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quinta-feira, 28 de abril de 2016

Cotas e capital cultural

Antes de emitir qualquer valor, recomendo a visualização do vídeo abaixo para dar prosseguimento ao diálogo.


Realizada a pré-condição, gostaria de instaurar a dinâmica do tempo e de acontecimentos passados sobre o nosso presente e as políticas afirmativas.
        
Quando se afirma que as cotas são uma compensação histórica, pode não ser visível e até não fazer sentido de como uma população que vive os dias atuais irá se beneficiar de algo que aconteceu há tempos passados. Existem cotas para negros, mas não existe mais escravidão, por exemplo. As pessoas podem participar de espaços de convivências (escolas, hospitais, universidades, praças, shoppings, cinema, mercado, ônibus) e afirmarem seu direito de ocupar tais espaços, principalmente os espaços públicos. Mesmo alguns espaços privados (escolas, mercados, hospitais, shoppings, por exemplo) não impedem o uso de seus espaços e serviços pela cor, identidade, gênero, familiaridade com a linguagem ou qualquer diferença subjetiva entre as pessoas, mas por particularidades objetivas, como o capital econômico (dinheiro) que paga esse ou aquele serviço naquele espaço. Pensando por esse lado, o capital (de Marx) é o motivo de todas as desigualdades e que se faça a luta de classes!

Como eu disse, pode não parecer óbvio, mas a nossa realidade é tal como a conhecemos por uma trajetória histórica, ou seja, construída pelo tempo. E não seria o tempo, essa noção abstrata e imaterial, com sua passagem e períodos de duração, responsável por condenar um grupo de pessoas ao acaso (como os negros e índios) ao domínio de outras pessoas (europeus). O tempo apenas transporta os eventos e suas consequências entre os espaços. As pessoas são agentes que desfrutam de uma força transformadora, chamada trabalho, capaz de mudar a realidade de acordo com sua ação. Se um grupo de europeus, algum dia, como consta em nossos livros de história, aplicou um trabalho com viés de dominação capaz de subjugar grupos negros e indígenas a seus interesses, temos a realidade de povos e civilizações transformadas por uma força externa a seus interesses e vontades.
            
O ar de dominação segue uma matriz de comportamento que tende a menosprezar, depreciar, diminuir e solapar o dominado. Esse comportamento pode ou não ser consciente, e tende a naturalizar-se, ou seja, tornar-se comum, ordinário, normal, por isso, natural. Sem contar que o dominante aplica uma força privilegiada (aos olhos do dominante) sobre o dominado, o que lhe traz uma infeliz concepção de status - uma classificação valorativa. Durante anos utilizando o trabalho do escravo, o senhor mantém o pensamento classificatório, acredita nele e interioriza-o para si. Assim sendo, passa a formar estruturas de pensamento que condicionam seu comportamento, já sensibilizadas na sua terra natal por ideologias que o faziam sentir-se numa missão, no direito ou no dever de fazer o que faz. Quando a estrutura forma-se, ela está agindo ao nível do pensamento, que adquire, segundo Pierre Bourdieu, um habitus - disposições psíquicas - que governará suas condutas e tende a se reproduzir. 
            
Poderíamos simplesmente dizer que um habitus é resultado de seu tempo e permanece nele. Essa interpretação torna-se equivocada quando o tempo não é apenas a passagem dos segundos, mas também a duração dos eventos, e assim, a duração da dominação. Quanto mais o tempo passa maior são as marcas que os agentes inscrevem nos espaços e nos corpos. Não é apenas o senhor que forma um habitus, os escravos também. O habitus não se traduz naquilo que as coisas podem ser, não evidencia potencialidades de mudança, mas situações de acomodação de um estilo de vida ao pensamento. O escravo pode mostrar-se intolerante ao senhor, mas o habitus que se forma é exatamente o de alguém que não quer ser inferior. Antes, o escravo que era apenas um andarilho de suas terras, passa a sentir de forma nua e crua a inferioridade e deve acrescentá-la ao seu vocabulário, pois alguém quer mostrar-se mais forte que ele. Os anos passam, e é uma derrota que curva o escravo, a inferioridade; ele quer libertar-se, mas já existem aqueles que adotaram o habitus servil. Aos poucos o pensamento passa a ser resultado não apenas de vontades, ele será também fruto do ambiente e das forças que admoestam este pensamento. Com a realidade tão transformada, as convicções se alteram, pode até existir um desejo de libertação, só que o habitus pode fazê-lo parecer fantasia.
            
