplinas que não são tão regulares, como a disciplina de teatro ou disciplinas mais esquecidas, como as artes, mas tinha alguma rotina para funcionar a escola?

D: sim, a gente começava às sete horas da manhã, a gente dava uma paradinha ao meio dia, a gente almoçava. A gente retomava mais ou menos por volta de uma hora e meia e a gente ía até umas quatro horas e meia da tarde, isso até mais ou menos minha quarta, quinta série, já a partir da quinta série a gente passou a ter o tal de meio período, onde a gente não ficava direto na escola, senão que a gente ía até meio dia, ía pra casa e por volta de duas horas da tarde ou mais na parte da tardinha, três horas, quatro horas da tarde, a gente voltava pra escola e ía fazer, por exemplo, teatro, ou ía fazer uma aula de música, hoje em dia, esse programa que iniciou na década de... sessenta, né? foi na década de sessenta, ele depois acabou dando origem a uma escola de música que existe na cidade, onde toda criança que queira fazer música ela pode fazer música de forma gratuita, então você pode ter uma formação musical se você quiser, mas essa escola nasceu dentro da escola Juana Vernaza, hoje em dia elas não funcionam no mesmo local, mas essa escola de música teve origem dentro dessa escola, e aí ela funciona como qualquer outra escola, uma escola de música, todo mundo tem direito a fazer, é só você querer, não existe concurso, embora ela seja como um conservatório, todo mundo têm direito, vai ((exclamação)), se você tem aptidão ou não tem eles acabam desenvolvendo uma habilidade e uma competência dentro da música pra você se dar bem, e se não quer você começa e larga, mas é uma oportunidade que todas as crianças da cidade têm.

D: e as salas de aula? como que elas eram?

E: nós tínhamos, por exemplo, as salas normais ... (a entrevistada compreende que o uso da palavra normal pode ser mal interpretado, por isso explica-se) que eu falo do formal, do convencional, tradicional que são aquelas carteiras uma atrás da outra, onde o professor fica na frente fazendo sua aula expositiva, claro que ele pede opinião da turma, fica fazendo perguntas (( a partir daqui, faz como se imita-se seus professores)), o que vocês acham disso? ((encerra a imitação)), pede sua opinião, e existiam outras aulas onde a gente fazia rodas, eram rodas de conversa, e a de agricultura era uma aula livre no campo, porque era numa horta, eram construídos bancos rústicos onde o professor tinha tipo um flip sharp, né, porque na época não tinha projetor, era um FLIP SHARP, que ele colocava as plantinhas, colocava as coisas dele e preparava as lâminas dele e ia dando essa aula com a gente já no campo, claro que quando chovia a dinâmica era outra, ele nos levava para outro local, mas de modo geral era no campo e ele ia explicando como íamos plantar, porque colocávamos tal nutriente, porque que a gente fazia aqueles sucos, e de certa maneira existia uma relação dessa disciplina com conceitos matemáticos, porque a gente trabalha com concentração de nutrientes, com cálculos, depois a gente ia fazer o trabalho prático: usar enxada, aguar a planta, quando plantávamos depois a gente tinha o segmento da planta que ia crescendo, vinha a colheita, tinha formas de fazer a colheita pra não ferir o fruto, pra não causar um dano mecânico, então tinha toda uma dinâmica, mas a maior parte no campo, quando chovia ele nos levava pra um galpão que tinha, que era onde guardavam as ferramentas, mas tinha um espaço pra ele sentar com a gente e trabalhar com os alunos, mas aí não mais um espaço convencional que você na sala de aula, um banquinho atrás do outro, e no educação para o lar era um laboratório que tinha, lógico, as pias, os fogões, as facas, todas as coisas de cozinha e tinha um salão que era como se fosse um refeitório, com mesas para quatro, então nós tínhamos grupos de quatro pessoas que nos dedicávamos nas preparações, se dividia a sala com grupos com quatro integrantes, então cada um tinha uma mesinha que sentava pra discutir com os colegas, e a professora ia mediando essas discussões porque nós íamos discutir o cardápio, o que íamos fazer, como íamos fazer, porque íamos fazer, porque tinha que ser a fogo brando, porque não podia ser, porque não podia ultrapassar de uma hora preparação, ou trinta minutos de preparação, tudo isso a professora ia conversando com a gente, não sei, são coisas que hoje em dia se colocam como... eu vejo coisas como trabalhos de ecologia nas escolas como se fossem coisas novíssimas, e eu fico muito feliz que eu tive a experiência de viver isso, foi uma experiência muito, muito bacana, foi uma dinâmica completamente diferente do que você estabelece no ensino convencional, e na sala de aula normal, por volta da quinta, sexta série, bom, já começa, na metade da quarta série, nós tínhamos muita apresentação de trabalho, onde o professor deixava de desempenhar o papel principal lá na frente, nos era dado um tema, a gente desenvolvia esse tema com orientação do professor e depois a gente ia lá na frente e fazia como se fosse um seminário, claro que dentro das limitações que podia trazer a nossa idade porque éramos muito jovens, né? mas onde você trazia o tema, acabava expondo, e no final fazia suas considerações da sua opinião pessoal sobre o assunto, então era isso que a gente tinha em termos de sala de aula, tivemos sim coisas muito convencionais e tivemos coisas que saíam da ...

