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terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

O educador é um artista, compositor e instrumentista

1ª atualização em 21/06/2017.

Semana passada presenciei a cerimônia de colação de grau de minha turma de Pedagogia. Como faltavam algumas disciplinas para me formar eu não estava de beca, consegui um lugar na plateia e acompanhei o decorrer do evento. Além de todo o regogizo que esse momento significou para os recém titulados pedagogos e professores, seus mestres, amigos e familiares, chamou-me a atenção os discursos: os estudantes dividiam-nos entre os perrengues da vida universitária, a honra que significava estar diplomado e a importância de sua profissão para a sociedade; os professores parabenizaram os estudantes em seus discursos e exaltaram seus esforços, todavia, reservaram linhas para desmistificar os caminhos da profissão do educador e a área da educação.
            Interessou-me realizar um exercício de sintetizar todas essas falas num texto original e de articulá-las no formato de um discurso de colação de grau, procurando criar pontes entre a visão que educadores nutrem da educação para um público diverso que, muitas vezes, desconhece os propósitos e interesses da educação e sem conhecer a profissão dos educadores, em particular os professores.
            Eu começaria dizendo

Boa noite aos presentes: familiares, amores, amigos e cúmplices.

É com muita honra, como orador desta cerimônia, que venho provocar palavras de alegria e comemoração, bem como palavras de advertência e reflexão.


