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segunda-feira, 27 de março de 2017

O mundo adulto e sua perseverança sobre a infância


Me proponho a expor minhas impressões sobre o texto de Melanie Klein, Nosso mundo adulto e suas raízes na infância (1959), e considero relevante relatar um caso vivido por mim que me ajuda a compreender a importância do trabalho dela e de outros psicanalistas.
            Um dia, conversava com um amigo, que de ignorante (no seu sentido geral) ou desinformado não possui nada, enquanto caminhávamos de volta para casa. Neste retorno ao lar, comentei sobre a aula de estágio que permitiu meu encontro com a Melanie Klein e de algo que viria a incomodar esse amigo meu: os sentimentos de amor-ódio sentidos pela criança em relação ao mundo.
            Talvez o maior incômodo foram as palavras com as quais descrevi o universo infantil, algumas com base na autora, por exemplo: voraz, destruidora, devoradora. O encontro de meu amigo com a nova perspectiva é a inflexão “Essa mulher deve ter tido uma péssima infância”, quase como se utilizasse os conceitos de introjeção/projeção da própria autora para tornar inconsistente sua teoria. Conceitos que ele desconhecia.
            O incômodo dele suscita meu incômodo para com sua atitude precipitada. Aparentemente a delicadeza, fragilidade e inocência da criança inviabilizam a força de vontade demonstrada pelo conceito de ódio, uma atitude de sobrevivência em relação ao mundo hostil, demonstrado por Melanie Klein.
            Como a própria autora sugere, existem bases sociais e inatas para compreendermos a psique, ou seja, existem construções dadas pela convivência e pela experiência que podem ser demonstrados pela construção da personalidade (e seria abominável pensar a personalidade como predeterminada, já que configura identidade) e outras com seu teor biológico, previamente definidos, cuja constatação pode ser observada pelo comportamento dos bebês, como o fez Melanie Klein. Em outras palavras, por um lado somos constituídos de aprendizados e ensinamentos (social/cultural), de outro, a biologia nos preparou para sobreviver a um dado ambiente (provavelmente o mesmo vivido por nossos pais).
            Partindo do conceito de ódio, leitores inadvertidos estranharão essa realidade psíquica da criança. Onde ela aprendeu isso? Por que odiaria gratuitamente as coisas? Aprendeu em lugar nenhum, o ódio é um a priori da pulsão de vida. Ele só não é gratuito por cumprir o propósito de reunir as forças da criança para sobreviver ao mundo que tentam destruí-la, aniquilá-la, desmembrá-la. Por isso ela precisa ser voraz contra o mundo (coisas e/ou pessoas)!
            Estas são considerações de Melanie Klein sobre a possibilidade de uma realidade psíquica da criança. Se a criança sente que o mundo pode matá-la, não há reação mais plausível que a luta pela defesa de sua integridade física. O corpo da criança é ameaçado pelo mundo, nada parece seguro. Se estas coisas são de fato ameaçadoras não importa, pois o real não é um fato, está mais para uma experiência, uma sensação de que algo existe.
            A psicanálise é um enorme movimento de representações, uma vez que o psicanalista pretende chegar à causa de uma neurose, psicose ou outra anormalidade psíquica pedindo ao seu paciente para refletir sobre esse material psíquico (o objetivo do analista), produzindo um novo pensamento, diferente do material psíquico em si. Este novo pensamento deve ser verbalizado, portanto, permitir ser transformado em signo; está à disposição da linguagem, a mais pura amostra da representação, sujeita à incessante formação da identidade e da diferença formada pelas palavras. Como se isto não bastasse, o psicanalista realizará o trabalho de interpretar a representação da representação; seu material é a tradução da tradução.
            Como se isto não fosse complicação suficiente, o analista está na condição de utilizar o sistema de representações aprendido para interpretar a representação da representação. Ou ainda, num momento de reflexão, o analista decompõe os signos que ouve em representações sustentadas pelos sentidos que ele atribui às palavras. Sua reflexão é exposta sob o domínio das palavras para o paciente, que obtém a representação (as palavras do analista) da representação (do pensamento do analista) da representação (das palavras do paciente) da representação (do pensamento do paciente sobre o material psíquico). Em resumo, a partir de uma dupla representação o analista interpreta a dupla representação do paciente.
            Como se não bastasse, o material psíquico, constituído por imagens, será mais uma representação, ao nível do não é; pertence ao campo do desconhecido, fora do alcance do paciente, que só possui acesso a um material psíquico que é modificado pelos mecanismos de defesa do ego. Paciente e analista devem, através de sucessivas representações, ter a tarefa impossível de alcançar o material psíquico que se traveste para o paciente. Retornando à representação fundamental: quando o paciente reflete sobre si mesmo (1ª representação apresentada), ele, na verdade, reflete sobre uma representação criada por sua psique: o consciente está a mercê do inconsciente.
