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quinta-feira, 14 de junho de 2018

Hana, o anjo e a djin


Num quarto iluminado pela lua crescente, depois de uma discussão séria, esposa e marido oram em desespero, cada um a sua maneira, cada um a seu Deus, para que um milagre amalgame o amor do casal: ela de joelhos ao chão, cotovelos na cama e mãos unidas em frente ao rosto; ele, sobre o tapete, ajoelhado, de cabeça curvada. Atendidas as preces, um anjo de túnica celeste, membros musculosos, asas volumosas e rosto escultural é enviado para a mulher, enquanto uma djin seminua de vestes transparentes sobre o corpo esguio, um véu cobrindo a parte inferior do rosto, com colares e braceletes dourados, ampara o homem.
            “Minha senhora” diz o anjo “em tua doce tristeza, acredito que desejas algo que eu possa dar-lhe”.
            “Rogo-lhe, dá-me o amor de meu marido. O primeiro traiu meu coração, não posso ficar sozinha outra vez. Sem ele sou nada”.
            “Pois bem, toma aqui esta semente que trago nas flores de meus cabelos. Coma-a junto com teu marido num campo de girassóis e garanto que serás mais feliz”.
            Neste mesmo instante a djin conversa com o homem.
            “Vejo que estás em sofrimento, deveria alguém passar por tamanha confusão?”.
            “Ó djin, que sei eu? Apenas liberta-me desta tortura que é o que sinto”.
            “Neste caso, fica de jejum por uma semana. No início do oitavo dia dá do teu leite a tua mulher”.
            Assim, o anjo e a djin desaparecem. O homem jejuou por uma semana inteira. Sentia-se renovado. No oitavo dia encontra sua esposa no campo de girassóis atrás de seu humilde lar, ela lhe apresenta a semente da flor que crescia na cabeça do anjo. Numa contagem regressiva dada pela mulher, as sementes são ingeridas. Seus olhos castanhos encontram-se acidentalmente. Seus corpos diminuem tanto a distância entre eles que chegam a sublimar-se um no outro. Às provas do amor louco cedem seus desejos à estranheza da vida. Nesse ínterim, ele derrama nela sua mais absoluta substância. Ela, resoluta, aceita o calor preenchê-la. Os girassóis ao redor, comovidos com o acontecimento, balançavam seus caules para acariciar o casal. Sete meses depois, nasce uma menina de cabelos da cor de girassóis e olhos lunares, cujo nome vem a ser Hana. A criança cresce saudável, destemida e feliz. 
Um dia, no aniversário de sete anos da filha, a família põe-se a conversar sobre as virtudes as .virtudes dela.
            “Se não fosse minha djin” dizia o pai “nossa filha não teria os olhos tão lindos e vida tão boa”.
            “Disto não há como discordar” concorda a mãe “mas tão belos cabelos e forte atitude só podem ser dons angelicais”.
            “Bom, digamos que isto pouco importa mundo a fora, onde deverá estar coberta dos pés à cabeça e demonstrar obediência”.
            “Mas que cabeça essa! Quem algum dia sonhou em cobrir tamanha beleza e subsumir toda esta vontade divina a costumes rigorosos? Deverá ter modos, isto sim, mas torná-la-ia uma aberração ao enfiar-lhe panos desnecessariamente”.
            “Acredito que não raciocinas direito, portanto, presta atenção: a virtude que nossa filha carrega é do tipo mais impressionante, será necessário escondê-la dos olhos maliciosos, daqueles que desejam ter da beleza dela e da vontade que carrega. Garanto que estas coisas ruins acontecem o tempo todo, seria grave permitir que lhe fosse tirado todo o dom de seu nascimento”.
            “Mais uma vez, só mantenho acordos convosco, não posso ignorar que além dos muros de nosso lar existem experiências pavorosas para uma criança, porém, não seria a virtude que estaria sendo tomada dela caso este mal aconteça, será apenas sua graça e inocência, que nada tem a ver com a beleza e a vontade”.
            A conversa continuou até tornar-se uma discussão tão feia quanto aquela que os levou a convocar o anjo e a djin. Hana escutava tudo atentamente, sabia mais do que sua mãe e seu pai imaginavam, mas se manteve silenciosa durante toda a situação. Em algum momento seu pai investiu contra sua mãe num surto de fúria, daqueles que fazem as pernas de qualquer pessoa tremer de medo. Sua mãe alcançou a faca no armário, também assustada, mas com olhar determinado, apontava a lâmina de brilho opaco para o marido. Travava-se um impasse entre eles, o qual foi prolongado através de xingamentos, baixarias e insinuações de trazer os sentimentos a flor da pele.
            Hana corre com medo para seu quarto iluminado a luz de velas. Agarra o tapete de seu pai e faz a oração que sua mãe lhe ensinou. Milagrosamente aparecem o anjo e a djin para socorrê-la.
            “Ajudem-me, mamãe e papai estão brigando de uma forma que nunca vi antes, alguém pode machucar-se! Acabem com isso”.
            “Minha querida” diz o anjo “acredito que isto seja impossível, visto que nenhum deles deseja a paz do outro”.
            “Portanto” continua a djin “você seria capaz de escolher entre um de teus criadores para salvá-lo da violência de seu cônjuge?”.
            “Claro, seria capaz de qualquer coisa para dissipar meus medos!”.
            “Então, toma este presente” diz o anjo ao transformar as unhas da criança em garras enormes e afiadas como as de um lobo “deverás usá-la para banir todo o mal que te aflige”.
