Blog interdisciplinar que procura relacionar educação, subjetividade e autoconhecimento. Os formatos dos textos variam entre a poesia e escrita experimental até dissertações e artigos com bibliografia no final dos textos.
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segunda-feira, 29 de agosto de 2016
domingo, 7 de agosto de 2016
Notas sobre Digimon Tamers: virtualidade, identificação e cultura (Parte final)
Quando o virtual torna-se real
Antes de mais nada, virtualidade é uma possibilidade de
realidade e pode ser tão real quanto a realidade concreta, se é que e podemos
chamá-la assim. O Digimundo é idêntico ao mundo real: é uma criação do pai de
Jenrya e seus colegas baseado no conhecimento que possuem sobre seu mundo real,
transportados em dados para compor um mundo virtual. Não é de se espantar que
haja tantos paralelos entre os Digimundo e a Terra.
A
virtualidade, entretanto, é comumente concebida como uma ilusão, uma estada
temporária onde a consciência sente estar sem estar lá de fato. Poderíamos
dizer que é uma concepção muito concreta do mundo, muito enraizada e
inflexível, ao menos para os adultos. Se o Digimundo não é real, como são
muitos jogos, os Digimons também não podem ser reais. São dotados de uma consciência
artificial, são inteligências artificiais, estão previamente programadas com
comandos que permitem aprender sobre o mundo. Ora, nosso cérebro não é
pré-programado por uma genética? O que nos torna tão diferentes? Os humanos
temem os Digimons, evitam-nos, parecem perigosas.
Possuindo
uma consciência parecida com a consciência humana, eles não deveriam ser
reconhecidos dentro da ética dos relacionamentos? Como podemos saber que existe
uma consciência nos Digimons, afinal? Talvez não tenham, são apenas dados. Como
sabemos que possuímos consciência? Sabemos porque o que conhecemos é nossa
consciência, podemos concluir, como faz Daniel C. Dennett, que não conhecemos
nosso próprio corpo, mas aquilo que a consciência afirma ser nosso corpo. Não
possuímos dúvidas de que temos consciência, pois nos reconhecemos como sendo
aquilo pensamos.
Como
reconhecemos outras consciências? Provavelmente porque são parecidas com a
nossa. De onde vem essa exclusão do s Digimons? Por que é tão difícil
aceitá-los como portadores de um livre arbítrio sendo que são tão conscientes
como nós, aliás, conscientes como nós, pois a modelagem de suas consciências
programadas para interagirem com as crianças, por esse motivo (e isto é
explicado no anime) os Digimons se dão bem com as crianças.
Ruki é única que demora a reconhecer Renamon como um sujeito
consciente, antes era apenas um objeto feito de dados, possuía utilidade,
cobria necessidades, e não demora a Ruki perceber que Renamon é sua amiga, sua
parceira. Concebendo o amor que as crianças possuem ao Digimons, elas amam a si
mesmas, ao mesmo tempo que amam algo que é diferente delas e possui uma
organização própria e autônoma à consciência das crianças, podendo ser
caracterizada como a instância inconsciente, cheia de vida, que se comunica com
a verdadeira consciência ou simplesmente uma consciência verdadeira, ideias que
se originaram de pessoas com ideias.
Os Digimons
não são apenas o inconsciente pessoal, são arquétipos que vêm do inconsciente
coletivo, do Digimundo. A virtualidade, esse mundo possível, é um mundo muito
próximo do nosso, com diferenças que logo vão sendo ressignificadas e
aproximadas às imagens do inconsciente pessoal, que trazem não apenas
experiência e formas de resolver os conflitos internos, mas é singular em sua
generalidade a partir do momento que o coletivo age no pessoal. O encontro de
mundos gera estranhamento, mas é essa catástrofe que organiza e recompõe as
peças fora de seu lugar.
Para o
virtual ser real, ele precisa ser compreendido dentro de suas próprias regras.
A interação entre os mundos clama por alteridade. Sem reconhecimento não há
conhecimento.
Outra
discussão mais ampla seria: devemos conceder liberdade às criações humanas que
possuem algum tipo de consciência, como as inteligências artificiais. Ficou
claro para todos no anime que os Digimons deveriam ser livres a sua maneira sem
causar danos ao mundo real (embora eles retornem ao Digimundo, no final).
Mizuno ao
responder a pergunta de Takato sobre os digignomos serem vivos responde – Por que se importar se são vivos ou não? Até
a Terra pode ser considerada algo vivo, vocês sabem, é só pensar nela como um
ecossistema. Se uma criatura que está nela é um ser vivo ou não para esse
sistema isso não importa, não é verdade?
A discussão
sobre consciência alcança horizontes filosóficos impressionantes e que não
devemos ter medo de apresentar para as crianças. As células podem não ser
conscientes, são autômatos, diria Dennett, elas formam tecidos, que por sua vez
formam órgãos, depois sistemas. As células se complexificam em sistemas que
permitem a vida, e que poderíamos considerar sem vida, já que não faz diferença
pensar se elas possuem ou não alguma consciência. Dennett nos faz pensar se
existe consciência num braço decepado do corpo, afinal de contas, ele é formado
pelas mesmas células que contribuem para a formação da nossa consciência, ou
ainda, células que proporcionam a vida. Mas reservamos isso para nossos
neurônios e o sistema nervoso central: se tem que haver consciência é graças a
ele, segundo o balanço que Dennett faz sobre seus autores.