Este percurso sinuoso e confuso derivado do Foucault de As Palavras e as Coisas, ao problematizar o uso da linguagem para descrever a natureza em si, foi a forma que encontrei de expandir outra proposição de Melanie Klein: mundo interno/mundo externo. A criança introjeta o mundo externo, recriando-o dentro de si a partir de suas percepções; de forma contrária, ela também projeta suas próprias sensações sobre suas vivências e experiências no mundo externo.
            O corpo é o limite entre o mundo de dentro (interno) e o mundo de fora (externo). Este demorado intercurso permite um retorno à questão inicial: o olhar obtido sobre a infância. Qualquer discurso deve ser interpretado como aquilo que eu penso sobre o mundo fora de mim. Não interessa mais saber quantas representações existem, poderiam ser centenas ou uma, o ponto é que a objetividade do mundo, determinada sob o discurso do isto é, é ressignificada como uma visão subjetiva de mundo, o discurso desta vez é isto é para mim.
            Tudo o que se diz sobre a criança e a infância encontra o isto é para mim, ainda mais quando a criança não produz discurso sobre si mesma. O psicanalista, assim como o pedagogo, são produtores de discursos sem excluir a possibilidade de objetividade, ao contrário de um olhar mahayano sobre um mundo que não existe fora de nós, pura ilusão.
            O psicanalista, o pedagogo e os demais adultos tentam inferir como é o mundo interno da criança a partir do que introjetam dela enquanto mundo externo, produzindo novos sentidos ou reafirmando aqueles já consolidados em seu mundo interno, projetando-os novamente como material sujeito à interpretação ao mundo externo.
            O que Melanie Klein fez, assim como Freud, foi construir uma teoria psíquica consistente que não fosse apenas projeções internas, mas recursos interpretativos sobre um mundo que, de forma geral, não se mostra sempre acolhedor ou receptivo para denotar como o mundo interno da criança não é constituído apenas de coisas bonitas, felizes, prazerosas, reconfortantes ou aconchegantes como seria um mundo de pôneis, pirulitos, arco-íris, fadas, duendes e amor. A criança pode viver sensações desagradáveis, sentir-se ansiosa, ter raiva, querer que as coisas que a atormentam simplesmente desapareçam, que os infortúnios sejam destruídos para que ela possa ficar bem novamente, tudo isto sob a explicação de que a criança possui a capacidade inata de odiar.
            Isto está distante da proposição “O homem é o lobo do homem”, de Hobbes. Se fosse verdade, indicaria que não somos capazes de amar, outra capacidade inata da criança descrita por Melanie Klein, sentida nos momentos em que a criança sente-se segura nos braços da mãe, quando ela não se sente despedaçada pelo mundo de fora. Quando ela sente segurança, prazer, conforto, ela é capaz de amar.
            A agressividade, movida pelo ódio, é produto e resposta a um mundo percebido como hostil pela criança. Um psicanalista uma vez me disse que a psicologia da Melanie Klein é sangrenta, que a pulsão de morte é a primeira experiência psíquica da criança. O mundo é ameaçador, ele pode me destruir; preciso de um lugar seguro, senão posso morrer. E me parece verdadeiro, ainda que não conheça tão bem a psicanálise dela.
            O ódio, entretanto, não impede a criança de amar, de ser carinhosa, confiante ou grata. O que importa é não achar que a inveja ou a ansiedade são anormais na criança, ou mesmo sua força de vontade para tomar e destruir as coisas e as pessoas, ela participa do desenvolvimento psíquico da criança, como investigou Melanie Klein.
            A (in)capacidade das crianças ou mesmo dos adultos de serem generosos e gratos possui raízes na perseverança do universo adulto sobre a infância pelo discurso. A meu ver, os adultos, sem os instrumentos ou meios para questionar ou compreender o universo infantil, permitem-se regular o comportamento infantil segundo o que eles consideram ser o desenvolvimento adequado, as experiências apropriadas e corretas, os desvios de conduta ou atitudes antinaturais.
            A masturbação infantil, bem como grande parte das ações infantis, são significadas pelos adultos a partir de suas próprias experiências, como se os fins masturbatórios da criança e do adulto fossem os mesmos ou pudessem ser generalizados sob uma mesmo tipo de prazer, quando, em realidade, encontra diferentes nuances antes da fase genital e a partir dela, a ver com o direcionamento da libido. No caso da criança (fases oral e anal) sua energia pulsional é direcionada para si mesma, enquanto na fase genital a libido começa a ser conduzida para um objeto externo, reconhecido como objeto de desejo.



