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segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Você não sabe pensar sozinho?

Diversas vezes em conversas com amigos me questionaram sobre o uso inadvertido de nomes de autores que eu utilizava em conversas. Várias vezes, e principalmente com um amigo que se identifica como de exatas, foi questionado minha originalidade, minha capacidade de pensar por mim mesmo, e muitos me perguntaram se eu não sabia pensar sozinho. Claro que o uso excessivo de nomes vinha da vontade de compartilhar o que eu aprendia no começo da graduação, embora a citação seja algo extremamente necessário e comum no campo acadêmico, um capital que quanto mais eu estudava mais eu me apropriava.
O que me alfinetava não era tanto o desconhecimento que amigos meus possuíam sobre essa cultura acadêmica, que é uma crítica que evidenciou minha tentativa de sobrepor campos culturais distantes: a universidade e a pesquisa das conversas da vida cotidiana e extra universitária. Parecia óbvio para mim que todo conhecimento e todo saber têm lá sua referência não explícita. Andar de skate, empinar pipa, jogar xadrez, usar um controle remoto, ligar um computador, abrir uma caixa de leite, descascar uma cenoura, fazer um nó, dentre inúmeras outras habilidades, não constam na nossa programação genética ou no inconsciente, aprendemos elas em uma dada situação de nossa vida através de uma interação eu-objeto, culminando em conhecimento, ou intermediados por alguém que já possui a habilidade que gostaríamos de aprender, implicando numa interação eu-outro habilidoso-objeto, que segue como esquema para a produção de conhecimento. Desta forma, aprendemos habilidades por contato direto ou indireto com objetos; aprendemos por nós mesmos ou por interações sociais.
É facilmente constatável que podemos aprender sozinhos, o que faz a advertência do meu amigo ser extremamente bem fundamentada, bastaria buscarmos nas nossas memórias por situações em que interagimos com o ambiente e tiramos conclusões particulares dele sem ninguém para nos dizer o que deveríamos ter aprendido daquela situação.
Seguindo o raciocínio, não significa que somos parteiros de ideias e que nascemos com uma verdade para ser descoberta e nisso consiste nossa jornada espiritual (uma visão bem socrática). Se concebemos ideias ou se pensamos as coisas é porque há coisas que nos despertam ideias ou coisas a serem pensadas, evanescendo o conceito de nada. Se aprendemos é porque suportamos nosso aprendizado em coisas, imateriais ou não. Novos conhecimentos são emergências de conhecimentos preexistentes. Novos planetas são produtos da colisão de outros corpos celestes. Novas características de uma espécie se devem a diferentes combinações do material genético. Economias vigentes surgiram de economias decadentes.
Todo novo aprendizado tem como base algo que foi aprendido.
Todo conhecimento aprendido requisitou uma interação para que se constituísse como tal, sendo que a interação eu-eu só é válida quando tentamos rever nosso aprendizado e suas aplicações. Desta forma, entendemos que não existe aprendizado sem interação com o mundo, com isto quero dizer que todo conhecimento se construiu por uma relação entre o conhecedor e o outro – um lugar, um objeto, um discurso, uma escrita, um ritual, uma ideia, etc. É importante reforçar que o conhecimento se constrói e não se transmite, surge, aparece, acontece, esse tipo de coisas. A construção diz respeito à disposição e conexão de nossas experiências, formando no início da vida sensações de segurança e insegurança, culminando no uso das experiências seguras para a escolha de experiências posteriores. Nossa sensação do mundo é um conhecimento que temos e que diz respeito sobre a relação eu-mundo, e é a partir dela que fundamos os demais conhecimentos. A construção não precisa ser associada com a verticalização de edifícios, ela pode muito bem ser tombada na horizontal, ser sinuosa, serem esferas encadeadas, ou uma combinação de tudo: uma base horizontal de círculos que tecem linhas sinuosas na vertical com quadrados na ponta que voltam a se conectar diretamente com a base por mais linhas.
Andar de skate exige mais do que se imaginar num skate, há que montar o skate, sentir seu peso, deslizar as rodas no concreto, equilibrar-se, saber quais posições em cima do skate podem causar um acidente. Qualquer pessoa pode aprender a andar de skate sozinha, entretanto, existe um circuito cultural da vasta maioria dos aprendizados que remete ao ensino de uma prática específica. Andar de skate está sujeito a uma prática cultural do conhecimento, visto que existem muitos skatistas e acaba sendo mais fácil aprender uma habilidade quando se dispõe de alguém para ensinar essa habilidade.
O circuito cultural tende a adotar as práticas locais mais comuns, ou ainda, as experiências mais seguras para iniciar a construção do aprendizado. Práticas culturais pode parecer um termo muito rebuscado quando a maioria das pessoas entende o andar de skate como ficar em cima do skate e fazer manobras. É preciso lembrar que por mais que o skate tenha um formado de prancha reconhecível nas culturas que participam da globalização da informação, o tipo de chão, a arquitetura da cidade e a disposição e formato dos objetos e bens públicos requerem diferentes habilidades dos skatistas para construir seus saberes sobre o skate, o que muda a perspectiva cultural que possuem dele.
Julgo incomum que alguém precise ler as regras de xadrez, já que existem tantas pessoas que conhecem e podem ensiná-lo. De qualquer forma, existem livros de xadrez, mais especificamente de jogadas possíveis de acontecer e suas resoluções; seriam livros que armam um cenário de difícil vitória (naturalmente com diversos níveis de dificuldade) que precisam dos movimentos certos para vencer.
            Podemos atribuir movimentos para as peças de xadrez, mas aí estamos criando outro jogo com as peças xadrez. Utilizar as peças de xadrez não é sinônimo de jogar xadrez. Nem é preciso utilizar as regras de xadrez, basta recortar pedaços de papeis e escrever os respectivos nomes das peças, ordená-las no tabuleiro como se faz em todo começo de jogo e movimentá-las pelas regras do jogo (movimento da torre é em linha, do cavalo em L, o rei movimenta-se uma casa por em vez e em qualquer direção, etc.). Para saber jogar xadrez deve-se saber suas regras, e com as regras, naturalmente, sabe-se as peças do jogo, as casas do tabuleiro, a preparação dele, divisão de turnos, etc.
Há uma prática canônica de se jogar xadrez que difere da prática cultural do andar de skate, e não é que o xadrez não seja uma prática cultural, mas ele é muito mais rigoroso na sua execução do que o skate. Ambos possuem sua própria linguagem e particularidades. O skate exige da prancha o que o xadrez exige do tabuleiro. O ponto no qual quero chegar é como chegamos a adquirir essas habilidades ao ponto de dizer eu sei/ eu conheço.
Quando nós aprendemos a abrir uma caixa de leite não damos crédito a quem nos ensinou porque é banal demais referenciar esse tipo de coisa a alguém. De certa forma, podemos aprender qualquer coisa sozinhos, visto que a internet dispõe de muita informação sobre muita coisa, inclusive banalidades: como abrir uma latas de metal, como fazer café, como passar pano no chão, como lavar os pratos, como ler livros, como falar com as pessoas, como abrir a caixa de leite sem derramar o leite!
Primeiro ponto crucial (do qual estamos cientes): o conhecimento não brota da nossa mente, por mais que queiramos acreditar nisto; estabelecemos interações que conectam nossos corpos e mentes com uma situação que assegura uma experiência e a partir dela desenrolamos a construção do nosso pensamento e da reflexão que fazemos sobre nós mesmos. Segundo ponto: todo aprendizado possui uma história de como foi aprendido e apreendido, faz parte da narrativa do eu, o que nos leva a formular referências sobre nossa rede de relações com o mundo e encontrar suas congruências. Entretanto, não sentimos a necessidade de referenciar nossos saberes o tempo todo. Se aprendemos, aprendemos e ponto.
Fica subtendido que ao aprender o skate precisei montá-lo, aprender a manobrá-lo, estive numa superfície razoavelmente lisa. O crédito desse aprendizado é todo meu, pois a iniciativa parte de mim. O eu se vangloria de ocultar qualquer intermediação, mesmo que os próprios objetos sejam intermediários entre ele e o conhecimento ou habilidade que desejou adquirir.
A partir do momento que se aprende as regras básicas de xadrez, esquece-se da intermediação das peças, de um outro jogador, de jogadas específicas que marcam reflexões profundas sobre como organizar as peças no tabuleiro, a fama é reivindicada pelo jogador. O aspecto inanimado das peças parece não oferecer conhecimento algum, elas não dizem coisa alguma sobre como ganhar o jogo ou sugerem um movimento para o xeque-mate. É o sentido implícito que as peças possuem dentro do jogo que fazem a diferença, e é o sentido que a disposição das peças sugere ao jogador que cria a condição para o conhecimento. Não se agradece às peças pela vitória ou pela derrota (pelo aprendizado, trocando em miúdos), agradecemos ao outro jogador ou a nós mesmos.
Manipular um skate, peças de xadrez, tampas de leite, um controle remoto ou um computador não requer referência alguma, embora sejam frutos de uma cultura, portanto, de um saber coletivo. As práticas cotidianas adotam a intransitividade da aprendizagem: quem aprende, aprende. Seria mais sensato dizer que quem aprende apreende, e se apreende requer outra coisa para servir de base para construir seu conhecimento. Reformulando o verbo aprender: quem aprende se relaciona.
Aprender a partir de outras pessoas não é diferente, mas pelo menos aqui já podemos encontrar pessoas referenciando seus aprendizados. Minha mãe disse isso sobre os governantes do país, meu pai acredita que nossa religião possui valores importantes, meu amigo não acredita nessas histórias de conspirações, encontrei alguém que gostaria de um Estado liberal, vi na televisão um especialista desqualificando a internet.
Há a possibilidade de fazer coro com a informação obtida, mas em todo caso, a informação não é sua. Este é um péssimo hábito que adquirimos ao longo de nossa vida, presumir que os frutos de nossos pensamentos nos pertencem. Se eles são nossos, não são de mais ninguém. Se já foram de alguém, agora são nossos. Isto não implica apenas em omitir a relação e a interação, mas fere o princípio de construção do conhecimento. Não é porque o pensamento se encerra no cérebro (ou assim pensamos) que ele é nosso. Aí surge aquela velha discussão sobre quem criou as bases do cálculo: Newton ou Leibniz? Talvez os dois. Talvez nenhum: quais são as referências que ambos utilizaram na elaboração dessa ferramenta matemática valiosíssima? Os autores que eles leram não possuem referências bibliográficas também? Até Marx leu Aristóteles para elaborar suas concepções sobre valor; até Aristóteles bebeu de outros filósofos para tornar-se um clássico na literatura; até Pitágoras precisou de alguém que o ensinasse os códigos e signos matemáticos para formular seu triângulo; até pessoas não marcadas na histórias contribuíram para a história; até essas pessoas desconhecidas foram influenciadas por pessoas igualmente desconhecidas e pelas suas condições de existência para produzirem saber que viria a ser utilizado para a construção dum outro saber que seria a base para alguém ser marcado na história pela contribuição que um novo saber configurou.  