D: era isso que vocês aprendiam.

E: sim.

D: okey, as famílias, elas participavam do ambiente da escola?

E: sim, talvez porque era uma cidade pequena, nós tínhamos muito o que nós chamamos de VELADAS ((palavra em espanhol que significa sarau)), as veladas eram reuniões, sobretudo dos pais, fazíamos apresentações de teatro aos finais de semana para a comunidade, os pais iam, e como eu disse, a reunião de pais tinha um momento que era reunião de pais com mestres, mas tinha um momento que era reunião de pais, mestres e alunos, esse momento existia na escola.

D: certo, além da entrada das famílias na escola, que ajuda muito a construir o espaço da escola, você acha que os alunos desenvolviam autonomia por eles terem espaço para decidir na escola?

E: acredito que essas reuniões onde a gente participava junto com os pais sim, porque muitas coisas que às vezes os pais achavam ou consideravam que não eram apropriadas, como por exemplo, as aulas de costura para meninos ou culinária para meninos, que muitos pais consideraram ser inadequadas, os estudantes se manifestaram contra e manifestaram que eles queriam continuar tendo esse tipo de aula, até porque eram argumentos um tanto quanto, pra nossa época, primitivos, se isso pode te deixar afeminado ou não, coisas desse tipo que na nossa cabeça nós não víamos dessa perspectiva, a gente tinha opinião, embora nós não tivéssemos internet, embora não tivéssemos uma série de coisas nós tínhamos opinião, AH, outro detalhe interessante que a cidade tinha é que tinha uma biblioteca e tinha uma interação muito bacana entre a biblioteca da cidade e a escola, então a gente tinha muito trabalho de pesquisa, como não tinha internet, os trabalhos de pesquisa eram feitos na biblioteca da cidade, e existia uma relação muito próxima, a gente via isso pelas atividades que se realizavam a nos dias de reuniões de pais, porque a diretora da biblioteca ela vinha participar das reuniões da escola. talvez pela cidade ser pequena, essa dinâmica era possível, ou eu não sei se é pela vontade e pela visão mais ampla que eles tinham, ou a preocupação mais ampla que eles tinham com a formação da gente.

D: e a última pergunta, você sente que a escola contribuiu para formar quem você é hoje, ou contribuiu em alguma medida para sua formação?

E: Ah, eu não tenho dúvida que muito do que eu sou tem a ver com a escola que eu fiz, com todos os grupos nos quais eu me engajei, porque eu estive em TODOS, eu fiz teatro, eu fiz dança, eu era do grupo de dança, o grupo de teatro nos levava para um concurso infantil nacional de teatro, nossa peça ganhou, a peça foi escrita pela gente, a gente escrevia as peças, isso criou um diferencial no que eu sou, na forma de me comunicar, de agir na vida, de enfrentar algumas coisas na vida, eu tenho certeza, até a visão política que eu tenho do mundo a escola primária teve uma grande influência, depois eu passei por outra escola pública que trabalhou o que seria correspondente aqui à sétima, oitava e nona séries, era uma escola maior numa cidade maior, mas que tinha banda de música, tinha teatro, tinha grupo folclórico, conjunto típico, tive professores, por exemplo, de geografia e história que foram muito desafiadores, essas são as disciplinas que eu mais me lembro, embora tivesse uma excelente professora de biologia, mas especialmente esse professores de história e geografia que desafiavam a gente das mais variadas formas, nos colocavam pesquisas de campo extremamente desafiadoras, por isso eu coloco geografia e história dentro desse contexto, e até volto a repetir, parece que toda a rede de ensino no país estavam voltadas para essa questão de ((interpreta o espírito nacionalista panamenho)) somos panamenhos precisamos ter nosso canal de volta, então vocês tem que ser melhores.