A Terra
poderia possuir sua própria consciência? Uma mente? Ou ainda: realmente importa
pensar nessas proporções se ela faz parte de um sistema solar e as galáxias são
consequências de formações de milhões de estrela? Toda a formação do universo
convergiria para uma única consciência ou mente? Poderíamos conceber mais
mentes num universo?
Seriam
perguntas interessantes para as próprias crianças responderem e se posicionarem
eticamente: os animais possuem uma mente? Por que amo meu cachorro se ele é
diferente de mim? Por que me sensibilizo ou não quando um animalzinho morre?
Por que cortamos as árvores sem piedade? Será que o planeta sente o que
fazemos? Se somos um sistema organizado, por que os seres humanos parecem tão
independentes do resto do planeta? Por que os seres humanos submetem o planeta
a ser uma fonte de recursos finita?
De forma
mais simples: por que ignoramos algumas pessoas? Será que as outras pessoas não
sentem algo como nós sentimos? Será que algumas pessoas não são parecidas
conosco? O que de tão diferente entre mim e as outras pessoas? Elas ficam
tristes? Elas gostam quando as elogiam? Elas preferem que as chamem pelo nome
ou pelo apelido que eu inventei? Elas gostam de ser quem são? Elas gostariam de
ser como eu sou? Eu gostaria de ser como elas são? Será que eu conheço as
outras pessoas tão bem? Eu sou capaz de alcançar a consciência das outras
pessoas?
Impmon: o personagem negro
Impmon carrega em si os complexos
das raças e etnias negras, bem como a imago do negro no branco. Podemos dizer
que Impmon é a maior caricatura do negro na animação, cujo processo de
individuação é controverso pela leitura da psicologia analítica associada às
questões étnico-raciais.
A leitura que faço deste
personagem em muito se assemelha com o que Frantz Fanon escreve sobre o negro
em seu livro Pele Negra, Máscaras Brancas.
Primeiramente, os arquétipos montados por Jung, segundo Fanon, retratam
aspectos negativos no inconsciente, são valores inferiores, deve-se
compreendê-los para descartá-los.
Adicionar legenda |
Impmon é a imagem do Malandro,
também é uma criança, dois estereótipos muito fortes no negro. Ele é o rapper, o enganador, o oportunista. Ele
também possui pouca escolarização e não é tão inteligente, portanto, conversam
com ele como se fosse uma criança, o que realça o complexo infantil.
Ai e Makoto são seus parceiros,
consciências brancas e em conflito. Impmon deseja ser parte do mundo de Ai e
Mako, ele é o inconsciente que quer confluir à consciência. Pela primeira vez,
Impmon é o arquétipo que foge. Ele é um material do inconsciente coletivo que
não pode mostrar-se como tal, ele é reprimido e não pode se manifestar como
quer.
Sua agressividade vem de querer
ser reconhecido, mas ser desprezado entre os Digimons e entre os humanos.
Quando ele está no mundo humano, deve fazer escolhas para ser humano, é o conteúdo
inconsciente que se submete aos moldes da consciência branca, que ao invés de
gerar o conflito, se rompe e se corrompe ao contato com a cultura branca; por
esses traumas, retorna ao mundo Digimon com marcas de dor, mas percebe que não
pode mais sofrer, e nenhum de seus semelhantes pode mais sofrer, embora todos
se encaminhem para serem parceiros de seus treinadores.
Todos os outros Digimons são
reconhecidos e incorporados no pensamento dos parceiros, são aceitos, só Impmon
que permanece à deriva por uma recusa da consciência que parece dizer “não é disso que precisamos aqui”. Assim
surge sua agressividade, da incompreensão e da estigmatização.
Os negros são a encarnação do
Feio e do Mal, também são os Demônios, e sua evolução – Belzebumon – carrega a
imagem do demônio. A arma que ele carrega é um símbolo fálico de poder, e não é
incomum que o negro tenha sua representação genital demasiadamente acentuada
nas sociedades brancas. A moto não é apenas velocidade, é forma mais eficaz de
não se prender a um lugar, é a fuga automática da realidade, é um sentimento de
não pertencimento a lugar, uma solidão de percorrer as terras sem nenhuma ser
sua pátria. Depois de conhecer o mundo branco, o negro não retorna a sua
pátria, e quando retorna, possui sua negritude branqueada. Agora não é mais
negro. Também não é branco. Não pertence mais a lugar nenhum, sempre há uma
parte dele que não se encaixa em lugar algum. Uma dessas partes será estranha,
incognoscível, recusada; então ele torna-se sozinho.
Por muito tempo Impmon fica sem
parceiros, as imagens inconscientes que ele traz não se tornam conscientes,
nenhuma delas. O que acontece é a aceitação de Impmon ao mundo branco. O
arquétipo negro se branqueia, e somente assim firma-se no consciente. As representações
coletivas do negro perdem espaço nas consciências alienadas que propõe a
maldade e negatividade naquilo que é negro. O que é a sombra senão aquilo que
temos medo de mostrar às outras pessoas? Se o negro possui arquétipos negros,
seria sua sombra branca? Não parece uma concepção válida, parece dicotômica
demais, e separa a possibilidade de interação entre as civilizações brancas e
civilizações negras.
O que não deveria ser permitido é
a supremacia da consciência branca sobre a consciência negra, ou ainda, a
preferência do inconsciente branco sobre o inconsciente negro. Não existe
identidade negra no inconsciente que possa se manifestar sem significar
perturbações na psique. Para Fanon, existe um combate do preto à própria
imagem.