A discordância de um sujeito com as informações que ouve por aí e seu próprio posicionamento (que exige omissão da relação) pode significar originalidade, um pensamento profundo (mesmo que seja superficial), uma criticidade (mesmo que não haja), uma opinião que mostra uma identidade pessoal. Provavelmente é esta a preocupação que algumas pessoas tiveram ao me dizerem você não sabe pensar sozinho, sentiram uma doutrinação, uma percepção formal e pouco sensível da realidade, algo que somente os livros poderiam oferecer, o que não é verdade. A concordância e a discordância mostram-se aprendizados úteis; são relações que escolhemos estabelecer, no caso da discordância, optamos por não escolher a relação de concordância, e se não concordamos com A, então recorremos a B, a C, e assim incansavelmente, apenas para deixar claro que nada é tão polarizado a ponto de ser só A ou B.
Há anos conversava com um amigo sobre futebol e lhe explicava sobre como o esporte poderia ser um exemplo de barbárie, e naturalmente referenciei Theodor Adorno. Em outra conversa sobre discurso de autoridade, referenciei Michel Foucault. Numa discussão sobre desigualdades sociais, Pierre Bourdieu. Sobre juízo de valor e imparcialidade, Max Weber. Recentemente em posts sobre o projeto Escola Sem Partido, Paulo Freire. Inclusive, é meio complicado dizer qual conhecimento é inteiramente meu. Não é porque eu li Paulo Freire que eu o reproduzo fielmente, minha leitura e compreensão de suas obras passam primeiramente pela leitura que eu faço de mim mesmo e de minhas experiências e como eu relaciono as palavras às coisas.
Não preciso mencionar que minha escrita se deve a alguém, eu poderia acreditar que ela é inteiramente minha, por mais que leitores próximos façam inferências constantes a como eu encadeio minhas ideias, sugerem, apontam críticas, é mais coerente pensar que eu tenho um estilo de escrita porque eu li o suficiente para adotar este ou aquele estilo, ou ainda, tentar uma escrita experimental a partir de conhecimentos anteriores.
Mesmo na forma em como eu regulo meu comportamento nos ambientes, estou sujeito aos olhares, a um comentário indelicado sobre como estou, tudo isto servindo de reforços disciplinares do meu corpo, de modo que minhas relações com o ambiente acabam sendo mais um controle em como eu devo me portar do que permite minha liberdade para me posicionar no espaço. Já aprendi que devo comer com talhares e são raras as comidas que como com as mãos, parece improvável alguém pensar que é uma boa ideia comer com os pés, diga-se de passagem. O que paira aqui não é se somos livres ou não, mas se somos originais e se temos a liberdade de criar identidades num mundo que parece tão bem regulado, com seus limites bem traçados, regras asseguradas e punições legítimas para os corpos indisciplinados.
Da mesma forma, como poderíamos ser donos de nossos pensamentos e de nossas ideias se partirmos da suposição que nossas escolhas pessoais são um habitus com influência severa das práticas sociais?
Sou levado a desacreditar que o habitus age imperiosamente pelas estruturas sociais, embora devamos levar em conta que as estruturas estruturadas possam agir como estruturas estruturantes, mas algo fundamental para a escolha do estilo de vida é o ambiente da vida privada, onde ninguém escolhe pelo sujeito, onde sua identidade não é voltada para a sociedade, mas sim para uma expressão fiel da sua subjetividade, um estar consigo mesmo. O fundamento continua sendo o da escolha a partir da ideia de segurança e da experiência ser ou não agradável, do saber como prazer e do cuidado de si.
Se a aprendizagem continua como interação, deveríamos realocar as estruturas nesta concepção e antever um funcionamento simultâneo das estruturas a nível eu-sociedade, em que as estruturas formadoras da sociedade possuem efeitos sobre o eu, ainda que o eu possua suas próprias estruturas formadoras da sociedade, sendo até transformadora. Este duplo movimento dinamiza a relação e complexifica o entendimento sobre a aprendizagem, visto que um aprendizado que é base decorre de um outro aprendizado: os meios e os fins se confundem, sendo algo tão fluido quanto a dialética hegeliana.
Talvez seja por pensar de forma tão hegeliana que as pessoas se confundem sobre a aprendizagem. A dialética hegeliana funda-se numa negação entre a tese e a antítese, daí vem a síntese. A referência aqui é de negação, de algo que não existe mais, sendo notável apenas o fato que a ideia foi sintetizada pelo confronto de outras, um choque das partes para acontecer uma espécie de nucleossíntese geradora de inovação. Sendo mais deleuzianos, podemos deixar de considerar a identidade como exclusão das diferenças, lógica comum da formação da identidade, e dizer que a identidade é precisamente o convívio com as diferenças. A exclusão nos devolve à rigidez de uma modernidade que não tolera o outro, aquilo que Bauman chamou de modernidade sólida, retirando de nós a escolha e trabalhando pela imposição, pela sistematização e pelo controle do Ser.
É uma fatalidade para a modernidade líquida encontrar livros grossos de acadêmicos regrados que dizem o que se pode ou não fazer, tecendo críticas ferrenhas aos estilos de vida, dando a entender que a forma como vivemos está repleta de vícios ou de manipulação ideológica. Devem ser ressaltados os filósofos existencialistas que mencionam ações de má-fé encontradas nas relações cotidianas: a liberdade depende de nossas escolhas, mas é mais fácil permitir que outras pessoas escolham por nós, nos desresponsabilizamos pela nossa própria existência.
A menção a autores pode ser confundida com argumento de autoridade, mas só é confundida com esse recurso retórico porque ele é muito utilizado. Quando não se tem conhecimento sobre a área da qual o interlocutor fala podemos pressupor quatro acontecimentos: a) utilizar o senso comum, e normalmente as pesquisas científicas já verificaram esse senso comum, como acreditar que homossexualidade é doença, expor esse pensamento e (i) em seguida ser bombardeado com argumentos históricos, filosóficos, psiquiátricos, antropológicos, sociológicos, e é capaz que acabe num explanação psicanalítica freudiana sobre a homofobia ser um desejo homossexual reprimido ou (ii) se satisfazer com a explicação por reconhecer prestígio no argumento de autoridade, podendo ir contra ou a favor de sua crença e experiências; b) utilizar outro argumento de autoridade e vencer no cansaço ou pela falta de argumentos do interlocutor, algo bem típico da retórica; c) ouvir e questionar com ou sem argumentos de autoridade, buscando estabelecer uma relação de compreensão entre os interlocutores. Aqui, inclusive, é onde os interlocutores conseguem tomar a liberdade de dizer você está recorrendo a um argumento de autoridade e o outro interlocutor compreenderá que ele está cedendo a falácias e buscará reformular seu argumento.
Em a) e b) encontramos fortes ações autoritárias ou dóceis imanências, e somente em c) encontramos uma conversa e não uma digladiação ou uma disciplinarização. Mas é pelo uso da autoridade de um interlocutor que se reafirma uma posição existencialista no outro com a interpelação você não consegue pensar sozinho? Num mundo de liquidez a autoridade torna difícil a movimentação, é preferível pensar em autoridades, num mundo de especializações, em que não existe um único profissional sobre o assunto ou uma única solução: são diversas instituições, cada uma com suas especializações, e mesmo com propostas contraditórias sobre um mesmo tema podem ser escolhidas pelos sujeitos que fazem usos de seus serviços, sendo a escolha baseada no estilo de vida do utilizador daquele serviço.
Em resumo, pensar por si mesmo diminui as intermediações e agiliza a tomada de decisões, nos posicionamos mais rapidamente no mundo e aproveitamos melhor as oportunidades que se mostram. A rede de informação compartilhada e globalizada permite que possamos buscar os saberes que queremos, mesmo conhecendo os riscos que eles nos oferecem. Ainda que a modernidade líquida não signifique estar de braços abertos para todo tipo de situação, ela continua fundamentada nas escolhas e no aumento da quantidade de opções que temos em comparação com a modernidade sólida; o princípio é fazer escolhas de acordo com a nossa identidade, ou como nos vemos e nos posicionamos no campo. O mundo líquido permite mudanças recorrentes.
A aprendizagem numa era líquida é guiada por aprendizados descartáveis. Daí a recusa por autores “ultrapassados”. Os escritos de Marx sobre economia são descartados pelos mais leigos por ser “velho demais”, por não atender as necessidades atuais: a economia do mundo atual é outra comparada com a de 150 anos atrás. E quando questionados de porque pensam o que pensam dirão que ouviram comentários de outras pessoas, leram algo sobre Marx em algum lugar, viram algo num canal de TV. Ler os escrito de Marx diminui as intermediações e ruídos nas relações de conhecimento. Os ruídos se dissipam quanto mais próximos da tradução original estamos ou de edições lançadas com o autor vivo, já que se espera que eles revisem seus próprios trabalhos.
Ler Marx hoje em dia acontece em dois tempos: ler, obrigatoriamente e não unicamente, O Capital, e ler estudiosos do Marx comentando e/ou explicando O Capital e autores que utilizaram Marx nas sua análises econômicas e sociológicas, em teorias da comunicação, da história e da educação, nos escritos e ensaios filosóficos. É tão amplo os estudos e pesquisas destinadas a Marx e marxistas que “ultrapassado” ou “velho demais” acabam sempre como usos preconceituosos do pensamento marxista. E deveria dizer que Freud leva a mesma fama de “ultrapassado” de Marx, isto quando não é apenas taxado de idiota e utilizam seu próprio complexo de édipo num teor cômico-agressivo contra o próprio Freud. E se as pessoas compreendessem um ruído como tal e não como uma bela canção, abandonariam o rótulo pessimista que destinam a Nietzsche, mas para o bem (ou mal) (ou para além) quase nunca está ao lado de Freud ou Marx, exceto quando se compreende que todos se tratam de filósofos da suspeita.  