D: sim.

E: e é com educação que vocês vão conseguir ((fim da interpretação)), isso tinha, já nesse momento eu tinha uma disciplina que se chamava relações do Panamá com o Estados Unidos, e aí vinha o debate de como o canal passou para mãos norte-americanas, a discussão de todos os tratados, então era uma coisa que era muito trabalhada, principalmente em disciplinas como história, geografia e essa disciplina relações do Panamá com o Estados Unidos, e isso de certa maneira fazia com que você tivesse uma discussão de política internacional muito grande, e essa era pública, já a outra, onde eu fiz meu colegial, o que seria o ensino médio, era uma escola de fé judaica, tempo integral, entrada sete horas da manhã e saía às quatro horas e meia e todas as atividades eram feitas dentro da escola, fazíamos catorze disciplinas por semestre, isso incluía física e disciplinas tradicionais, incluía relações do Panamá com o Estados Unidos, lá o modelo era um pouco diferente, era uma escola particular, de manhã tinham aulas expositivas, mas à tarde quem dava aula era o aluno, era diferente, não era o professor, então à tarde com certeza nós íamos ter que levar um assunto, existia aula de religião para os alunos de fé judaica se eles quisessem, mas nós tínhamos aulas de ecumenismo, onde cada um levava uma passagem da religião que ele praticava, da fé que ele praticava, e se não praticava falava de qualquer outra coisa, você podia conhecer a torá, o alcorão, você conhecia alguns conceitos sobre o hinduísmo, o budismo, porque tinha gente de todas as religiões compartilhando, e era diferente porque éramos somente vinte alunos por sala de aula, não mais, éramos poucos, e a escola ficava numa área de reserva ecológica MUITO BONITA, e ... eu sinto que tudo, assim, educacionalmente muito cuidado nos mínimos detalhes talvez porque éramos poucos por sala, poucos por sala ... e a mesma dinâmica, assim, a reunião de pais e mestres, tinha o grêmio de alunos ... e uma coisa que eu lembro muito, que o pai do dono da escola, ele nos esperava todo dia, porque nós tínhamos ônibus da própria escola que nos recolhia em casa e nos levava pra a escola, e esse senhor nos esperava todo dia, nos recebia com um abraço e ele tinha tatuado uns números no braço dele, aí ... um dia eu perguntei Ô PORQUE VOCÊ TEM ESSE NÚMERO TATUADO? ele me falou ((agora interpretando o senhor com voz minguada)) eu tive num campo de concentração ((fim da interpretação))... e na hora do almoço nos tínhamos roda de conversa às vezes com ele, e ele começava a contar sobre as tragédias da segunda guerra mundial que ele viveu, a família que ele perdeu, mas que ele emigrou para o Panamá e ele conseguiu construir sua família, e o filho dele que fez essa escola, que se chama e existe até hoje e se chama Instituto Pedagógico, então acho que a palavra diz tudo né?

D: diz muita coisa.

E: ISSO, então tinha coisas assim que eu ... comecei a entender muita coisa e gostei né? porque ... vi que eles passaram por uma tragédia uma segunda guerra mundial, mas foi um ponto, pela experiência que ele relatava pra gente como aluno, isso não criou mágoas nele nem a vontade de revanche, mas sim a vontade de construir um mundo melhor através da fundação de uma escola como o Instituto Pedagógico para que uma nova guerra não acontecesse, foi essa a mensagem que ele deixou em mim.

D: muito bonita.

E: aham ((risos)).

D: ((risos)) ... tem algumas coisas que eu não perguntei, mas eu vou pedir pra você se identificar, no caso eu não perguntei sua idade, eu não ... eu não perguntei sua profissão, então eu vou deixar pra você dizer mais ou menos ... pra você dizer quem você é [pra eu =

E: sí ((sim em espanhol)).

D: não falar nenhuma besteira, quem você NÂO É.