Fanon faz a defesa a uma confusão
que existe entre o instinto, que pressupõe imagens inconscientes universais, e
o hábito, que se dá no plano material e não pertence, necessariamente, ao
inconsciente. A construção dos arquétipos negros, para Fanon, são um erro
crasso de análise, na verdade, são hábitos culturais confundidos com instintos
da espécie. Se é instinto, pertence à natureza do homem, com isso, justificamos
os atributos negativos e o trauma previsível que causa a imago do negro. Porém,
enquanto hábito, o negro é pervertido e desqualificado por uma visão errante,
por uma perspectiva etnocentrista a cultura negra é levada a desaparecer do
inconsciente.
Impmon, conciliado com as
consciências brancas de seus parceiros e o aspecto infantil ao qual o
inconsciente deve se submeter, adquire asas negras na forma de Belzebumon e uma
arma de brinquedo. Aqui ele já se sente livre, sabendo que é negro, mas
acolhido pelos brancos, que provam isto na entrega da arma-falo. Em outras
palavras, presenteiam-no com um símbolo que já pertence a um mito do branco
sobre o negro – seu aspecto genital, e ele acolhe este símbolo com honras. As asas substituem a moto: cessa a fuga,
começa a liberdade e a ascensão.
A individuação de Impmon seria
para Fanon um processo controverso, visto que ele não é reconhecido sem ter que
submeter-se a uma cultura para ser reconhecido. Ele deve negar sua identidade e
adequá-la a uma consciência que não gera apenas conflito, gera negação de si,
dúvida sobre si mesmo, uma confusão entre os símbolos que lhe parecem sinceros
e aqueles que lhe dizem que são o caminho correto.
Impmon pode traduzir-se na
conversão do material inconsciente indesejado, embora necessário por fazer
parte do inconsciente coletivo, para uma imagem mais tranquila de ser recebida
pelo consciente que nega suas raízes negras. O inconsciente que deveria chocar
o consciente, é chocado, despedaçado; não tornando-se consciente, é
substituído, permanecendo inconsciente, há de desaparecer, já que os arquétipos
são formados a partir de imagens contidas no mundo concreto das ações; se os
arquétipos negros não são mais necessários para preparar o indivíduo para o
mundo no qual atuará, se suas ações podem depender de outras imagens psíquicas,
logo a frequência dessas imagens negra não terá espaço significativo na psique,
será sempre um trauma e um conflito, nada mais que isso. Se elas podem ser
substituídas por imagens com uma representação mais fiel ao mundo das
atividades concretas, assim ela será reconsiderada.
Não sabemos se as imagens do
inconsciente coletivo podem desaparecer, e somos levados a crer que elas se
acumulam com o tempo. Devemos também crer na capacidade produtiva e reprodutiva
da psique ao lidar com os símbolos. Desta forma, os arquétipos do negro
poderiam ser (re)adequados se fosse o caso, sem contar que as culturas são
capazes de modificar o viés científico das ciências e nunca são estáticas, o
que inevitavelmente provocaria transformações nos símbolos do inconsciente
coletivo. Aparentemente, como Jung sugere em suas pesquisas sobre psicologia
das religiões, os símbolos não desaparecem do inconsciente, assumem novas
formas, são preenchidos com outros significados, podem variar os mitos em que
aparecem; possuem uma mobilidade possível, embora mais ou menos previsível.
Isto, por si só, é uma grande esperança para o negro e culturas africanas, bem
como a concepção das culturas que negam o negro e sua cultura: é possível a
transformação da imago do negro, pensando desta forma.
Outra questão que o arquétipo de
Impmon, sugerido como um arquétipo social, para não desagradar Fanon (hábito,
não instinto), é se temos crianças negras assistindo este anime. O processo de
identificação não precisa acontecer com Impmon, mas poderia acontecer com
qualquer outro personagem branco, e na tentativa de pertencer ao mundo branco
despertam o arquétipo de Impmon, e sofrem um processo semelhante em suas
vivências: manter uma máscara (persona) branca cobrindo a pele (sombra) negra.
O anime é originalmente japonês, portanto, voltado para as crianças do japonês,
imagino, onde devem existir pouquíssimas crianças negras, onde deve ser incomum
a presença do negro. A simbologia que se faz presente no anime é a simbologia
de sua própria cultura, algo bem compreensível; quando se exporta essas imagens
culturais para a américa latina, por exemplo, devemos revisitar elementos
concentuais para a formação de identidade de um povo.
A globalização traz uma
hipersaturação simbólica às mais diversas culturas, chegando a dificultar o
reconhecimento dos próprios símbolos. A frequência com que uma imagem aparece
na TV é significativa para ressignificar símbolos locais, levando à
desestruturação, colapso e desaparecimento do regime simbólico de culturas
menores, dominadas, desconhecidas, sem tanta influência ou reconhecimento global.
Digimon Tamers não é mais assistido,
mas pode-se considerar que foi um anime impactante nos anos 90 para crianças
que assistiam regularmente o anime, bem como as outras edições de Digimon. E há
uma diversidade simbólica enorme na TV, com os personagens, os diferentes
arquétipos, as variadas situações que são sugeridas, as formas de resolver os
conflitos, as experiências vividas, e as situações têm seus sentidos ampliados
e podem até tornar-se confusos e contraditórios.
Conclusão
Podemos
perceber que os personagens, tanto de Digimon quanto de outras animações,
desenhos, animes e espetáculos cinematográficos, podem sugerir arquétipos que
fazem referência a uma cultura específica e/ou a um inconsciente coletivo. Não
é nenhuma surpresa que haja identificação entre os espectadores (neste caso
crianças, principalmente) e os personagens, que passariam a funcionar como
arquétipos na resolução dos conflitos externos e internos da criança, assim
como acontece quando a criança elege um conto de fadas de sua preferência.