Os ruídos não existem em contraposição a uma verdade, eles existem dependendo dos agentes para os quais se fala e suas posições no campo. Naturalmente, é uma questão de capital acadêmico que diferencia os leitores e conhecedores, bem como a metodologia por traz dos estudos sobre estes autores, da informação rápida, da fama, da difusão e impacto global que um autor possui num nível superficial. Num campo onde é reconhecido o uso da informação rápida e carecida de fontes, não será incomum o uso descontrolado da opinião, imagino que por não serem rigorosos não são pesquisadores e não estão interessados em compreender profundamente aquilo que leem, mas se informarem de modo que consigam se posicionar numa conversa, para ter sua própria opinião, para ajudar a refletir, para ter suas próprias ideias.
Um encontro entre um estudante de graduação que leva a sério suas leituras e alguém que possui uma informação de fontes arriscadas só pode acabar em figuras de autoridade na conversa. Francamente ninguém precisa dedicar horas para compreender algo porque outra pessoa diz “está faltando estudar mais”, entretanto, há um custo em não dedicar algum tempo em pesquisas com fontes confiáveis: não poder reivindicar autoridade sobre o assunto. Como as pessoas conversam sobre temas diversos (e muitas vezes existe um script para a conversa acontecer), então alguma hora você acaba aprendendo alguns termos, inventa outros e assim sucessivamente. O maior problema surge quando pensar por si mesmo torna-se ancorar os saberes.
O pensamento até então socrático e existencialista mostra-se incompleto e inconsistente. Não é socrático porque não admite a ignorância (Só sei que nada sei), e só parimos ideias porque nunca temos certeza, aliás, estamos certos de nossa incerteza, talvez nem isso, a incerteza da incerteza possa ser um caminho mais tortuoso e mais ideal. A incerteza da incerteza não tornaria a incerteza certa, apenas uma pedra no caminho que deveríamos aceitar que esta sempre lá e preferimos pensar que não. Aproveitando a deixa da filosofia existencialista: ao fazer escolhas nos responsabilizamos por nossas liberdades, e ser livres implica em dividir liberdades e agir moralmente sobre nossos aprendizados, conhecimentos, saberes e informações, sempre se atentando para a reciprocidade e a solidariedade que envolve uma relação livre. Mesmo a liberdade não acontece por capricho ou vontade de quem desfruta da liberdade, até ela é uma relação com alguém, provavelmente, com outro ser livre.
Às vezes parece que a incerteza desestabiliza a liberdade por duvidar constantemente sobre ser livre. Pelo contrário, a incerteza é a vigilância constante de uma liberdade que se renova e não se permite definir como liberdade. Uma liberdade estabelecida milimetricamente acaba com limites, questionando seu próprio princípio. Mas a revisão constante de seus limites entende que não pode haver imposição, mas discussão e diálogo, por isso ser livre. A liberdade que se repensa é liberdade reformadora e é reforma livre da certeza sobre si mesma, pois a identidade de ser livre está menos numa definição exata da liberdade a uma imprecisão da expressão da liberdade reformada e reformadora.
Pensar por si mesmo é um enganoso artifício da certeza, uma perigosa armadilha que delimita as linhas e os azulejos do chão de uma prisão que viverei. Perceberei o mundo além das grades, mas hei de compreender que minha maior liberdade é tirar minhas próprias conclusões dela e não apelar para outros tipos de relação. Devo acreditar inteiramente em mim mesmo, o mundo externo é uma ameaça aos meus sentidos, mas é por eles que preciso apreender o mundo.
Se os sentidos são uma ameaça é somente porque são incertos. Eles não possuem a finalidade de achar as certezas ou as verdades, eles nos auxiliam a aprender, a nos sentirmos seguros num meio, a continuar construindo nosso incansável e incerto aprender. Não temos problema algum com utilizarmos as incertezas do nosso aprendizado, e só serão incertezas se existir uma certeza, como a certeza é incerta a própria incerteza carece de sentido para existir se tratada como uma dicotomia. Não deveríamos temer a incerteza, esta é uma virtude de questionar-se e aprimorar-se, devemos duvidar da certeza que nos traz autoridade e que delimita como aprender e como se relacionar, perdendo a liberdade para ser.
A modernidade líquida não é um empecilho por não fixar uma autoridade, faço um elogio a ela por levantar a multiplicidade das diferenças e assegurar a diversidade de identidades. O deslocamento do espaço e tempo na modernidade são um empecilho por trazer não precisar criar conexões entre eles. Os saberes e conhecimentos acabam por serem tolerados e as mudanças são tão rápidas que a própria educação deve repensar suas relações com o conhecimento e à produção de conhecimento.
O pensar sozinho possui destaque neste cenário por desconsiderar as relações, não estabelecer conexões, demanda o aprender a surfar na liquidez da vida cotidiana que se atemoriza com as autoridades críticas dos estilos de vida; desestabilizam a segurança e confiança que o sujeito possuía no seu conhecimento, requerindo novos conhecimentos e um novo estilo de vida, o que implica em recalcular os riscos do novo estilo de vida. Na outra face da moeda, há a especificação do capital cultural da academia somente à academia, sem sobreposição à vida cotidiana, que requer referências mais brandas e de conhecimento geral. A mudança do campo provoca uma mudança do habitus destinado ao campo, a vida cotidiana pede um habitus mais brando e com maior apelo da vida pessoal para a tomada de decisões do que a academia, que requer uma rigorosa disciplina sobre o uso dos saberes.
Saber pensar sozinho é artimanha de um mundo líquido que não se interessa pelas estruturas estruturadas, mas que busca na identidade pessoal e no pensamento original uma estrutura estruturante, que acaba por funcionar como uma forma de distinção entre os menos prestigiados. “Se alguém já disse isso você não precisa repetir, você pode fazer diferente”. Mesmo que seja a leitura dos clássicos e o mundo das citações e do conhecimento sobre uma vasta bibliografia de acadêmicos que proporcione a ascensão numa instituição responsável pela promoção e difusão do conhecimento tal como é a universidade, será o pensar sozinho a forma de subversão da autoridade acadêmica, mesmo que só funcione como forma de distinção entre aqueles que desqualificam as citações.
Imagino que uma possível conclusão dada por esses meus amigos possa ser: não é nada disso, só é chato mesmo! Neste caso o melhor a fazer é ocultar os nomes que dão sentido as ideias, que muitas vezes é um ato de contextualizar e historicizar o saber, de dizer um conceito ou um termo que não está no dicionário e dá um ar mais coerente à discussão. Se referenciamos nossos contemporâneos e mesmo falas mainstreams de pessoas mundialmente e historicamente conhecidas, qual o mal que mais uma citação traz?
Há claramente um capital simbólico implícito nas relações que permite saber quando e com quem podemos fazer uso de um conhecimento que não é nosso e quando devemos fingir que é nosso conhecimento. Mais uma vez aparecem as dicotomias: ou somos papagaios ou somos virtuosos.
Quando lemos da internet nem precisamos nos preocupar com a fonte, a não ser que o autor seja bem conhecido ou esteja em voga (youtubers em geral, um blog conhecido). Ninguém presta atenção aos escritores das notícias de jornal, o nome do jornal arrecada os créditos; se quero fazer um bolo busco uma receita, não seu autor; vídeos-tutoriais no youtube e sites afins podem constar com a identificação pessoal e real do indivíduo, porém, nicknames são o habitual, e costumamos atentar a canais específicos (“viu aquele vídeo do Porta dos Fundos? O que você achou da crítica deles?”, “Pirula tava falando até de mapa astral dessa vez!”, “Não sei se eu gostei do que a Jout Jout disse hoje”, “Não gostei muito do Nerdologia de hoje”).
Mesmo a música não é um mero acontecimento, seus autores podem justificar a arte pela arte, mas a música como expressão de um estilo próprio é também expressão de conhecimentos técnicos sobre o instrumentos, sobre composição, sobre o equipamento de gravação, sobre as experiências vividas, sobre um filme, sobre um evento histórico, sobre um acontecimento atual, sobre um livro, sobre uma rede de relações. Da mesma forma a literatura, seguindo o mesmo esquema da música: há um estilo de escrita, um gênero, outros livros lidos, construção de personagens, e assim por diante.
A música e a literatura talvez sejam os locais onde encontramos a omissão das referências como um fator positivo. Nestes dois exemplos buscamos ou acontece de encontrarmos uma mensagem subliminar ou uma referência direta a outro autor, outros livros, outras músicas, outros acontecimentos. Na música é mais perceptível que nem sempre a entendemos completamente, mesmo as letras mais simples do mundo pop são diretas ou indiretas a romances, amizades ou situações que dizem respeito ao artista, empoderamento das minorias, etc.
Desta forma só posso concluir que o uso de referências possui limites que respeitam o campo, a posição social e o capital cultural envolvido na relação. A modernidade líquida contribui para que as citações, referências ou fontes sejam flexibilizadas, bem como a menção às relações de conhecimento, podendo parecer que aprendemos sozinhos, quando na verdade é um recurso do período atual para privilegiar as identidades pessoais e a pluralidade de opiniões, formadas com a separação entre espaços e tempos que a globalização proporciona, distinguindo-a as modernidades líquida (vida cotidiana) e sólida (academia). A aprendizagem é um aprender em conjunto, interconectado, multidimensional, afetivo, biopsicossocial, incerto e livre, cujas referências são numerosas e complexas, de complicada enunciação.
Referenciar os aprendizados são possíveis com uma condição: excluir as referências que tornariam impossível a citação (descrições precisas do local em que se aprendeu uma habilidade como temperatura, dimensões físicas, umidade, sons, o que pensava enquanto aprendia, o que sentia enquanto aprendia) e continuar a discutir um tema . Selecionamos o que nosso interlocutor deve saber sobre o que falamos por não poder proporcionar um revisão tão ampla das bases que sustentam esse aprendizado, e às vezes o simples fato do que é falado não vir de um terceiro, mas de quem pronuncia o discurso, é mais importante. Aí estão as declarações de amor, agradecimentos e parabenizações. De uma forma parecida, a vida cotidiana parece pedir mais relações que prezam o que nós achamos, mesmo que seja consequência da relação complexa da aprendizagem, já implícito a ideia de que não aprendemos sozinho.
Se estou a conversar sobre educação com amigos, com (in)certeza podem pensar que eu já li algo a respeito, mas com igual (in)certeza penso que primeiramente lhes ocorre que eu faço pedagogia, e esta informação é suficiente. E se mostra mais raro uma vida cotidiana imersa em referências explícitas e praticamente uma extensão da academia.
O capital simbólico parece justificar bem as preferências pessoais.