O tempo carrega todas essas marcas pelos habitus nos corpos; são valores, crenças, sonhos, desejos e linguagens que formam esses corpos, eles são, a um momento, a constituição desses sujeitos. Mesmo com a libertação desses escravos - graças à economia mundial e não ao semblante caridoso da princesa -, eles ainda são recusados dentro da sociedade legítima, composta de não-negros. A esfera social desta época cria seus costumes, juízos e cultura, são eles parâmetros para afirmarem quem pode ou não participar dessa nova sociedade sem escravidão que é na verdade uma sociedade com marcas de escravidão. Se as marcas prevalecem, o funcionamento dos antigos habitus também prevalecem, assim, não basta mudanças jurídicas para os escravos serem inseridos novamente na sociedade. O habitus está presente tanto nos negros e índios (que sentiram uma força que desmoralizou suas vontades) quanto nos não-negros (que não deixaram de acreditar nessa força de controle que deveriam imprimir nos negros e índios). As classificações denotam a legitimidade que um grupo ou classe possui em relação a algo em detrimento da cultura de que são portadores; os escravos não são de nenhuma cultura legítima, pois sua cultura é subversiva à cultura dos senhores de engenho. É por esta razão que chamo o que seriam os brancos de não-negros, uma vez que poderiam ser classificados como não-escravos; o importante é que eles não possuem a mesma cultura que seus inferiores. Trata-se de um jogo social que evidencia as diferenças e utiliza-as para consagrar ou profanar um grupo ou classe, sendo que não são todos que participam da elaboração deste jogo. Ele é imposto e o habitus cumpre a função de que alguns iniciem as jogadas, que pedem contrajogadas e assim por diante. A verdade é que é um jogo apenas para alguns, pois não são todos que possuem escolhas de fazer jogadas, alguns (escravos) se submetem às jogadas de quem está decidindo continuar o jogo (o dominante que se utiliza da força), de quem reduz as possibilidades de jogadas do seu adversário a jogadas medíocres. E o jogo, pode-se dizer, é totalmente controlado e possui resultados previsíveis (ainda que seja um jogo inconsciente).
          
Entretanto, o habitus não perdura para sempre e não se reproduz sem cessar. Segundo Bourdieu, existe um momento, denominado, hysteresis, em que o habitus não se adequa as estruturas do campo social ou às classificações vigentes para dar continuidade ao jogo; as disposições do corpo e do pensamento encontram desacordos na sua reprodução com o estilo de vida exigido e pede reformulações estruturais, transformações na ordem das coisas. Chega uma ora que o habitus cessa. O problema é que não é previsível quando a hysteresis torna o habitus insustentável. Ou, quando que o escravo deixará de ter o habitus servil para constituir outro habitus.
            
E as cotas? Elas são resultados de compensação de um tempo que transporta esse habitus, não exatamente o mesmo habitus, mas uma adequação aos estilos legítimos, é uma compensação às marcas. A meritocracia não é um ponto válido de parabenização às universidades, pois ela não prevê o habitus incursando os corpos. Não pode-se falar de igualdade de oportunidades quando um corpo e sua mente sentem desigualmente um tempo formador de bons gostos, linguagem, comportamento, vontades; o tempo que perpetua efeitos e delimita estados é o habitus.
           