E prosseguiria com

É sabido que a vida assemelha-se à música, possui intensidade, discriminando sua leveza ou dureza; altura, que compara, divide e agrupa os sons entre si; duração, pois cada passo e cada ação têm começo e fim na partitura que tocamos; e o que me encanta mais, a vida tem timbre, a característica especial de cada som, a particularidade de cada ser que compõe esta magna orquestra de maestro oculto.
Ver música na vida é importante porque vemos arte, sentimos cada afeto como uma melodia. Não apenas sentimos as melodias como criamos algumas, e a beleza disso tudo é que acontece sermos músicos e musicistas no instante em que a arte do outro alcança nossos sentidos, daí sorrimos, choramos, gargalhamos, nos expomos, nos escondemos, nos preocupamos, trememos de felicidade, raiva ou tristeza, quiçá nos surpreendemos.
Embelezar tanto um discurso parece exagero, mas é porque não estamos acostumados com estas guloseimas. Simone de Beauvoir escreve em suas memórias que “Pela boca, o mundo entrava em mim mais intensamente do que pelos olhos e pelas mãos”, e acrescento que um mundo de música é inteiro comestível e pode devorado por todos. Consiste num exercício sinestésico bem reconfortante.
O que comemoramos aqui senão o ritual mais esperado pelas famílias? Não lhes parece estranho que dos nossos estimados 80 anos de vida a música de todos alcance tanto furor e estridência no ingresso dos jovens à graduação, e depois no final dela? São, estimo, 4 a 7 anos de composição, e nem passamos esses anos todos estudando e assistindo aulas, recebemos o título de universitários e aí se inicia um allegro; sem tardar torna-se prestíssimo com anima num intervalo de fusa. Ou seja, nosso maior momento de prazer é estar na universidade ou ver nossos filhos na universidade.
Não importa que as provas sejam difíceis, os trabalhos cansativos, os noturnos nos persigam durante as semanas de provas e os professores sejam péssimos regentes. Vale mais ser parabenizado pela conquista, receber o prestígio e a honra do reconhecimento para o sucesso. Sentimo-nos gigantes e respeitados, desbravadores de um mundo mágico.
Espere até pronunciar novos sons, desses que só a universidade ensina. Vão rir. Dirão que na partitura é bonita, mas a execução é impossível. É como falar que a universidade deve ser de todos e que o vestibular nega o direito à educação por ser meritocrático. Nossa intenção é que sejam notas mínimas num andamento lento, e sabe-se lá como convertem esta ideia numa sequência maluca de semifusas arpejadas com fantasia.
Aliás, existe um mito de que pedagogia é fantasia, logo é tudo imaginação, coisa da cabeça dos pedagogos. Porém, se nós pedagogos não compomos nada coerente, quem compõe? Bom, todos os outros que não são pedagogos. Eles são empresários, economistas, engenheiros, médicos, vendedores de bugigangas, motoristas de ônibus, garçons e, por incrível que pareça, nossos pais. Por que as pessoas são capazes de gerar filhos elas interpretam isto como sinônimo de saber educar, que é, possivelmente, a mentira mais bem contada desde a invenção da propriedade. Não sintam-se atacados, trago apenas provocações.
O que me preocupa não é que as pessoas estejam sendo moldadas por suas famílias, eu tenho uma família também, e eu não seria o que sou sem eles. A questão é que o mundo de hoje é um mundo sem arte, e quando aparece alguma cor ou som novo nele é desmentido com tamanha rapidez por um “o mundo não é assim!”, “onde foi que você aprendeu isso?”, “isso é besteira!” e por aí vai.
Pelas muitas coisas que já ouvi, existem duas verdades sobre o mundo, é um princípio essencial, ou ele é triste ou alegre, e a intenção de sua harmonia também, impossível coexistirem. A cada novo dia percebo mais pessoas desistindo de suas vidas, de si mesmas, como se elas fossem pouca coisa nesta orquestra só porque executam uma batida no tambor a cada oito compassos, e lá na primeira fila o violinista esteve sempre em destaque atraindo todos os olhares da plateia para sua performance.
Sentimo-nos injustiçados, porém, as coisas estão além do bem o do mal, para mencionar Nietzsche. A música pode ser alegre e triste, ao mesmo tempo, e ela nem sempre tem som, também tem pausas. A vida é dotada de um silêncio com o qual não estamos acostumados a lidar. Os melhores músicos e musicistas não são aqueles que possuem uma técnica invejável de arpejo e tocam tão rápido quanto possível, senão aqueles que relaxam bem suas notas e permitem que possamos saborear sua criação.
Seguindo orientalismos, simplifico o mundo numa alternância de tensão e relaxamento, e não poderia ser diferente na música. Da mesma forma é nossa responsabilidade enquanto educadores provocar a tensão e o relaxamento e mostrar como conviver com o soar de instrumentos diferentes: de um contrabaixo realçando as notas graves do violão até uma voz cuja performance diferencia-se daquela da flauta, ou ainda, como dois tenores podem executar linhas diferentes para uma mesma canção.
Percebam que nós não ensinamos a tocar os instrumentos, nossa ocupação é com uma filosofia de arranjos e conceitos musicais. Nós desmentimos que rap é coisa de pobre e funk, de puta; que rock é música de macho e “boiola” ouve pop. Quando nos recusamos a ouvir esses gêneros, nos recusamos a experimentar uma arte sem compreender porque ela é tal como ela é. Se a música é ruim porque alguém escutaria? Porque música, assim como educação, não é sobre bem o mal, certo ou errado, é de saborear, degustar e provar tudo o que é possível, de abocanhar todas as guloseimas.
Não é do meu interesse dizer para uma criança como ela deve comer seu doce, no final de tudo apenas perguntarei “O que você achou?”. Caso ela não consiga apreender a comida intervirei com “Quer ajuda? Posso mostrar como eu seguro?”.
Certo estava Sartre: “O inferno são os outros”. Os outros que fazem a cabeça de nossos filhos; os outros que conquistam a vaga na universidade que deveria ser minha; os outros que machucam, deixam-me triste e apontam meus erros; os outros me apequenam, me diminuem; agora entendo que são os outros que não permitem que eu seja quem eu quero ser e quem eu sonhei ser.