Nem todo texto precisa de legenda. Ou precisa?

domingo, 7 de agosto de 2016

Notas sobre Digimon Tamers: virtualidade, identificação e cultura (Parte final)

  Quando o virtual torna-se real

          Antes de mais nada, virtualidade é uma possibilidade de realidade e pode ser tão real quanto a realidade concreta, se é que e podemos chamá-la assim. O Digimundo é idêntico ao mundo real: é uma criação do pai de Jenrya e seus colegas baseado no conhecimento que possuem sobre seu mundo real, transportados em dados para compor um mundo virtual. Não é de se espantar que haja tantos paralelos entre os Digimundo e a Terra.
            A virtualidade, entretanto, é comumente concebida como uma ilusão, uma estada temporária onde a consciência sente estar sem estar lá de fato. Poderíamos dizer que é uma concepção muito concreta do mundo, muito enraizada e inflexível, ao menos para os adultos. Se o Digimundo não é real, como são muitos jogos, os Digimons também não podem ser reais. São dotados de uma consciência artificial, são inteligências artificiais, estão previamente programadas com comandos que permitem aprender sobre o mundo. Ora, nosso cérebro não é pré-programado por uma genética? O que nos torna tão diferentes? Os humanos temem os Digimons, evitam-nos, parecem perigosas.
            Possuindo uma consciência parecida com a consciência humana, eles não deveriam ser reconhecidos dentro da ética dos relacionamentos? Como podemos saber que existe uma consciência nos Digimons, afinal? Talvez não tenham, são apenas dados. Como sabemos que possuímos consciência? Sabemos porque o que conhecemos é nossa consciência, podemos concluir, como faz Daniel C. Dennett, que não conhecemos nosso próprio corpo, mas aquilo que a consciência afirma ser nosso corpo. Não possuímos dúvidas de que temos consciência, pois nos reconhecemos como sendo aquilo pensamos.
            Como reconhecemos outras consciências? Provavelmente porque são parecidas com a nossa. De onde vem essa exclusão do s Digimons? Por que é tão difícil aceitá-los como portadores de um livre arbítrio sendo que são tão conscientes como nós, aliás, conscientes como nós, pois a modelagem de suas consciências programadas para interagirem com as crianças, por esse motivo (e isto é explicado no anime) os Digimons se dão bem com as crianças. 

         Ruki é única que demora a reconhecer Renamon como um sujeito consciente, antes era apenas um objeto feito de dados, possuía utilidade, cobria necessidades, e não demora a Ruki perceber que Renamon é sua amiga, sua parceira. Concebendo o amor que as crianças possuem ao Digimons, elas amam a si mesmas, ao mesmo tempo que amam algo que é diferente delas e possui uma organização própria e autônoma à consciência das crianças, podendo ser caracterizada como a instância inconsciente, cheia de vida, que se comunica com a verdadeira consciência ou simplesmente uma consciência verdadeira, ideias que se originaram de pessoas com ideias.
            Os Digimons não são apenas o inconsciente pessoal, são arquétipos que vêm do inconsciente coletivo, do Digimundo. A virtualidade, esse mundo possível, é um mundo muito próximo do nosso, com diferenças que logo vão sendo ressignificadas e aproximadas às imagens do inconsciente pessoal, que trazem não apenas experiência e formas de resolver os conflitos internos, mas é singular em sua generalidade a partir do momento que o coletivo age no pessoal. O encontro de mundos gera estranhamento, mas é essa catástrofe que organiza e recompõe as peças fora de seu lugar.
            Para o virtual ser real, ele precisa ser compreendido dentro de suas próprias regras. A interação entre os mundos clama por alteridade. Sem reconhecimento não há conhecimento.
            Outra discussão mais ampla seria: devemos conceder liberdade às criações humanas que possuem algum tipo de consciência, como as inteligências artificiais. Ficou claro para todos no anime que os Digimons deveriam ser livres a sua maneira sem causar danos ao mundo real (embora eles retornem ao Digimundo, no final).
            Mizuno ao responder a pergunta de Takato sobre os digignomos serem vivos responde – Por que se importar se são vivos ou não? Até a Terra pode ser considerada algo vivo, vocês sabem, é só pensar nela como um ecossistema. Se uma criatura que está nela é um ser vivo ou não para esse sistema isso não importa, não é verdade?
            A discussão sobre consciência alcança horizontes filosóficos impressionantes e que não devemos ter medo de apresentar para as crianças. As células podem não ser conscientes, são autômatos, diria Dennett, elas formam tecidos, que por sua vez formam órgãos, depois sistemas. As células se complexificam em sistemas que permitem a vida, e que poderíamos considerar sem vida, já que não faz diferença pensar se elas possuem ou não alguma consciência. Dennett nos faz pensar se existe consciência num braço decepado do corpo, afinal de contas, ele é formado pelas mesmas células que contribuem para a formação da nossa consciência, ou ainda, células que proporcionam a vida. Mas reservamos isso para nossos neurônios e o sistema nervoso central: se tem que haver consciência é graças a ele, segundo o balanço que Dennett faz sobre seus autores.
            A Terra poderia possuir sua própria consciência? Uma mente? Ou ainda: realmente importa pensar nessas proporções se ela faz parte de um sistema solar e as galáxias são consequências de formações de milhões de estrela? Toda a formação do universo convergiria para uma única consciência ou mente? Poderíamos conceber mais mentes num universo?
            Seriam perguntas interessantes para as próprias crianças responderem e se posicionarem eticamente: os animais possuem uma mente? Por que amo meu cachorro se ele é diferente de mim? Por que me sensibilizo ou não quando um animalzinho morre? Por que cortamos as árvores sem piedade? Será que o planeta sente o que fazemos? Se somos um sistema organizado, por que os seres humanos parecem tão independentes do resto do planeta? Por que os seres humanos submetem o planeta a ser uma fonte de recursos finita?
            De forma mais simples: por que ignoramos algumas pessoas? Será que as outras pessoas não sentem algo como nós sentimos? Será que algumas pessoas não são parecidas conosco? O que de tão diferente entre mim e as outras pessoas? Elas ficam tristes? Elas gostam quando as elogiam? Elas preferem que as chamem pelo nome ou pelo apelido que eu inventei? Elas gostam de ser quem são? Elas gostariam de ser como eu sou? Eu gostaria de ser como elas são? Será que eu conheço as outras pessoas tão bem? Eu sou capaz de alcançar a consciência das outras pessoas?