Onde está a maioria negra dentro das classificações econômicas: não estão nas classes economicamente abastadas, existem exceções, mas elas não são a regra. O próprio Bourdieu mostra em seu livro A Reprodução [1978, em coautoria com Jean-Claude Passeron] como que o capital cultural (esse capital adquirido com o tempo através de suas relações com o mundo em que se vive e impossível de ser explorado por alguém) acompanha o sucesso escolar do aluno no sistema de ensino francês (que é bem idêntico ao do brasileiro e de muitos países). O capital cultural é adquirido do mundo com o qual você interage. Viver num condomínio fechado (que sugere segurança), investir capital econômico em viagens para fora do país, ter um ciclo de amizades que apreciam a boa música (capital social seguido de capital simbólico), ter um contato próximo com  língua culta (e outras línguas) são formas de se adquirir capital cultural que se diferem de um indivíduo que vive num bairro violento, de pouco capital econômico na família (que insuficiente até para comprar livros, ótimas formas de apropriar-se de capital cultural), que não seguem a norma culta da língua e apreciam a música subversiva (só para citar um clichê: o funk). Os vestibulares não são perguntas neutras, elas privilegiam aqueles que detém capital cultural legítimo. As apreciações que a criança faz durante sua trajetória social definem seu ingresso numa universidade pública. As questões de inglês são facilmente respondidas por quem teve contato com ela numa viagem aos Estados Unidos, à Inglaterra ou países que fazem uso da língua. A história barroca do Brasil torna-se menos massante ao visitar as igrejas na Bahia e pontos históricos (não é de se espantar, pois utilizamos os sentidos para nos apropriar de forma mais adequada daquela realidade que vivemos naquele momento). Questões sobre temas atuais podem ser conversadas com alguém que vive aquela situação (questões que fazem menção a uma crise hídrica no Estado de São Paulo pode ser sentida mais intensamente pelos paulistas do que por uma paraense). A geografia do nordeste não é difícil de ser apreendida para quem vive no nordeste brasileiro e a neve e a urbanização não é estranha para um novaiorquino.
         
Meritocracia não faz sentido num país onde a educação é um direito de todos os cidadãos e corrobora para a construção da dignidade (resposta para os 18: 55 minutos até 19:30 minutos). As cotas são uma forma de evitar a exclusão de alguns grupos que possuem um capital cultural menos privilegiado, que são portadores de um habitus que leva o indivíduo a acreditar que a universidade não é uma realidade possível, e as situações de fracasso escolar retificam esse habitus. As igualdades de oportunidades não existem quando a apropriação do capital cultural legítimo acontece de forma desigual. Mais importante do que se apropriar de capital cultural legítimo é transformar o currículo que possui fetiches por essa cultura estabelecida e pretende excluir outras formas de cultura. Por mais que as universidades públicas não sejam a correção das defasagens na trajetória social de quem usa as cotas, elas são espaços bem organizados que permitem experienciar e conviver com um novo tipo de capital cultural e somar seu capital cultural ao do novo espaço, e quando digo isso penso nas diversas bandeiras sendo levantadas com as mais diversas representações de segmentos sociais.
            
A ideia de capital cultural aplicado às cotas evoca dois cenários questionáveis: brancos que vivem em condições que não privilegiam a cultura legítima poderiam fazer uso de cotas; e negros que possuem condições de se apropriar da boa cultura não precisariam das cotas. O raciocínio pode ser consistente, mas não é agradável quando se pensa que compensação histórica é uma ideia de justiça com relação a um povo que sofreu injustiças no passado, que é como ela é tratada hoje em dia. Esquece-se do meio em que a criança cresce, as estruturas mentais que ela forma, as disposições do corpo, a apreciação que faz às coisas, como ela se relaciona com o conhecimento e com qual conhecimento. Isto é mais significativo ao falar de cotas para universidade do que da cor de pele. Não se herdam marcas pelos genes, vive-se as marcas e a partir delas atribuímos significação a todas elas, e é isto que define a existência. E não seriam as cotas uma oportunidade a determinadas formas de existir (estilos de vida) poderem desfrutar de outras experiências e mudar seu habitus? A meu ver, as cotas não fazem sentido para pessoas com estereótipo determinado (ser negro ou índio), mas sim a pessoas que vivem relações desfavoráveis a nível econômico, social, cultural e simbólico (construção de sentido propriamente dito pelas relações e outras formas de capitais já citadas), que são os quatro tipos de capitais que Bourdieu leva em conta em sua análise. Assim, a equiparação social e a igualdade para ter liberdade que o Pirula menciona aos 6:40 minutos do vídeo, junto com a ideia de minoria sociológica, faz jus ao sistema de cotas, e, ao mesmo tempo, não torna inconsistente falar de compensação histórica.
                 