E: Eu sou, meu nome é LF. ((a entrevistada pronuncia seu nome completo, suprimido nesta entrevista)), eu sou panamenha, tenho cinquenta e seis anos de idade, sou professora universitária, tenho duas formações, a minha primeira formação foi em tecnologia de alimentos na Universidade Federal de Viçosa, minha segunda formação foi em nutrição, também na Universidade Federal de Viçosa, fiz mestrado e concluí o mestrado e março de mil e novecentos e noventa e um, um mestrado em ciência de alimentos na Universidade Federal de Lavras e concluí meu doutorado em ciências da nutrição na Universidade Estadual de Campinas, unicamp, em mil e novecentos e noventa e sete (esta identificação na apresentação de um currículo pode parecer exagerada para algumas pessoas, porém, justifica-se ao saber que é um dos maiores orgulhos e autorrealizações da entrevistada, reafirmado constantemente por colegas de trabalho e homenagens prestadas por alunos) , atualmente eu sou professora universitária de uma universidade particular, coordeno curso de nutrição, já fazem quinze anos, mas como coordenadora de curso da área de nutrição estou já há vinte anos, esse ano completei vinte anos de experiência e trabalho muito com a dinâmica ((toque de celular ao fundo)) utilizando como ferramenta metodológica programas de extensão para a formação do aluno, talvez seja influência um pouco ((risos)) da formação que eu tive também, então os meus alunos vão muito ao campo, muito em campo e justamente a comunidade, a convivência com a comunidade é que se torna de certa maneira a sala de aula deles, essa interatividade, esse olho no olho ... com a comunidade que acaba mudando certos preceitos que se estabeleceram a nível educacional no Brasil ... e embora de uma particular eu trabalho com alunos que às vezes tem muito problema, que são analfabetos funcionais, literalmente, mas eles estão conseguindo ser nota quatro de enade ((o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes)), então isso pra mim é uma grande recompensa ... e sou mãe de dois rapazes, e mãe de uma menina, então ... essa sou, L. ((pronunciou o primeiro nome)).

D: depois eu vou redigir tudo isso e eu vou ... eu só vou ocultar seu nome, por ...

E: sí.

D: por questão de [ética =

E: sí.

D: e depois eu vou mandar pra você, inclusive.

E: perfeito.

D: posso até mandar o trabalho em que a gente vai colocar porque a gente tá falando de Paulo Freire na disciplina (refiro-me aqui, à disciplina Escola e Currículo, de código EP162, na Faculdade de Educação da UNICAMP, na qual o trabalho citado, em grupo, foi apresentado) ...

 E: ah, [perfeito =

D: e é legal porque a gente pega ... a gente, claro, fez algumas divisões no meio das tarefas e eu li bastante a Pedagogia da Esperança pra fazer o [trabalho =

E: [então ((ela se detém e não continua a fala))

D: e é muito legal, na Pedagogia da Esperança ele fala de ... de pessoas que tão em situações muito difíceis e como que a vida delas é dura porque existe uma certa desigualdade e porque elas não são formadas politicamente, daí elas não podem recorrer aos direitos delas porque elas nem sabem que esses direitos [existem =

E: [mas é que ((ela se detém novamente))

D: ou por conformidade.

E: mas de certa maneira é isso que a gente faz, né? trabalha com a pedagogia a esperança (acredito que ela não tenha se referido ao livro Pedagogia da Esperança, mas a uma pedagogia da esperança) no sentido de que eu levo os alunos para escolas, eles estão nas escolas do município de Nova Odessa, justamente esse olho no olho porque você precisa empoderar a comunidade, mas para empoderar a comunidade antes você precisa fazer um empoderamento do aluno ... e esse aluno, ele vem dessa comunidade, eles vêm dessa comunidade, e os lugares onde a gente têm esses programas de extensão e que eu levo os programas de extensão, são os lugares de onde mais alunos vem pra faculdade *** ((nome da faculdade onde ela trabalha)), que é Nova Odessa, Santa Bárbara ((diminutivo de Santa Bárbara D’Oeste)), né ... a gente acaba devolvendo de certa forma ... essa dádiva deles darem um aluno pra gente formar ... e é isso que a gente faz na nossa rotina.

D: brigado.

E: de na::da.

D: vou desligar [aqui o gravador =

E: po::de sim.

D: e a gente [continua a conversa =

E: pode ((voz baixa))

D: sem o gravador ... nossa, tem quarenta minutos.

E: espero que tenha sido bom.

D: foi sim ((o gravador é desligado)).





[1] Disponível em: < http://www.concordancia.letras.ufrj.br/index.php?option=com_content&view=article&id=52&Itemid=58 >. Acesso em: 22/08/2017.