Impmon: o personagem negro


Impmon carrega em si os complexos das raças e etnias negras, bem como a imago do negro no branco. Podemos dizer que Impmon é a maior caricatura do negro na animação, cujo processo de individuação é controverso pela leitura da psicologia analítica associada às questões étnico-raciais.
A leitura que faço deste personagem em muito se assemelha com o que Frantz Fanon escreve sobre o negro em seu livro Pele Negra, Máscaras Brancas. Primeiramente, os arquétipos montados por Jung, segundo Fanon, retratam aspectos negativos no inconsciente, são valores inferiores, deve-se compreendê-los para descartá-los.
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Impmon é a imagem do Malandro, também é uma criança, dois estereótipos muito fortes no negro. Ele é o rapper, o enganador, o oportunista. Ele também possui pouca escolarização e não é tão inteligente, portanto, conversam com ele como se fosse uma criança, o que realça o complexo infantil.
Ai e Makoto são seus parceiros, consciências brancas e em conflito. Impmon deseja ser parte do mundo de Ai e Mako, ele é o inconsciente que quer confluir à consciência. Pela primeira vez, Impmon é o arquétipo que foge. Ele é um material do inconsciente coletivo que não pode mostrar-se como tal, ele é reprimido e não pode se manifestar como quer.
Sua agressividade vem de querer ser reconhecido, mas ser desprezado entre os Digimons e entre os humanos. Quando ele está no mundo humano, deve fazer escolhas para ser humano, é o conteúdo inconsciente que se submete aos moldes da consciência branca, que ao invés de gerar o conflito, se rompe e se corrompe ao contato com a cultura branca; por esses traumas, retorna ao mundo Digimon com marcas de dor, mas percebe que não pode mais sofrer, e nenhum de seus semelhantes pode mais sofrer, embora todos se encaminhem para serem parceiros de seus treinadores.
Todos os outros Digimons são reconhecidos e incorporados no pensamento dos parceiros, são aceitos, só Impmon que permanece à deriva por uma recusa da consciência que parece dizer “não é disso que precisamos aqui”. Assim surge sua agressividade, da incompreensão e da estigmatização.
Os negros são a encarnação do Feio e do Mal, também são os Demônios, e sua evolução – Belzebumon – carrega a imagem do demônio. A arma que ele carrega é um símbolo fálico de poder, e não é incomum que o negro tenha sua representação genital demasiadamente acentuada nas sociedades brancas. A moto não é apenas velocidade, é forma mais eficaz de não se prender a um lugar, é a fuga automática da realidade, é um sentimento de não pertencimento a lugar, uma solidão de percorrer as terras sem nenhuma ser sua pátria. Depois de conhecer o mundo branco, o negro não retorna a sua pátria, e quando retorna, possui sua negritude branqueada. Agora não é mais negro. Também não é branco. Não pertence mais a lugar nenhum, sempre há uma parte dele que não se encaixa em lugar algum. Uma dessas partes será estranha, incognoscível, recusada; então ele torna-se sozinho. 
Por muito tempo Impmon fica sem parceiros, as imagens inconscientes que ele traz não se tornam conscientes, nenhuma delas. O que acontece é a aceitação de Impmon ao mundo branco. O arquétipo negro se branqueia, e somente assim firma-se no consciente. As representações coletivas do negro perdem espaço nas consciências alienadas que propõe a maldade e negatividade naquilo que é negro. O que é a sombra senão aquilo que temos medo de mostrar às outras pessoas? Se o negro possui arquétipos negros, seria sua sombra branca? Não parece uma concepção válida, parece dicotômica demais, e separa a possibilidade de interação entre as civilizações brancas e civilizações negras.
O que não deveria ser permitido é a supremacia da consciência branca sobre a consciência negra, ou ainda, a preferência do inconsciente branco sobre o inconsciente negro. Não existe identidade negra no inconsciente que possa se manifestar sem significar perturbações na psique. Para Fanon, existe um combate do preto à própria imagem.
Fanon faz a defesa a uma confusão que existe entre o instinto, que pressupõe imagens inconscientes universais, e o hábito, que se dá no plano material e não pertence, necessariamente, ao inconsciente. A construção dos arquétipos negros, para Fanon, são um erro crasso de análise, na verdade, são hábitos culturais confundidos com instintos da espécie. Se é instinto, pertence à natureza do homem, com isso, justificamos os atributos negativos e o trauma previsível que causa a imago do negro. Porém, enquanto hábito, o negro é pervertido e desqualificado por uma visão errante, por uma perspectiva etnocentrista a cultura negra é levada a desaparecer do inconsciente.
Impmon, conciliado com as consciências brancas de seus parceiros e o aspecto infantil ao qual o inconsciente deve se submeter, adquire asas negras na forma de Belzebumon e uma arma de brinquedo. Aqui ele já se sente livre, sabendo que é negro, mas acolhido pelos brancos, que provam isto na entrega da arma-falo. Em outras palavras, presenteiam-no com um símbolo que já pertence a um mito do branco sobre o negro – seu aspecto genital, e ele acolhe este símbolo com honras.  As asas substituem a moto: cessa a fuga, começa a liberdade e a ascensão. 
A individuação de Impmon seria para Fanon um processo controverso, visto que ele não é reconhecido sem ter que submeter-se a uma cultura para ser reconhecido. Ele deve negar sua identidade e adequá-la a uma consciência que não gera apenas conflito, gera negação de si, dúvida sobre si mesmo, uma confusão entre os símbolos que lhe parecem sinceros e aqueles que lhe dizem que são o caminho correto.
Impmon pode traduzir-se na conversão do material inconsciente indesejado, embora necessário por fazer parte do inconsciente coletivo, para uma imagem mais tranquila de ser recebida pelo consciente que nega suas raízes negras. O inconsciente que deveria chocar o consciente, é chocado, despedaçado; não tornando-se consciente, é substituído, permanecendo inconsciente, há de desaparecer, já que os arquétipos são formados a partir de imagens contidas no mundo concreto das ações; se os arquétipos negros não são mais necessários para preparar o indivíduo para o mundo no qual atuará, se suas ações podem depender de outras imagens psíquicas, logo a frequência dessas imagens negra não terá espaço significativo na psique, será sempre um trauma e um conflito, nada mais que isso. Se elas podem ser substituídas por imagens com uma representação mais fiel ao mundo das atividades concretas, assim ela será reconsiderada.
Não sabemos se as imagens do inconsciente coletivo podem desaparecer, e somos levados a crer que elas se acumulam com o tempo. Devemos também crer na capacidade produtiva e reprodutiva da psique ao lidar com os símbolos. Desta forma, os arquétipos do negro poderiam ser (re)adequados se fosse o caso, sem contar que as culturas são capazes de modificar o viés científico das ciências e nunca são estáticas, o que inevitavelmente provocaria transformações nos símbolos do inconsciente coletivo. Aparentemente, como Jung sugere em suas pesquisas sobre psicologia das religiões, os símbolos não desaparecem do inconsciente, assumem novas formas, são preenchidos com outros significados, podem variar os mitos em que aparecem; possuem uma mobilidade possível, embora mais ou menos previsível. Isto, por si só, é uma grande esperança para o negro e culturas africanas, bem como a concepção das culturas que negam o negro e sua cultura: é possível a transformação da imago do negro, pensando desta forma.
Outra questão que o arquétipo de Impmon, sugerido como um arquétipo social, para não desagradar Fanon (hábito, não instinto), é se temos crianças negras assistindo este anime. O processo de identificação não precisa acontecer com Impmon, mas poderia acontecer com qualquer outro personagem branco, e na tentativa de pertencer ao mundo branco despertam o arquétipo de Impmon, e sofrem um processo semelhante em suas vivências: manter uma máscara (persona) branca cobrindo a pele (sombra) negra. O anime é originalmente japonês, portanto, voltado para as crianças do japonês, imagino, onde devem existir pouquíssimas crianças negras, onde deve ser incomum a presença do negro. A simbologia que se faz presente no anime é a simbologia de sua própria cultura, algo bem compreensível; quando se exporta essas imagens culturais para a américa latina, por exemplo, devemos revisitar elementos concentuais para a formação de identidade de um povo.
A globalização traz uma hipersaturação simbólica às mais diversas culturas, chegando a dificultar o reconhecimento dos próprios símbolos. A frequência com que uma imagem aparece na TV é significativa para ressignificar símbolos locais, levando à desestruturação, colapso e desaparecimento do regime simbólico de culturas menores, dominadas, desconhecidas, sem tanta influência ou reconhecimento global.
Digimon Tamers não é mais assistido, mas pode-se considerar que foi um anime impactante nos anos 90 para crianças que assistiam regularmente o anime, bem como as outras edições de Digimon. E há uma diversidade simbólica enorme na TV, com os personagens, os diferentes arquétipos, as variadas situações que são sugeridas, as formas de resolver os conflitos, as experiências vividas, e as situações têm seus sentidos ampliados e podem até tornar-se confusos e contraditórios. 