            “Eu serei mais generosa” interrompeu a djin fazendo crescer dentes gigantescos e serrilhados na boca de Hana, ficavam a mostra o tempo todo, eram assustadores como suas garras “Isto te servirá para comer do espírito bom que reside o corpo que destroçarás”.
            “Mas lembra-te” bradou o anjo “Não deverás tirar a vida de sua mãe e de teu pai, deverás escolher sabiamente qual deles deverá sonhar eternamente”.
            “Quebrar esta condição” profere a djin como num sussurro “trará consequências duras demais para uma criança como tu, quereis descobri-las? Creio que não”.
            O anjo e a djin sumiram num piscar de olhos. O fogo da vela crepitava no quarto invadindo os pensamentos de Hana. Suas emoções mais vivas foram amortecidas pelo ímpeto sanguinário trazido pelas dádivas. Furar, cortar, rasgar, desmembrar, despedaçar e estripar eram imagens acolhedoras para a menina. Sem pensar duas vezes, avançou pela casa em direção ao pai. Com a surpresa a seu favor, perfurou-o com as garras para abocanhá-lo em seguida, triturou-o com seus dentes. Ao engoli-lo sentiu o sangue ferroso descer da língua para a garganta, depois para o estômago. Sentiu enjoo. Não imaginara que este gosto horrível pudesse ser o de seu pai. Ponderou por um instante se o sabor correspondia à bondade da pessoa. Não tinha certeza.
            A mãe, sem reconhecer a filha, foi tomada de espanto. Hana chamou pela mãe, ela apavorou-se e correu para abrir a janela para tentar escapar. A menina chamou outra vez pela mãe, que respondeu com meio corpo dentro da casa e a outra metade fora da casa “Mentes para mim! Minha pequena não possui esses dentes e estas garras, fostes enviada pelo demônio. Quem não garante que tu engolistes minha pobre criança?”. Os insultos movidas pela desconfiança continuaram, Hana não suportava ouvi-los e foi encontro a mãe para chorar em seu colo. A mulher, ouvindo grunhidos sinistros ao invés do choro da filha transformada, desfere um golpe com a faca, cravando-a no ombro esquerdo da menina. Ela urrou de dor. Toda sua melancolia virou fúria incontrolável. Decapitou a mãe com um único movimento de garras. Em seguida devorou o corpo dela, dessa vez mais lentamente do que fizera com o pai. A cabeça foi a última parte a ser mastigada. A mãe também possuía um gosto ruim de sangue, não sabia o que pensar disso.
            Ventos sibilantes penetraram a janela com a luz da lua crescente acompanhando o voo do anjo e da djin casa adentro. Desta vez foi a djin que falou primeiro.
            “Como te advertimos, não deveria haver matado a ambos, agora quem lhe dará de comer e de beber? Quem afastará os fantasmas e todos os males que vem de fora da casa? Quem a instruirá nos ofícios da leitura e da álgebra? Quem tornar-te-á adulta neste mundo frígido? Que pensastes que fosse acontecer?”
            “Eu fiz o que me foi mandado” defendeu-se Hana “Tive de proteger-me, estava em perigo!”.
            “As garras e os dentes serviam a um único propósito” retorquiu o anjo “descartar sua dor, mas pela dor fostes tomada, agora deves sofrer pelo que fizestes, estás condenada a viver como um animal para sempre. Não haverá nada a ser ensinado daqui em diante, pois tudo o que necessitas está dentro de vós, sente vossa natureza apossar-se de quem fostes até agora para cair no esquecimento de si mesma”.
            “Perderei as memórias que tenho do amor de meus pais?” Hana perguntou assustada “Sinto-os tão vivos dentro de mim, de uma forma esquisita, mas estão aqui, posso senti-los, estão comigo, não morreram!”.
            “Como isto seria suficiente para manter-te viva?” pergunta a djin.
            “Poderás repetir isso quantas vezes quiser, isto não muda em nada a maldição que carregas por merecer” diz o anjo.
            Hana chorava compulsivamente. Ao tentar secar as lágrimas cortou parte de seu rosto, o que lhe traria uma enorme cicatriz. Os dentes não faziam mais que torná-la assustadora, o que viria a impedir que outras pessoas aproximassem-se dela. Não era mais humana. Hana deixa o lar para aventurar-se alhures, com o tempo passou a caminhar

sobre os quatro membros, deixou os pelos do corpo crescer, comia outros animais e uivava para as famílias mais felizes. Não demorou para começar a invadir as casas dessas famílias para saciar sua dor com o sangue das vítimas, devorando os corpos para guardar consigo algo de amor.
            O lar antigo de Hana também se animalizava ao ser tomado por gramíneas, cipós e pequenos animais, transformou-se para servir de exemplo para todas as pessoas que por ela passavam. Famílias inteiras temiam a história dessa casa. Toda vez que um uivo ressoava na calada da noite, os ossos tremiam de pavor como os de Hana tremeram ao perder o pai e a mãe. Até onde se sabe, nessa região essa história é contada por pais e mães para seus filhos com alguma frequência. Ninguém nunca viu ou ouviu anjos ou djins, apesar de acreditarem profundamente neles. O que interessa é que o espírito selvagem de Hana corre livre por entre nós e algumas famílias, e não são poucas, rezam pela proteção contra o mal que ela representa, às vezes usando dos rituais mais esdrúxulos que alguém poderia imaginar.


Janela com árvores da floresta à noite, lua crescente. Autoria de Katja87.