            Os adultos são influentes na formação das crianças, que por sua vez tiveram sua formação influenciada por outros adultos e assim sucessivamente até remontar as origens das sociedades. Existem posturas educativas, entretanto, que não são desejáveis para nossas crianças. A infância, apesar de ser constituídas por práticas culturais significadas pelas crianças e comunicadas entre elas, sofre uma invasão do mundo adulto-regulador/condenador/normatizador/moralista ao projetar no mundo infantil suas próprias vivências como se fossem verdadeiras ou corrigir as ações das crianças a partir das falhas.
            O mundo infantil requer empatia, possibilidades de ser introjetado pelos adultos. A educação e a psicanálise encontram uma tarefa difícil de produzir conhecimento a partir de relações que não podem ser classificadas como verdadeiras ou falsas/certas ou erradas. É inevitável que utilizemos palavras e outros recursos representativos para criar discursos sobre a infância, as práticas infantis e sua psique, embora seja importante estender esta rasura a qualquer sistema linguístico dotado de signos.
            O paraíso infantil é um discurso normal que distancia o entendimento dos adultos sobre a realidade psíquica das crianças, cuja ambiguidade amor/ódio encontra sua força produtiva nos encontros agradáveis e desagradáveis com o mundo. O que importa, segundo Melanie Klein não é que a criança sinta algo ou que esta sensação (como comportamentos depressivos, esquizo-paranoides, neuróticos) aconteçam,  satisfação e frustração acompanham todas as etapas do desenvolvimento humano (também as relações de amor e ódio), o preocupante é quando alguma sensação ou comportamento impede outros tipos de relações.
            O amor não significa plena construção nem o ódio pura destruição, eles são necessários em diferentes contextos e ambos alavancam a vivacidade dos indivíduos biopsicossociais que somos (similar à dicotomia amor/medo em nosso artigo Donnie Darko e a juventude aqui). A infância é geralmente reconhecida a partir de um sentimento de proteção e cuidado, por outro lado, isto não significa um a priori, os valores atrelados a ela são decorrentes do olhar e do discurso dos adultos, circulando entre si imagens de uma infância que carece de poder responder à altura utilizando as mesmas representações dos mais velhos.
            Assim, conversei um bom tempo com meu amigo mostrando a importância de descontruir um imaginário perigoso à infância que a associa a um ser mal, cruel e com instintos assassinos, pois tem nada a ver com isso. Nem tudo o que pensa o adulto sobre a criança é verdade e nem tudo o que a criança faz diante do adulto pode ser apreendido por sua razão. E livrar-se da psicanálise ou de teorias do desenvolvimento por sua finitude ou limitação investigativa é assumir que todo conhecimento criado e produzido sobre as crianças é capaz de alcançar a realidade psíquica delas tal como ela é, como se o mundo interno pudesse igualar-se ao mundo externo, impossível de ser alcançado sem ferir qualquer processo de diferenciação, identificação e subjetivação.     
            Se o lado de dentro e o lado de fora fossem equivalentes, acredito que não haveria alteridade, pois não existiria o outro, seria tudo idêntico, repetição incessante do Mesmo. Não haveria nada para conhecer ou para ser vivido, já que a vida, na compreensão humana, requer situações de estabilidade e instabilidade provocadas pelas relações de amor e ódio que a criança estabelece com o mundo. O dito paraíso infantil estabiliza a infância numa eternidade de paz. E quando a criança não sente paz, que fazem esses adultos que creem no paraíso infantil? Ficam assustados? Ficam surpresos? Têm seu sistema de crenças abalado? Fogem?
            A psicanálise contribui, nesse sentido, para o trabalho dos educadores ao representar outra face da realidade infantil. Expõe que a criança não sente o que sentimos, não pensa o que pensamos e não vive as mesmas experiências que nós, adultos. Seu mundo é só seu e de seus pares, com seu próprio sentido, suas próprias vivências, suas ações compartilhadas, suas brincadeiras e aprendizagens. Aos poucos se converte na monstruosa vida adulta regulada, sistematizada e indiferente, com ameaças tão iminentes quanto na infância.