Conclusão

            Podemos perceber que os personagens, tanto de Digimon quanto de outras animações, desenhos, animes e espetáculos cinematográficos, podem sugerir arquétipos que fazem referência a uma cultura específica e/ou a um inconsciente coletivo. Não é nenhuma surpresa que haja identificação entre os espectadores (neste caso crianças, principalmente) e os personagens, que passariam a funcionar como arquétipos na resolução dos conflitos externos e internos da criança, assim como acontece quando a criança elege um conto de fadas de sua preferência. Imagino que o conteúdo televisivo possa ter a mesma função dos contos de fada.
            A narrativa do anime pode servir de pano de fundo para uma realidade que está sendo vivenciada, e nela possuem representações simbólicas. A própria relação entre pais e filhos no anime é ressignificada para contribuir com uma atitude autônoma da criança, e a identificação contribui para buscar essa autonomia, que em todo caso, depende da contribuição de seus educadores para a formação dessa autonomia e noções de liberdade.
            Aproximação com o animus ou a anima é extremamente ressaltada, salienta como os personagens meninos lidam com sua parte feminina e as meninas com sua parte masculina, e o pior cenário é quando os meninos devem adorar os símbolos masculinos e as meninas resignarem-se com a feminilidade.
            A relação simbólica entre domadores e Digimons é salientada na reciprocidade, não numa objetificação, o que implica, se bem trabalhado pelos educadores, uma desobjetificação das mentes e quebrar mitos que viemos alimentando por muito tempo, como: a inteligência de algumas pessoas possui limites, condições de existência desumanas para minorias sociais (casos de machismo, racismo, homofobia, etc.), reconhecimento das pessoas com deficiência física e mental, sendo esta última comparada aos casos em que concebem mentes às inteligências artificiais (a mente dele não é igual a minha, mas há uma mente ali, será que eu não devo me importar com seu bem-estar e trata-lo como uma mente?).
            O processo de individuação é chamado de evolução no anime, o que traz a ideia controversa do progresso ser linear e, se for conveniente teleológico, mas se nos atentarmos para o darwinismo que sustentou a criação de Digimon perceberemos que as condições ambientais trazem evoluções diferentes, como Guilmon evoluindo para uma criatura monstruosa quando Takato é tomado por uma ira descontrolada. A individuação baseia-se na aproximação com a experiência divina, representada pela digievolução, daí é trazida a ideia de religião e de Deuses, a retomada de mitos, a superação de si mesmo, a transcendência, a união entre consciente e inconsciente e a ideia de unidade, sempre representada pelo equilíbrio das quatro funções do inconsciente, muito bem representadas no anime.
            Por último, é questionado a validade da teoria do inconsciente coletivo por estudos étnico-raciais (onde utilizo apenas um livro, de Frantz Fanon, para ilustrar esse desacordo) e se não seria mais provável a noção de inconsciente cultural. Muito próximo da ideia de colonização do pensamento e de alienação da consciência temos a globalização expressando tantas imagens quantas sejam possíveis, o que dificulta sua assimilação e a compreensão dos símbolos de sua própria cultura, chegando a substituí-los por outros que mostram uma expressam estatística mais recorrentes e tendenciosos, que por sua repetição massiva, podem ser considerados novas imagens que virão a preencher o inconsciente coletivo, como marcas de roupas, rótulos de refrigerantes, estabelecimentos multinacionais, por exemplo.
            Em todo caso: um anime entre tantos, pode ser apenas um conteúdo divertido e/ou alienante, entretanto, são situações que podem ser reais e a identificação é a chave para que haja uma possibilidade do uso da teoria dos arquétipos, de estudos midiáticos e sociológicos sobre a apresentação daquele personagem e como as crianças carregam consigo as ideias, comportamentos e linguagem apresentadas. Digimon é o exemplo mais rico que consegui imaginar, mas é um exercício que pode ser ampliado, comparado, recusado, questionado, criticado ou aplicado.
            Talvez o que vemos seja mais que aquilo que vemos, por isso ele nos afeta. Porque é uma experiência simbólica e psíquica, sem negar qualquer traço de materialidade nessa interação.

(Este parêntesis foi escrito após a releitura desta postagem e suas predecessoras - partes 1 e 2. Na parte final percebi que há um racismo do escritor com a análise mobilizada: operar pela dicotomia branco/negro quando estão sendo representados japoneses/não-japoneses ou inteligências artificiais. Ainda que se possa fazer uma análise do mundo branco-europeu-ocidental, tratado por Frantz Fanon, no Oriente e, particularmente, no Japão, há limites para o uso de um inconsciente branco como demonstração da infantilização e feminização de um corpo negro, que esbarram, aqui, em representações com nenhuma ou pouca relação com o branco. Sendo assim, vale a pergunta: se o negro, aqui, não se diferencia do branco, qual seu par opositor e complementar? Também é possível questionar se Frantz Fanon é a melhor referência para estudar a personagem que denominamos negro, algo que é necessário ser repensado, dado a recente abertura cultural do Japão ao Ocidente, principalmente após a Segunda Guerra Mundial. Assim, que referências e que referentes da cultura japonesa colaboram para uma análise de seus materiais semióticos, os quais são lidos aqui com um interesse mais psicológico do que artístico? Ou ainda, se a própria leitura psicologizante não deturpa a possibilidade de utilizar ferramentas conceituais oferecidas pelas artes visuais para um estudo mais adequado da imagem, comentário válido para as partes 1 e 2).


Referências e recomendações de leitura

ALTMAN, Jack. 1001 Sonhos: guia ilustrado dos sonhos e seus significados. São Paulo: Publifolha, 2003.

DENNETT, Daniel C. Tipos de Mentes: rumo a compreensão da consciência. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas.  Salvador: EDUFBA, 2008.

JUNG, C. G. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Ed. 24. Petrópilis: Vozes, 2014.

MAMBERT, W. A.; FOSTER, B. Frank. Viagem ao Inconsciente. São Paulo: Círculo do Livro, 1973.

MONTESSORI, Maria. A Criança. 3ª Ed. Rio de Janeiro, RJ: Internacional Portugalia, [19-].

PIAGET, Jean. Seis Estudos de Psicologia. 24a Ed. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária, 2001. 

VINHA, Telma. O Educador e A Moralidade Infantil: uma construção construtivista. Campinas, SP: Mercado das Letras/FAPESP, 2000.

Notas sobre Digimon Tamers: ambiente familiar e desenvolvimento da autonomia (2ª Parte)

           Não há uma família no anime que não se preocupe com seus filhos, todas tentam, a sua maneira, serem exemplares para eles. Como é esperado, de uma forma geral, pais não permitiriam que seus filhos fizessem uma longa viagem sem estar acompanhados de um adulto. No anime as crianças não precisam ser acompanhadas pelos adultos para irem até a escola, no Japão isto é bem comum, andar em grupos até a escola é o que ocorre recorrentemente.


            O adulto possui um papel de assistir e educar a criança, promover sua integridade física e espiritual, isto vale para as famílias de uma forma geral, não apenas no anime. É comum que nesse processo de cuidar e educar os pais se tornem superprotetores e/ou projetem seus sonhos e desejos nas crianças, desenvolvendo seus complexos. É comum pensar que uma criança aos 10 anos não possui capacidade para tudo o que um adulto faz sozinha, mas é importante saber que ela não precisa fazer o que um adulto faz, ela precisa ser autônoma para fazer o que ela quer fazer, aquilo que seus 10 anos despertam a nível de vontade, ser capaz de cumprir seus interesses pessoais. Se formos piagetianos, entre 7-8 anos, aproximadamente, a criança inicia o jogo com regra, que significa basicamente: ela fará com que as regras do jogo sejam cumpridas por todos e ela também se submeterá às regras para que o jogo aconteça, o que pede uma socialização das ações. Inicialmente cumprem-se as regras porque as regras devem ser cumpridas, e com o passar do tempo a criança entende que as regras podem ser modificadas para que todos consigam jogar de forma justa. 
            A autonomia não acontece a partir de uma idade ou é dada por um conjunto de ações específicas para, a partir daí, dizer que a criança é autônoma. A criança precisa sentir desde cedo a autonomia, que pode ser feita à moda Montessori, como vejo alguns pais que buscam por pedagogias alternativas montarem o quarto para seus filhos recém nascidos de formas pouco convencionais: menos tradicional e mais pedagógico. A ideia principal é que os brinquedos ficam em estantes ou baús, à altura da criança, e o quarto é preparado para atender as necessidades da criança e todos os móveis são adequados à altura da criança para que ela sinta-se confortável. Essas são medidas que influenciam de forma positiva o desenvolvimento da autonomia na criança, pois ela não precisa se adaptar ao ambiente, como precisa fazer se quer pegar um brinquedo num lugar alto demais ou escalar uma cadeira para sentar nela, sem contar o desconforto de comer numa mesa em que ela não consegue levar a colher até a boca por não alcançar a colher, isso se a colher couber em sua boca.
            O ambiente é preparado e modificado a favor das necessidades da criança. E é importante ter isto em mente pela autonomia ser a expressão da vontade de uma pessoa, mesmo adultos. È impressionante como adultos não desenvolvem sua autonomia de forma plena, vê-se isso por não saberem tomar decisões, por não saberem lidar com a disposição do ambiente, em geral o fazem por não serem convidados a se expressarem como desejam, devem seguir as regras pré-estabelecidas, mesmo que não seja de seu agrado. Algo que favorece o estado de heteronomia são as respostas “porque sim!”, “porque eu mando nisto!”, “isso é meu e eu posso fazer o que eu quiser com isso!”. Será que essas crianças ouvem muito isto?
            Não é incomum que pais percebam os filhos como objetos obedientes, desejam seu bem acima de tudo, mas há limites desnecessários para o que podem e querem fazer, o que acaba por frustrar e angustiar as crianças. No anime, as crianças mantém uma atitude heterônoma até decidirem ir para o Digimundo, até aquele momento elas estão quebrando regras, sabem que seus pais ficarão bravos se souberem que andam se arriscando por aí e saindo no meio da noite. Quebram as regras porque não entendem aquelas regras como necessárias, se pudessem decidir alterações nessas regras com seus pais, tentariam modifica-las para fazer os pais entenderem que existem digimons maus por aí e que eles precisam da confiança dos pais para cumprir o dever moral de cuidar da sua cidade e das pessoas nela. Em nenhum momento elas agem infringindo a regra por egoísmo, fazem-no por terem um senso de justiça, comum a toda criança.