Imagino que o conteúdo televisivo possa ter a mesma função dos contos de fada.
A narrativa
do anime pode servir de pano de fundo para uma realidade que está sendo
vivenciada, e nela possuem representações simbólicas. A própria relação entre
pais e filhos no anime é ressignificada para contribuir com uma atitude
autônoma da criança, e a identificação contribui para buscar essa autonomia,
que em todo caso, depende da contribuição de seus educadores para a formação
dessa autonomia e noções de liberdade.
Aproximação
com o animus ou a anima é extremamente ressaltada, salienta como os personagens
meninos lidam com sua parte feminina e as meninas com sua parte masculina, e o
pior cenário é quando os meninos devem adorar os símbolos masculinos e as meninas
resignarem-se com a feminilidade.
A relação
simbólica entre domadores e Digimons é salientada na reciprocidade, não numa
objetificação, o que implica, se bem trabalhado pelos educadores, uma
desobjetificação das mentes e quebrar mitos que viemos alimentando por muito
tempo, como: a inteligência de algumas pessoas possui limites, condições de
existência desumanas para minorias sociais (casos de machismo, racismo,
homofobia, etc.), reconhecimento das pessoas com deficiência física e mental,
sendo esta última comparada aos casos em que concebem mentes às inteligências
artificiais (a mente dele não é igual a minha, mas há uma mente ali, será que
eu não devo me importar com seu bem-estar e trata-lo como uma mente?).
O processo
de individuação é chamado de evolução no anime, o que traz a ideia controversa
do progresso ser linear e, se for conveniente teleológico, mas se nos
atentarmos para o darwinismo que sustentou a criação de Digimon perceberemos
que as condições ambientais trazem evoluções diferentes, como Guilmon evoluindo
para uma criatura monstruosa quando Takato é tomado por uma ira descontrolada.
A individuação baseia-se na aproximação com a experiência divina, representada
pela digievolução, daí é trazida a ideia de religião e de Deuses, a retomada de
mitos, a superação de si mesmo, a transcendência, a união entre consciente e
inconsciente e a ideia de unidade, sempre representada pelo equilíbrio das
quatro funções do inconsciente, muito bem representadas no anime.
Por último,
é questionado a validade da teoria do inconsciente coletivo por estudos
étnico-raciais (onde utilizo apenas um livro, de Frantz Fanon, para ilustrar
esse desacordo) e se não seria mais provável a noção de inconsciente cultural.
Muito próximo da ideia de colonização do pensamento e de alienação da
consciência temos a globalização expressando tantas imagens quantas sejam
possíveis, o que dificulta sua assimilação e a compreensão dos símbolos de sua
própria cultura, chegando a substituí-los por outros que mostram uma expressam
estatística mais recorrentes e tendenciosos, que por sua repetição massiva,
podem ser considerados novas imagens que virão a preencher o inconsciente
coletivo, como marcas de roupas, rótulos de refrigerantes, estabelecimentos
multinacionais, por exemplo.
Em todo
caso: um anime entre tantos, pode ser apenas um conteúdo divertido e/ou
alienante, entretanto, são situações que podem ser reais e a identificação é a
chave para que haja uma possibilidade do uso da teoria dos arquétipos, de
estudos midiáticos e sociológicos sobre a apresentação daquele personagem e
como as crianças carregam consigo as ideias, comportamentos e linguagem
apresentadas. Digimon é o exemplo mais rico que consegui imaginar, mas é um
exercício que pode ser ampliado, comparado, recusado, questionado, criticado ou
aplicado.
Talvez o
que vemos seja mais que aquilo que vemos, por isso ele nos afeta. Porque é uma
experiência simbólica e psíquica, sem negar qualquer traço de materialidade
nessa interação.
(Este parêntesis foi escrito após a releitura desta postagem e suas predecessoras - partes 1 e 2. Na parte final percebi que há um racismo do escritor com a análise mobilizada: operar pela dicotomia branco/negro quando estão sendo representados japoneses/não-japoneses ou inteligências artificiais. Ainda que se possa fazer uma análise do mundo branco-europeu-ocidental, tratado por Frantz Fanon, no Oriente e, particularmente, no Japão, há limites para o uso de um inconsciente branco como demonstração da infantilização e feminização de um corpo negro, que esbarram, aqui, em representações com nenhuma ou pouca relação com o branco. Sendo assim, vale a pergunta: se o negro, aqui, não se diferencia do branco, qual seu par opositor e complementar? Também é possível questionar se Frantz Fanon é a melhor referência para estudar a personagem que denominamos negro, algo que é necessário ser repensado, dado a recente abertura cultural do Japão ao Ocidente, principalmente após a Segunda Guerra Mundial. Assim, que referências e que referentes da cultura japonesa colaboram para uma análise de seus materiais semióticos, os quais são lidos aqui com um interesse mais psicológico do que artístico? Ou ainda, se a própria leitura psicologizante não deturpa a possibilidade de utilizar ferramentas conceituais oferecidas pelas artes visuais para um estudo mais adequado da imagem, comentário válido para as partes 1 e 2).
Referências e
recomendações de leitura
ALTMAN, Jack. 1001 Sonhos: guia ilustrado dos sonhos e seus
significados. São Paulo: Publifolha, 2003.