Relacionar o diploma que se adquire com um trabalho melhor, como Pirula aponta no vídeo (10:10 minutos) é resultado de habitus burguês, e Bourdieu trata desse assunto mais extensamente quando aborda o capital simbólico que perpassa o diploma, a forma institucionalizada desse capital simbólico, que serve apenas para ser reconhecido pelos outros. É a ideia de que você não aprendeu algo porque têm um diploma, e o diploma não justifica qualquer tipo de qualificação, apreender um conteúdo pelas estruturas construídas no processo de educação para se adquirir o diploma é que faz diferença, de outra forma, o diploma é capital institucionalizado que aprofunda as relações de classificação (diplomolatria, termo que Pirula usa no vídeo).
              
Aos 11:16 minutos, Pirula diz uma série de estabelecimentos comerciais que um trabalhador pode ter sem possuir um diploma, e ao fazê-lo me lembra muito algo que Ivan Illich fala em seu livro Sociedade sem Escolas [1971] que é o sacrifício ao qual as pessoas em período escolar estão sujeitas, principalmente aos mais pobres, por serem marginalizados num sistema que elas consagram, evadindo a escola e tornando-se não diplomadas. Aí que as marcas de distinção entre diplomados e não diplomados ganha força e a teoria de Bourdieu sobre os sistemas escolares é reforçada. 
         
Illich e Pirula confluem no ponto em que existe uma diferenciação de funções que é exaltada pelo diploma (produto de um mercado do sistema escolar) e que deveria acabar, terminando, assim, com a desigualdade escolar e algumas desigualdades sociais. Só que Illich pretende que a escola deixe de ser uma instituição e de atestar qual conhecimento é legítimo (o que pode ser considerado heresia pelos fiéis que vivem a instituição escolar, principalmente aqueles que desfrutam de cargos eclesiásticos nela) e que pode tornar-se uma possível marca de distinção, nos termos de Bourdieu. E diferente de Pirula, Bourdieu e Illich veem que a população pobre espera da escola uma forma escapar da pobreza, enquanto as demais classes econômicas tentam ascender ou manter-se, e que, por isso, não importa o valor jurídico que ela têm (em termos de pesquisa, ensino e extensão, como explícito na Constituição Federal de 88), mas um valor simbólico construído no campo social daqueles que vivem a pobreza e não se sentem dignos vivendo naquele meio, pois sabem que podem conquistar condições melhores. Me parece que Pirula fala de ganância (e posso estar enganado) quando menciona fazer universidade para conseguir um trabalho que dê dinheiro. Seria interessante considerar que as pessoas não estão satisfeitas com suas funções, salários e em como são vistos por outros segmentos da população, ainda mais quando são depreciados por serem borracheiros, garis, atendentes de caixa, frentistas de posto de gasolina, e outras atividades mal vistas socialmente, que não fazem referência somente a um trabalho, mas a espaços sociais possíveis, seguidos de atividades culturais possíveis, e no final de contas estamos falando de possibilidades múltiplas e indeterminadas de formar um determinado tipo de pensamento.
          
O objetivo principal foi demonstrar como a concepção histórica das cotas possui relevância por se tratar de um tempo específico que se desloca a nível de pensamento na forma de habitus e perpetuado pelo ensino (inconsciente) desse habitus (estruturas de pensamento) à outras gerações. Sem contar a autonomia dos diversos campos sociais para gerar distinções, provocando os jogos sociais e novos habitus, ou seja, novas competições por prêmios, medalhas, títulos, conquistas (capital simbólico), enfim, competição, em geral, que é fator de desigualdades quando se pensa em medidas iguais para todos e não estão todos devidamente preparados para a competição. Também não é o intuito insistir que deve haver competição, porém, deve-se reconhecer que ela acontece de forma natural nos dias atuais.
          
Pirula afirma que ele não é contra políticas afirmativas. Acho importante salientar que as políticas afirmativas levam em conta a história porque ela faz diferença para algumas pessoas. Podemos não viver no mesmo tempo e contexto do escravos, mas não precisamos vivê-la completamente para sermos marcados por ela. Um trauma não tem o tempo como pré-requisito para marcar a psique, da mesma forma, traços remanescentes da história podem ser o suficiente para produzir efeitos similares, ainda que reinventados.
           
Que isto que escrevo seja levado como um diálogo, não como uma oposição, juízo contrário, um regime de verdade, mas como outra característica de uma mesma realidade. Um tempo outro. Um espaço outro. Uma expressão outra de um habitus e seus capitais.

Referências:

BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. 7. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

ILLICH, Ivan. Sociedade sem escolas. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 1985.