           A mãe de Takato é protetora, não quer que aconteça nenhum mal ao filho, mas resiste que ele se afaste dela diversas vezes, e é no último combate que ela passa a confiar na capacidade do filho e percebe que ele deve se afastar dala. O pai, por outro lado, na primeira conversa que o filho tem sobre afastar-se deles para cumprir sua missão, compreende que é necessário deixar ir, e ele não apenas apoia as decisões do filho como mostra preocupação preparando pães para a viagem, o que demonstra apoio.
            A simbologia de desvincular-se da mãe está ligada a deixar suas raízes e não se prender à terra em que nasceu. A mãe, quando impede isto, transforma-se no aspecto maligno arraigado no inconsciente, a terra que engole as aspirações do jovem fruto; o que deveria representar a nutrição, a continuidade, o progresso e o sentimento de proteção, torna-se morte iminente, fim da vida, impede o crescimento psicológico, comumente simbolizado pela Mãe-Terra. O pai, por sua vez, pode assumir a imagem do Velho Sábio, representando a autoridade, o conselheiro, um tipo de mestre ou guia, e em oposição pode se tornar figura que castra os desejos da criança, pode ser um destruidor, um ditador.

            As crianças esperam que seus Eros tenham o suporte da Mãe-Terra e do Velho Sábio, e a seu tempo, criam independência conforme as circunstâncias clamam por isso. A ida das crianças para o Digimundo traz o arquétipo do Herói de forma coletiva: o combate, a missão, a aventura, as conquistas, a luta para salvar o mundo, e para conseguirem vestir este arquétipo devem encontrar a harmonia dos arquétipos materno e paterno com o seu. Portanto, a mãe não deve fazer o papel da madrasta má e o pai não pode ser o falo autoritário. 
           Não encontramos estes entraves apenas com Takato. Vemos que Jenrya, o segundo de três filhos, encontra-se numa família bem tradicional: pai que sai para trabalhar e mãe que cuida da casa. O pai demonstra ser muito compreensivo, respeita o tempo de crescimento do filho e não o obriga a tomar decisões difíceis de uma hora para outra, tanto que chega a dizer para Jenrya, quando quer contar sobre sua ida para o Digimundo, que não ouviria o que o filho tem a dizer até que ele parasse de gaguejar e sorri para o filho. Em resumo está dizendo: “tome seu tempo, você precisa estar seguro do que vai dizer, eu espero, não se preocupe”. Este pai, assim como o de Takato, ama seu filho e quer seu bem, preocupa-se o tempo todo quando o filho vai para o Digimundo, sua única atitude de proteção é trabalhar incansavelmente para resgatar o filho do Digimundo e depois o auxilia a derrotar o Matador, dando todo o suporte que o filho precisar.
            A mãe de Jenrya demonstra ser uma mulher fiel à família, dedicada em suas tarefas e bem obediente. Num episódio em que Jenrya está no Digimundo ela pergunta ao marido se Jenrya voltará, ele diz que vai sair para dar uma volta, buscava evitar a conversa, ela interpela o marido perguntando se ele não acha que ela está triste também, se não está sofrendo pelo afastamento do filho. A mãe parece não receber muito suporte e afeto da família, cuida demais dela, mas recebe poucos cuidados. Parece que quase não sai de casa. Já deve estar cansada de viver sob quatro paredes.
            Shu Chong, irmã de Jenrya, parece dedicar mais tempo ao irmão e ao pai do que à mãe. A família ainda possui uma irmã mais velha, que deve estar no começo da adolescência e imagino que deva estar ligada à mãe ou já busca sua independência. Quando vemos o pai de Jenrya, ele está sempre no trabalho, na mesa de jantar com sua família, com o Sr. Yamaki ou com Jenrya e Shu Chong: a irmã mais velha não possui presença na vida do pai, o que leva a supor proximidade com a mãe ou encontro com amigos. Quer estar fora de casa.
            É bem possível que Jenrya seja o irmão modelo de Shu Chong, a maior prova disto é Terriermon e Lopmon serem tão parecidos, com exceção da cor e da quantidade de chifres. Se os Digimons podem ser a personificação do inconsciente, os chifres a mais demonstram a posição fálica que a irmã possui em relação ao irmão, pensando em superá-lo. Ou, ele não é mais irmão modelo e ela se vê melhor que ele.

            Ruki não possui pai, nem quer saber sobre ele, é algo que prefere reprimir. Sua família é sua mãe e sua vó, presenças muito femininas, o balanço que Ruki faz é recusar o feminino em casa, assim como o pai recusou. A mãe de Ruki trabalha como modelo, é uma mulher que possui um gosto estético muito voltado para a mulher feminina de saia, estampas floridas ou o que estiver em voga no mundo da moda para as mulheres. Tenta convencer Ruki a usar os vestidos e roupas que compra para ela, mas a menina prefere suas próprias roupas. Sendo uma mulher com um trabalho, é uma mulher independente, com seu próprio sustento e que não se incomoda em não saber cozinhar. Ruki parece seguir os passos da mãe, mas demonstrando seu animus.
            A avó é bem compreensiva, não permite que os preconceitos atrapalhem seu juízo e acompanha as transformações tecnológicas (nem Ruki usa o computador e sua avó sim). É provavelmente a única adulta que não se assusta ou se impressiona com os digimons, ao ver Renamon frente a frente pela primeira vez, agradece a ela por ter cuidado da neta, sempre com uma calma característica da idade.