DENNETT, Daniel C. Tipos de Mentes: rumo a compreensão da
consciência. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
JUNG, C. G. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Ed. 24.
Petrópilis: Vozes, 2014.
MAMBERT, W. A.; FOSTER, B. Frank. Viagem ao Inconsciente.
São Paulo: Círculo do Livro, 1973.
MONTESSORI, Maria. A Criança. 3ª Ed. Rio de Janeiro, RJ:
Internacional Portugalia, [19-].
PIAGET, Jean. Seis Estudos de Psicologia. 24a Ed. Rio de
Janeiro, RJ: Forense Universitária, 2001.
VINHA, Telma. O Educador e A Moralidade Infantil: uma
construção construtivista. Campinas, SP: Mercado das Letras/FAPESP, 2000.
Notas sobre Digimon Tamers: ambiente familiar e desenvolvimento da autonomia (2ª Parte)
Não há uma família no anime que não se preocupe com seus
filhos, todas tentam, a sua maneira, serem exemplares para eles. Como é
esperado, de uma forma geral, pais não permitiriam que seus filhos fizessem uma
longa viagem sem estar acompanhados de um adulto. No anime as crianças não
precisam ser acompanhadas pelos adultos para irem até a escola, no Japão isto é
bem comum, andar em grupos até a escola é o que ocorre recorrentemente.
O adulto
possui um papel de assistir e educar a criança, promover sua integridade física
e espiritual, isto vale para as famílias de uma forma geral, não apenas no
anime. É comum que nesse processo de cuidar e educar os pais se tornem
superprotetores e/ou projetem seus sonhos e desejos nas crianças, desenvolvendo
seus complexos. É comum pensar que uma criança aos 10 anos não possui capacidade
para tudo o que um adulto faz sozinha, mas é importante saber que ela não
precisa fazer o que um adulto faz, ela precisa ser autônoma para fazer o que
ela quer fazer, aquilo que seus 10 anos despertam a nível de vontade, ser capaz
de cumprir seus interesses pessoais. Se formos piagetianos, entre 7-8 anos,
aproximadamente, a criança inicia o jogo com regra, que significa basicamente:
ela fará com que as regras do jogo sejam cumpridas por todos e ela também se
submeterá às regras para que o jogo aconteça, o que pede uma socialização das
ações. Inicialmente cumprem-se as regras porque as regras devem ser cumpridas,
e com o passar do tempo a criança entende que as regras podem ser modificadas
para que todos consigam jogar de forma justa.
A autonomia não acontece a partir de uma idade ou é dada por
um conjunto de ações específicas para, a partir daí, dizer que a criança é
autônoma. A criança precisa sentir desde cedo a autonomia, que pode ser feita à
moda Montessori, como vejo alguns pais que buscam por pedagogias alternativas
montarem o quarto para seus filhos recém nascidos de formas pouco
convencionais: menos tradicional e mais pedagógico. A ideia principal é que os
brinquedos ficam em estantes ou baús, à altura da criança, e o quarto é
preparado para atender as necessidades da criança e todos os móveis são
adequados à altura da criança para que ela sinta-se confortável. Essas são
medidas que influenciam de forma positiva o desenvolvimento da autonomia na
criança, pois ela não precisa se adaptar ao ambiente, como precisa fazer se quer
pegar um brinquedo num lugar alto demais ou escalar uma cadeira para sentar
nela, sem contar o desconforto de comer numa mesa em que ela não consegue levar
a colher até a boca por não alcançar a colher, isso se a colher couber em sua
boca.
O ambiente
é preparado e modificado a favor das necessidades da criança. E é importante ter
isto em mente pela autonomia ser a expressão da vontade de uma pessoa, mesmo
adultos. È impressionante como adultos não desenvolvem sua autonomia de forma
plena, vê-se isso por não saberem tomar decisões, por não saberem lidar com a
disposição do ambiente, em geral o fazem por não serem convidados a se
expressarem como desejam, devem seguir as regras pré-estabelecidas, mesmo que
não seja de seu agrado. Algo que favorece o estado de heteronomia são as
respostas “porque sim!”, “porque eu mando nisto!”, “isso é meu e eu posso fazer o que eu quiser
com isso!”. Será que essas crianças ouvem muito isto?
Não é
incomum que pais percebam os filhos como objetos obedientes, desejam seu bem
acima de tudo, mas há limites desnecessários para o que podem e querem fazer, o
que acaba por frustrar e angustiar as crianças. No anime, as crianças mantém
uma atitude heterônoma até decidirem ir para o Digimundo, até aquele momento
elas estão quebrando regras, sabem que seus pais ficarão bravos se souberem que
andam se arriscando por aí e saindo no meio da noite. Quebram as regras porque
não entendem aquelas regras como necessárias, se pudessem decidir alterações
nessas regras com seus pais, tentariam modifica-las para fazer os pais
entenderem que existem digimons maus por aí e que eles precisam da confiança
dos pais para cumprir o dever moral de cuidar da sua cidade e das pessoas nela.
Em nenhum momento elas agem infringindo a regra por egoísmo, fazem-no por terem
um senso de justiça, comum a toda criança.
A mãe de Takato é protetora, não quer que aconteça nenhum
mal ao filho, mas resiste que ele se afaste dela diversas vezes, e é no último
combate que ela passa a confiar na capacidade do filho e percebe que ele deve se
afastar dala. O pai, por outro lado, na primeira conversa que o filho tem sobre
afastar-se deles para cumprir sua missão, compreende que é necessário deixar
ir, e ele não apenas apoia as decisões do filho como mostra preocupação
preparando pães para a viagem, o que demonstra apoio.