O outro quer me ensinar como eu devo tocar minha própria canção: decide a marcação do compasso, o intervalo de notas e todo o resto. Depois pede que eu reproduza. Nossas crianças são obrigadas a isso e nós professores também, mesmo depois de formados.
Aí percebemos que estamos todos falando sobre poder quando nos iludimos achando que somos grandes conhecedores de alguma coisa. Ao dizer que é melhor alterar o compasso para um 4/4 é devido a não acharmos o 3/4 da valsa, conveniente, e pena daqueles que se aventuram numa apresentação pública de um 3/2.
15/8 então é piada! Onde já se viu? Faça na sua casa, ninguém precisa presenciar isso!
Cremos que dançamos a mesma música e que todos deveriam ter uma performance parecida. No fundo, todos gostamos de jazz, que é nada mais que a melhor organização possível das diferenças. Nele são bem-vindos os improvisos, a mudança de tom, instrumentos desrespeitando a métrica da música e tudo o que há de mais diverso. E como é incrível ouvir um show de jazz!
Como já ouvi de um professora querida, numa das aulas de pedagogia, existe uma grande diferença entre um improviso de um bom instrumentista e de alguém que mal conhece seus rudimentos. Como pedagogos, nos dedicamos à teoria musical da educação e ao solfejo, nossa performance não é exata, todavia temos um bom ouvido para saber quando a melodia está desajustada e sabemos corrigi-la. Se não soubermos, temos material para preparar e estudar minuciosamente cada detalhe de uma nova partitura da aula. Caso os alunos não sigam o previsto, conduzimos a apresentação com uma virada de bateria, marcando a transição entre o fim de uma música e o começo de outra. Educação é arte, também é, surpreendam-se, ciência. Antes de dizer que nossa música soa estranho e que deveríamos mudá-la, pense que isto é tão complexo quanto dizer ao físico que a teoria do Big Bang carece de validade para suas proposições e por isso deveria ser abandonada ou reformulada.
Claro que nós não podemos afastá-los, vocês todos, da educação, seria tamanha violência que eu com certeza não receberia meu diploma se afirmasse isto sem ressalvas. Não venham e digam que o que fazemos não presta, venham para compor; queremos instrumentistas, podemos rever passagens na composição para encaixá-los e tornar a música mais bonita, o que não precisamos é de alguém que queira reescrever toda a partitura sem nunca ter tocado uma linha dela. Não queremos ensiná-los a tocar música, apenas temos um estilo e gostaríamos de preservá-lo, vemos que é a forma mais frutífera de musicalizar nossas vidas.
            Para muitos a música parou nos clássicos, como Beethoven, numa época em que a disciplina é importante, rigorosa e valorizada. A música, entanto, continuou transformando-se, vimos coisas maravilhosas surgindo no século XX e ainda hoje nos maravilhamos com sons do nosso tempo.
            Quando falo de pedagogia quero que saibam dessa boniteza toda. Não precisam ter medo de nossa música. Se vocês permitirem ouvir nossos sons perceberão que nossa motivação são sons de reflexão, possibilitando às pessoas levarem suas vidas de forma plena e realizada, a se encontrarem no silêncio das notas e a explorarem a si mesmas em qualquer tom, até sentirem-se satisfeitas com quem se tornaram e com as pessoas que se harmonizam com elas, principalmente as mais dissonantes.
Em algum lugar a dissonância conquista o estado de harmonia, passando a ser agradável. A música não é bonita por natureza, depende da experiência musical de seus ouvintes. Se tudo é música, por mais estranho que pareça, não vejo porque praticarmos tirania contra as dissonâncias, precisamos de tempo para nos emocionarmos com a obra toda, devemos escutá-la até o final, escutar sentindo profundamente todo o peso de cada nota. Toda dissonância é uma harmonia.
O mundo deve ser tão gostoso de se viver nele a ponte de tudo o que experimentamos nele ter um duplo sentido, nunca sabendo se comemos palavras ou falamos comidas, como diria Deleuze, ou ainda, se compomos vidas ou vivemos sonetos.
É difícil compreender a educação, ora ela fala das coisas como se fosse o paraíso agradável do céu ora tudo é um grande inferno destinado sempre às chamas da punição e à crueldade. A educação, como eu faço aqui, tem um pouco dos dois, ela acredita em humanidade e não perde de vista as práticas desumanizantes que atrasam seus objetivos. Citando Carl Jung: “Qualquer árvore que queira tocar os céus precisa ter raízes tão profundas a ponto de tocar os infernos”.
A educação não precisa ser um inferno, mas num momento em que ter poder e certeza constituem armas poderosas, devemos deixá-las de lado, nesse lugarzinho que lhes disseram que se chama céu, e ingressar num inferno que não é exatamente o que dizem por aí, ao contrário, fará de todos nós pessoas mais conscientes e completas em nossas relações, pois na educação temos cautela com a certeza, preferimos o erro como condutor, e o poder é distribuído, isto é, não temos ditadores ou algo que o valha, e por este mesmo motivo não somos nós educadores que mandamos na educação, nós temos ótimas diretrizes e um acervo excepcional de referências, este é o nosso diferencial. A educação fazemos todos e fazemos juntos.
            Nós, pedagogos, nos orgulhamos do que fazemos e nossos objetivos são reais. Tocamos melodias contra a injustiça, a pobreza, o preconceito, a desigualdade, a violência e a barbárie. Não vejo porque não manter-se separados, sem contar que temos um conhecimento valioso que podemos compartilhar com vocês para transformar nossas existências. Queremos fazer do mundo um lugar onde todos queiram viver, por isso nos formamos aqui hoje.

            E encerraria com

Obrigado pela paciência de ouvirem sobre a arte da educação. Boa noite para todos nós, artistas.


Kandisnky, Wassily.   Jaune-Rouge-Bleu, 1925.