           A família de Ruki é uma representação clara da possibilidade de novas formações familiares, e com esses novos conjuntos surgem novas demandas no meio familiar. São novos tempos, novas formas de pensar, novas formas de se colocar no mundo.
A fascinação de Ruki por Ryo se explica também por ele morar só com o pai. Para ela falta o pai, para ele a mãe, o que os torna mais próximos de uma sizígia. Diferente de Ruki, Ryo parece ter superado a falta da mãe.
Katou vive numa família semelhante a de Jenrya, com diferença do pai ser extremamente viril. Como é de se esperar, toda persona muito masculina possui uma sensibilidade feminina que tenta compensá-la. O amor pela filha faz com que ele utilize seu orgulho de homem para resgatar a filha e preservar sua anima.
Katou possui um irmão menor. É bem comum que os pais atribuam ao filho mais velho a responsabilidade pelo filho mais novo: “você é o mais velho, deve ser um exemplo para ele”. Katou sente que é sua responsabilidade tudo o que acontece a partir da morte de Leomon, que pode refletir seu dever como mais velha, uma postura que ela deveria ter interiorizado desde o nascimento do irmão.
Katou presencia a morte da mãe, não concorda com a atitude do pai em considerar a morte um destino. As memórias de Katou, sob a análise do Matador, não reconhecem no pai preocupado em resgatá-la, a atitude de um salvador, pois durante sua vida o pai nunca demonstrou lutar contra o destino, é estranho para Katou, envolta pelo Matador, o pai que não aceita perder a filha, porque este é seu destino, ele deveria se conformar com o isolamento de Katou (morte simbólica) do mesmo modo que aceitou a morte da mãe. E mesmo na morte da mãe podemos observar que ele aceita a contragosto a morte da esposa, Katou não percebe isso, para ela o pai aceita a morte da mãe e isso faz dele um estranho para Katou. Talvez Katou tenha convivido desde esse dia com um homem que ela não considera seu pai.
Kenta parece viver apenas com uma família parecida com a de Jenrya e de Katou, apenas não compartilhando seus bens com os irmãos por ser filho único. A mãe segue dona de casa e o pai sai para trabalhar.
Kazu convive com um pai rígido, como o de Katou, e aparenta não ter mãe, embora tenha uma irmã que substitui a figura materna. A irmã, por sua vez, parece possuir um temperamento irritadiço.
As famílias de Kenta e Kazu não possuem muito destaque no anime, o que dificulta a elaboração de qualquer análise. Em todo caso, se podemos dizer que os comportamentos da criança são reflexos do meio familiar, vemos uma postura de presença nas ações de Kazu que poderiam ser reflexos do pai e da irmã – não deixar ser vencido, impor-se. Enquanto Kenta é mais reservado, o que implicaria a projeção da personalidade dos pais a sua própria personalidade.
De uma forma geral, os pais fazem dos filhos cópias de si mesmos e sem perceber que o fazem. As diferenças trazidas de fora de casa são aniquiladas a favor de uma homogeneização não consciente. “Quem te disse isso? Não é assim, está errado”. “Você vai fazer o que? Isso não é pra gente que nem você, meu filho”. “Ouça o que estou te dizendo, já passei por isso, eu sei do que estou falando”. “Na minha época era diferente, não tinha nada disso!”. “Enquanto morar debaixo do meu teto, eu que decido tudo!”. E é desta forma que educamos nossos filhos: com ideias prontas, por alguém decidindo por eles, pela imposição, pelo autoritarismo, desvalorizando as diferenças de pensamento. O maior problema é quando os filhos identificam-se com esses pensamentos heréticos para a família. Intensificam-se os problemas apenas porque os pais não são flexíveis, não ouvem seus filhos, não querem saber seus interesses.
Os pais não devem conversar diariamente com seus filhos porque estudaram muita psicologia e isso será um fator de sucesso no futuro de seus filhos, devem fazê-lo porque se importam em ouvir seus filhos, as surpresas que eles compartilham, o que aprenderam, os amigos que fizeram, os problemas pelos quais estão passando, uma história que ouviu, uma piada que aprendeu, as fofocas e namoricos que perpassam a sala de aula.
Os pais devem passar por uma desconstrução de si, questionar-se sobre sua própria educação e então pôr contra a parede esses princípios de educação que são seus e se perguntar será que é isto que meu filho precisa? Será que é isto que meu filho quer? Estamos sempre tão confiantes de que sabemos o que é melhor para nossos filhos, e essa confiança vem de uma surdez que aplaca uma quantidade considerável de famílias. Se as famílias conhecem tão bem seus filhos de onde surgem tantos desencontros e tantas brigas? Vem de um confronto de ideias, obviamente. Por que existe este confronto? Por que existe uma resistência em pensar que os filhos podem pensar diferente dos pais. Isto sendo colocado de forma muito simples.
Quando digo os filhos não podem pensar diferente dos pais, não é no seu sentido estrito, existem pontos que podem divergir dos pais, normalmente são aqueles que trazem status para dentro da família: um diploma que os pais não possuem, amigos com posições sociais privilegiadas, um emprego diferente dos pais que coloque dinheiro dentro de casa. As diferenças devem ser um benefício geral. As igualdades apresentam-se na escolha dos ideais políticos, de namorados/namoradas que os pais aceitem, recusa da homossexualidade dos filhos, dos locais de lazer, da literatura, do cuidado com o corpo. É bem comum ver muita hipocrisia também, do tipo Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço! E eis que o pai diz para o filho não fumar maconha quando ele mesmo não via nenhum problema nisso, ou ainda, graduada em educação física, a mãe diz Vai fazer engenharia tem algumas áreas que não prestam.
As experiências de vida dos pais são tão amplas que eles se sentem na obrigação de encaminhar os filhos para o bom caminho, aquele que gerou sucesso, e adverti-los do fracasso compensando com outras possibilidades diferentes das que moldaram seu fracasso. Os filhos logo perceberão a inconsistência dos pais por seu discurso ser uma meia verdade ou, por respeito, não discutirão: seus pais nunca lhes mentiriam. Há ainda os pais que estão cientes do erro e da ilusão que a educação provoca e sabem que nem tudo se resume a traçar o caminho para os filhos, há vezes em que eles devem fazê-lo sozinho e os pais não devem impedi-los; como pais cientes das contradições da educação, entendem que há momentos que um conselho é sempre bem vindo.
Os pais não podem exigir que os filhos sejam idênticos a eles, embora tenham certa razão em escolher uma determinada educação, aquela que englobe suas convicções e suas crenças, e nunca deixando de ter ciência que a escolha mais sábia pode ser a mais desastrosa. Prezar a autonomia é importante justamente para encontrar esse meio termo. O quarto montessoriano é onde o bebê decide para onde irá, como irá, com que brincará, como se organizará. Há de lembrar que são os pais que montam o quarto e que o bebê está sujeito ao gosto dos arquitetos, e nem por isso eles devem ser punidos. Como poderiam perguntar ao bebê qual brinquedo ele quer se ele não adquiriu linguagem para comunicar suas vontades?
Em Digimon Tamers, Yamaki é o adulto desacreditado que as crianças possam ser alguma diferença, e no final é quem diz aos pais O destino está nas mãos de suas crianças. Ainda hoje são necessários adultos dizerem a outros adultos que seus filhos são sujeitos com sonhos, desejos, motivações, pensamentos complexos, que possuem uma forma muito característica de enxergar o mundo, que não precisam permanecer heterônomos até completarem 18 anos. Repito que não é incomum encontrar adultos heterônimos. A virada dos 17 para os 18 anos não é uma passagem mágica, não se torna autônomo a partir daí, esse processo deveria ter começado há anos, já no período infantil.

As famílias possuem uma responsabilidade enorme para com seus filhos. Após assistir Digimon, a criança espectadora presencia os pais das crianças apoiando-os e percebendo que eles possuem responsabilidades e são capazes de cumpri-las, em outras palavras, eles põem-se em risco indo salvar o mundo, podendo nunca mais voltar e seus pais entendem esta posição, enquanto a criança espectadora não pode comer de garfo e faca sem que os pais digam o quanto isso é perigoso. Para crianças mais velhas converte-se no não poder sair de casa com os amigos. Não poder ir para este ou aquele lugar sem os pais. Não andar com este tipo de pessoas. Restrições. Proibições. Castigos. Punições.
As crianças querem ser responsáveis, elas querem fazer algo que seja significativo para elas e para outras pessoas (lembre-se que elas possuem um senso de justiça). O que elas precisam é que seus pais deem esse suporte, se as crianças do Digimon podem ter pais compreensivos, por que elas não podem? Não é como se os pais não se importassem mais com os filhos, é por se importarem que eles devem permitir liberdades, como aquelas que encorajam ações autônomas. Agir com liberdade não significa agir sem leis, este é um discurso deturpado de quem não compreende que existem estágios de desenvolvimento moral na criança. Vale lembrar que as crianças ajustam as leis dos jogos para que todas consigam brincar; na menor presença de alguém que não joga dentro das leis elas simplesmente não permitem que essa criança brinque, pois suas atitudes são injustas. Com o tempo, conforme crescem, elas vivenciam espaços sociais cobertos de normas, de formas certas de se portar, mais leis, e são levadas a questionar essas leis, e não por elas serem um saco, as leis poderiam ser outras, provavelmente, leis mais justas para todos.
A autonomia é esse governo de si mesmo desenvolvido em condições favoráveis do ambiente. É alcançada em espaços que querem ouvir o que você tem a dizer, sugestões, ideias, coloca-las em igualdade de importância com ideias dos mais velhos. No desenvolvimento da autonomia você percebe que não apenas ocupa espaço, mas faz algo com aquele espaço, o feedback é exatamente a avaliação e o julgamento que os outros fazem de você. Daí que autonomia implica numa educação solidária e de reciprocidade, e por essas razões não é pura libertinagem.
Se existe identificação entre as crianças espectadoras e os personagens do Digimon, podemos esperar que elas encontrem inconsistências e/ou alternativas para sua educação e digam eu quero tentar isto!
Não haverá porque um pai negar tal pedido, já que é seu filho que está lhe mostrando uma nova forma de educação. As crianças sabem como querem ser educadas, elas podem perceber isso pela identificação com os arquétipos dos personagens. O arquétipo esboçado pelo personagem mostra não apenas os conflitos, mas formas de resolução. Mesmo Katou, que perde a mãe muito cedo e não é tão próxima do pai, encontrará um novo animus e redescobrirá a relação com seu pai.
As crianças precisam ser ouvidas mais, elas não são tábulas rasas, e Montessori há muito tempo nos confirmou isto. A criança possui um espírito livre, enjaulá-la nunca foi uma opção pedagógica. Da mesma forma, os pais dos personagens expressam sua compreensão sobre o espírito de suas crianças no episódio 44:

PAI DE TAKATO: Nenhum pai neste mundo permitiria que seu filho fizesse algo perigoso. Isso nunca. (...) Mas nenhum pai tem o direito de impedir uma criança de fazer o que ela realmente quer.
MÃE DE TAKATO: Não podemos encontrar pais e filhos nesse tipo de situação, podemos?
MÃE DE JENRYA: Decidimos parar de ficar esperando a sua volta preocupados, e por isso decidimos ser úteis a vocês. (...)
MÃE DE RUKI: Sabe, nós não dissemos que vocês podiam ir. (...) Não consigo só dizer boa sorte e me despedir. (...)
AVÓ DE RUKI: Você entende, não é, Ruki? (...) Nós não sabemos quanto tempo iremos ficar nesta casa, mas faremos o melhor para podermos ajudar vocês. Então, por favor, não desperdicem suas vidas, está bem?

(Continua...)