A
simbologia de desvincular-se da mãe está ligada a deixar suas raízes e não se
prender à terra em que nasceu. A mãe, quando impede isto, transforma-se no
aspecto maligno arraigado no inconsciente, a terra que engole as aspirações do
jovem fruto; o que deveria representar a nutrição, a continuidade, o progresso
e o sentimento de proteção, torna-se morte iminente, fim da vida, impede o
crescimento psicológico, comumente simbolizado pela Mãe-Terra. O pai, por sua
vez, pode assumir a imagem do Velho Sábio, representando a autoridade, o
conselheiro, um tipo de mestre ou guia, e em oposição pode se tornar figura que
castra os desejos da criança, pode ser um destruidor, um ditador.
As crianças
esperam que seus Eros tenham o suporte da Mãe-Terra e do Velho Sábio, e a seu
tempo, criam independência conforme as circunstâncias clamam por isso. A ida
das crianças para o Digimundo traz o arquétipo do Herói de forma coletiva: o
combate, a missão, a aventura, as conquistas, a luta para salvar o mundo, e
para conseguirem vestir este arquétipo devem encontrar a harmonia dos
arquétipos materno e paterno com o seu. Portanto, a mãe não deve fazer o papel
da madrasta má e o pai não pode ser o falo autoritário.
A mãe de
Jenrya demonstra ser uma mulher fiel à família, dedicada em suas tarefas e bem
obediente. Num episódio em que Jenrya está no Digimundo ela pergunta ao marido
se Jenrya voltará, ele diz que vai sair para dar uma volta, buscava evitar a
conversa, ela interpela o marido perguntando se ele não acha que ela está
triste também, se não está sofrendo pelo afastamento do filho. A mãe parece não
receber muito suporte e afeto da família, cuida demais dela, mas recebe poucos
cuidados. Parece que quase não sai de casa. Já deve estar cansada de viver sob
quatro paredes.
Shu Chong,
irmã de Jenrya, parece dedicar mais tempo ao irmão e ao pai do que à mãe. A
família ainda possui uma irmã mais velha, que deve estar no começo da
adolescência e imagino que deva estar ligada à mãe ou já busca sua
independência. Quando vemos o pai de Jenrya, ele está sempre no trabalho, na
mesa de jantar com sua família, com o Sr. Yamaki ou com Jenrya e Shu Chong: a
irmã mais velha não possui presença na vida do pai, o que leva a supor
proximidade com a mãe ou encontro com amigos. Quer estar fora de casa.
É bem possível que Jenrya seja o irmão modelo de Shu Chong,
a maior prova disto é Terriermon e Lopmon serem tão parecidos, com exceção da
cor e da quantidade de chifres. Se os Digimons podem ser a personificação do
inconsciente, os chifres a mais demonstram a posição fálica que a irmã possui
em relação ao irmão, pensando em superá-lo. Ou, ele não é mais irmão modelo e
ela se vê melhor que ele.
Ruki não
possui pai, nem quer saber sobre ele, é algo que prefere reprimir. Sua família
é sua mãe e sua vó, presenças muito femininas, o balanço que Ruki faz é recusar
o feminino em casa, assim como o pai recusou. A mãe de Ruki trabalha como
modelo, é uma mulher que possui um gosto estético muito voltado para a mulher
feminina de saia, estampas floridas ou o que estiver em voga no mundo da moda
para as mulheres. Tenta convencer Ruki a usar os vestidos e roupas que compra
para ela, mas a menina prefere suas próprias roupas. Sendo uma mulher com um
trabalho, é uma mulher independente, com seu próprio sustento e que não se
incomoda em não saber cozinhar. Ruki parece seguir os passos da mãe, mas
demonstrando seu animus.
A avó é bem
compreensiva, não permite que os preconceitos atrapalhem seu juízo e acompanha
as transformações tecnológicas (nem Ruki usa o computador e sua avó sim). É
provavelmente a única adulta que não se assusta ou se impressiona com os digimons,
ao ver Renamon frente a frente pela primeira vez, agradece a ela por ter
cuidado da neta, sempre com uma calma característica da idade.
A família de Ruki é uma representação clara da possibilidade
de novas formações familiares, e com esses novos conjuntos surgem novas
demandas no meio familiar. São novos tempos, novas formas de pensar, novas
formas de se colocar no mundo.
A fascinação de Ruki por Ryo se
explica também por ele morar só com o pai. Para ela falta o pai, para ele a
mãe, o que os torna mais próximos de uma sizígia. Diferente de Ruki, Ryo parece
ter superado a falta da mãe.
Katou vive numa família
semelhante a de Jenrya, com diferença do pai ser extremamente viril. Como é de
se esperar, toda persona muito masculina possui uma sensibilidade feminina que
tenta compensá-la. O amor pela filha faz com que ele utilize seu orgulho de
homem para resgatar a filha e preservar sua anima.
Katou possui um irmão menor. É
bem comum que os pais atribuam ao filho mais velho a responsabilidade pelo
filho mais novo: “você é o mais velho,
deve ser um exemplo para ele”. Katou sente que é sua responsabilidade tudo
o que acontece a partir da morte de Leomon, que pode refletir seu dever como
mais velha, uma postura que ela deveria ter interiorizado desde o nascimento do
irmão.
Katou presencia a morte da mãe,
não concorda com a atitude do pai em considerar a morte um destino. As memórias
de Katou, sob a análise do Matador, não reconhecem no pai preocupado em
resgatá-la, a atitude de um salvador, pois durante sua vida o pai nunca
demonstrou lutar contra o destino, é estranho para Katou, envolta pelo Matador,
o pai que não aceita perder a filha, porque este é seu destino, ele deveria se
conformar com o isolamento de Katou (morte simbólica) do mesmo modo que aceitou
a morte da mãe. E mesmo na morte da mãe podemos observar que ele aceita a
contragosto a morte da esposa, Katou não percebe isso, para ela o pai aceita a
morte da mãe e isso faz dele um estranho para Katou. Talvez Katou tenha
convivido desde esse dia com um homem que ela não considera seu pai.
Kenta parece viver apenas com uma
família parecida com a de Jenrya e de Katou, apenas não compartilhando seus
bens com os irmãos por ser filho único. A mãe segue dona de casa e o pai sai
para trabalhar.
Kazu convive com um pai rígido,
como o de Katou, e aparenta não ter mãe, embora tenha uma irmã que substitui a
figura materna. A irmã, por sua vez, parece possuir um temperamento irritadiço.
As famílias de Kenta e Kazu não
possuem muito destaque no anime, o que dificulta a elaboração de qualquer
análise. Em todo caso, se podemos dizer que os comportamentos da criança são
reflexos do meio familiar, vemos uma postura de presença nas ações de Kazu que
poderiam ser reflexos do pai e da irmã – não
deixar ser vencido, impor-se.
Enquanto Kenta é mais reservado, o que implicaria a projeção da personalidade
dos pais a sua própria personalidade.
De uma forma geral, os pais fazem
dos filhos cópias de si mesmos e sem perceber que o fazem. As diferenças
trazidas de fora de casa são aniquiladas a favor de uma homogeneização não
consciente. “Quem te disse isso? Não é
assim, está errado”. “Você vai fazer
o que? Isso não é pra gente que nem você, meu filho”. “Ouça o que estou te dizendo, já passei por isso, eu sei do que estou
falando”. “Na minha época era
diferente, não tinha nada disso!”. “Enquanto
morar debaixo do meu teto, eu que decido tudo!”. E é desta forma que
educamos nossos filhos: com ideias prontas, por alguém decidindo por eles, pela
imposição, pelo autoritarismo, desvalorizando as diferenças de pensamento. O
maior problema é quando os filhos identificam-se com esses pensamentos
heréticos para a família. Intensificam-se os problemas apenas porque os pais
não são flexíveis, não ouvem seus filhos, não querem saber seus interesses.
Os pais não devem conversar
diariamente com seus filhos porque estudaram muita psicologia e isso será um
fator de sucesso no futuro de seus filhos, devem fazê-lo porque se importam em
ouvir seus filhos, as surpresas que eles compartilham, o que aprenderam, os
amigos que fizeram, os problemas pelos quais estão passando, uma história que
ouviu, uma piada que aprendeu, as fofocas e namoricos que perpassam a sala de
aula.
Os pais devem passar por uma
desconstrução de si, questionar-se sobre sua própria educação e então pôr
contra a parede esses princípios de educação que são seus e se perguntar será que é isto que meu filho precisa? Será
que é isto que meu filho quer? Estamos sempre tão confiantes de que sabemos
o que é melhor para nossos filhos, e essa confiança vem de uma surdez que
aplaca uma quantidade considerável de famílias. Se as famílias conhecem tão bem
seus filhos de onde surgem tantos desencontros e tantas brigas? Vem de um
confronto de ideias, obviamente. Por que existe este confronto? Por que existe
uma resistência em pensar que os filhos podem pensar diferente dos pais. Isto
sendo colocado de forma muito simples.
Quando digo os filhos não podem pensar diferente dos pais, não é no seu sentido
estrito, existem pontos que podem divergir dos pais, normalmente são aqueles
que trazem status para dentro da
família: um diploma que os pais não possuem, amigos com posições sociais
privilegiadas, um emprego diferente dos pais que coloque dinheiro dentro de
casa. As diferenças devem ser um benefício geral. As igualdades apresentam-se
na escolha dos ideais políticos, de namorados/namoradas que os pais aceitem,
recusa da homossexualidade dos filhos, dos locais de lazer, da literatura, do
cuidado com o corpo. É bem comum ver muita hipocrisia também, do tipo Faça o que eu digo, mas não faça o que eu
faço! E eis que o pai diz para o filho não fumar maconha quando ele mesmo
não via nenhum problema nisso, ou ainda, graduada em educação física, a mãe diz
Vai fazer engenharia tem algumas áreas
que não prestam.
As experiências de vida dos pais
são tão amplas que eles se sentem na obrigação de encaminhar os filhos para o
bom caminho, aquele que gerou sucesso, e adverti-los do fracasso compensando
com outras possibilidades diferentes das que moldaram seu fracasso. Os filhos
logo perceberão a inconsistência dos pais por seu discurso ser uma meia verdade
ou, por respeito, não discutirão: seus pais nunca lhes mentiriam. Há ainda os pais
que estão cientes do erro e da ilusão que a educação provoca e sabem que nem
tudo se resume a traçar o caminho para os filhos, há vezes em que eles devem
fazê-lo sozinho e os pais não devem impedi-los; como pais cientes das
contradições da educação, entendem que há momentos que um conselho é sempre bem
vindo.
Os pais não podem exigir que os
filhos sejam idênticos a eles, embora tenham certa razão em escolher uma
determinada educação, aquela que englobe suas convicções e suas crenças, e
nunca deixando de ter ciência que a escolha mais sábia pode ser a mais
desastrosa. Prezar a autonomia é importante justamente para encontrar esse meio
termo. O quarto montessoriano é onde o bebê decide para onde irá, como irá, com
que brincará, como se organizará. Há de lembrar que são os pais que montam o
quarto e que o bebê está sujeito ao gosto dos arquitetos, e nem por isso eles
devem ser punidos. Como poderiam perguntar ao bebê qual brinquedo ele quer se
ele não adquiriu linguagem para comunicar suas vontades?
Em Digimon Tamers, Yamaki é o
adulto desacreditado que as crianças possam ser alguma diferença, e no final é
quem diz aos pais O destino está nas mãos
de suas crianças. Ainda hoje são necessários adultos dizerem a outros
adultos que seus filhos são sujeitos com sonhos, desejos, motivações,
pensamentos complexos, que possuem uma forma muito característica de enxergar o
mundo, que não precisam permanecer heterônomos até completarem 18 anos. Repito
que não é incomum encontrar adultos heterônimos. A virada dos 17 para os 18
anos não é uma passagem mágica, não se torna autônomo a partir daí, esse processo
deveria ter começado há anos, já no período infantil.
As famílias possuem uma
responsabilidade enorme para com seus filhos. Após assistir Digimon, a criança espectadora
presencia os pais das crianças apoiando-os e percebendo que eles possuem
responsabilidades e são capazes de cumpri-las, em outras palavras, eles põem-se
em risco indo salvar o mundo, podendo nunca mais voltar e seus pais entendem
esta posição, enquanto a criança espectadora não pode comer de garfo e faca sem
que os pais digam o quanto isso é perigoso. Para crianças mais velhas
converte-se no não poder sair de casa com os amigos. Não poder ir para este ou
aquele lugar sem os pais. Não andar com este tipo de pessoas. Restrições.
Proibições. Castigos. Punições.
As crianças querem ser
responsáveis, elas querem fazer algo que seja significativo para elas e para
outras pessoas (lembre-se que elas possuem um senso de justiça). O que elas
precisam é que seus pais deem esse suporte, se as crianças do Digimon podem ter
pais compreensivos, por que elas não podem? Não é como se os pais não se
importassem mais com os filhos, é por se importarem que eles devem permitir
liberdades, como aquelas que encorajam ações autônomas. Agir com liberdade não
significa agir sem leis, este é um discurso deturpado de quem não compreende
que existem estágios de desenvolvimento moral na criança. Vale lembrar que as
crianças ajustam as leis dos jogos para que todas consigam brincar; na menor
presença de alguém que não joga dentro das leis elas simplesmente não permitem
que essa criança brinque, pois suas atitudes são injustas. Com o tempo,
conforme crescem, elas vivenciam espaços sociais cobertos de normas, de formas
certas de se portar, mais leis, e são levadas a questionar essas leis, e não
por elas serem um saco, as leis
poderiam ser outras, provavelmente, leis mais justas para todos.
A autonomia é esse governo de si
mesmo desenvolvido em condições favoráveis do ambiente. É alcançada em espaços
que querem ouvir o que você tem a dizer, sugestões, ideias, coloca-las em
igualdade de importância com ideias dos mais velhos. No desenvolvimento da
autonomia você percebe que não apenas ocupa espaço, mas faz algo com aquele
espaço, o feedback é exatamente a
avaliação e o julgamento que os outros fazem de você. Daí que autonomia implica
numa educação solidária e de reciprocidade, e por essas razões não é pura
libertinagem.
Se existe identificação entre as
crianças espectadoras e os personagens do Digimon, podemos esperar que elas
encontrem inconsistências e/ou alternativas para sua educação e digam eu quero tentar isto!
Não haverá porque um pai negar
tal pedido, já que é seu filho que está lhe mostrando uma nova forma de
educação. As crianças sabem como querem ser educadas, elas podem perceber isso
pela identificação com os arquétipos dos personagens. O arquétipo esboçado pelo
personagem mostra não apenas os conflitos, mas formas de resolução. Mesmo
Katou, que perde a mãe muito cedo e não é tão próxima do pai, encontrará um novo
animus e redescobrirá a relação com seu pai.
As crianças precisam ser ouvidas
mais, elas não são tábulas rasas, e Montessori há muito tempo nos confirmou
isto. A criança possui um espírito livre, enjaulá-la nunca foi uma opção
pedagógica. Da mesma forma, os pais dos
personagens expressam sua compreensão sobre o espírito de suas crianças no
episódio 44:
PAI DE TAKATO: Nenhum pai neste mundo permitiria que seu
filho fizesse algo perigoso. Isso nunca. (...) Mas nenhum pai tem o direito de
impedir uma criança de fazer o que ela realmente quer.
MÃE DE TAKATO: Não podemos encontrar pais e filhos nesse
tipo de situação, podemos?
MÃE DE JENRYA: Decidimos parar de ficar esperando a sua
volta preocupados, e por isso decidimos ser úteis a vocês. (...)
MÃE DE RUKI: Sabe, nós não dissemos que vocês podiam ir. (...) Não consigo só dizer
boa sorte e me despedir. (...)
AVÓ DE RUKI: Você entende, não é, Ruki? (...) Nós não sabemos quanto tempo iremos
ficar nesta casa, mas faremos o melhor para podermos ajudar vocês. Então, por
favor, não desperdicem suas vidas, está bem?
(Continua...)
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