Referências bibliográficas:
FOUCAULT, Michel. I – Capítulo III. Representar. In: As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1999. P. 63-107.

FREUD, Sigmund. II – A sexualidade infantil. In: Um caso de histeria, três ensaios sobre a teoria da sexualidade e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1905. P. 163-195.

KLEIN, Melanie. Nosso mundo adulto e suas raízes na infância (1959). In: Inveja e gratidão e outros trabalhos (1946-1963). Rio de Janeiro: Imago, 1991. P. 280-297. 

Para mais textos sobre produção de discurso ver: Considerações sobre trainspotting, drogas, liberdade e absurdos (aqui)

Para mais textos sobre mundo interno/mundo externo ver: Avaliação do Outro (aqui) e O Eu e a escrita (aqui)

segunda-feira, 13 de março de 2017

Donnie Darko e a juventude


Prolegôminos

            Reassistindo o filme Donnie Darko (2001), dirigido por Richard Kelly, me deparei com tópicos que podem causar um tremendo mal-estar e parecer bem mórbidos de início. Começarei apresentando os personagens que considero importantes para a discussão (adiantando algumas relações entre Donnie e situações vividas no filme), em seguida discorrerei sobre algumas cenas do filme. Em ambos os casos dialogarei com Foucault e Deleuze sobre poder, identidade e diferença.
            Donald (apelidado de Donnie) Darko é um garoto estranho que se esconde entre seus ombros, anda curvado; possui um olhar medroso; e expressa comentários extremamente inconvenientes. Isto, entretanto, é a imagem que criam dele. Para o protagonista sua postura é a de um escudo contra as ameaças que representam as pessoas, seu olhar pode ser medroso, mas também é observador; e seus comentários são formas de resistência contra um mundo débil e tolo, e poderíamos acrescentar, opressor por tentar torná-lo débil e tolo. Utilizando as palavras da terapeuta dele: “O comportamento agressivo de Donnie, seu distanciamento da realidade, parece ser devido à incapacidade dele de lidar com as forças no mundo que ele considera ameaçadoras”. Ela afirma de Donnie é um esquizoparanoide.
            Como pedagogo, me chama atenção a relação entre Donnie e a escola. De um lado estão as relações entre professores, sendo: A) a professora moralista Kitty e sua idolatria pela autoajuda de Jim Cunningham (personagem acusado de pedófilo nas cenas finais do filme); e B) professor Monnitoff e professora Pomeroy, responsáveis pelas disciplinas de Física e Literatura, serão provocadores e ouvintes de Donnie.
A relação A pode ser abstraída para todas as relações em que os jovens são incapazes de pensar por si mesmos, tratados como crianças, devem ser obedientes e carregam marcas de derrotas deixadas por lutas que nunca escolheram lutar, lutas estas escolhidas por familiares e representantes da escola, um fardo tão grande quanto ser obrigado a servir seu país numa guerra: não há escolha, apenas imposição, e o ponto em comum é que sempre há algo de bom nisso, com certeza não para o estudante-soldado tratado como objeto no campo de batalha da escola.
Na relação B, ainda que hierarquizada (devido ao sistema de fileiras da sala de aula e a autoridade excessiva possuída pelos professores no filme), há um deslocamento do estudante-objeto para o estudante-sujeito, deixam de existir corpos em branco e sem mente (ou que não possuem nada de útil) para surgir (ao menos para a professora Pomeroy) corpos pensantes, ideias rechaçadas pelo autoritarismo, protagonistas de alguma coisa em algum lugar que só os estudantes são capazes de dizer. Como quando ela diz ao diretor, ao ser demitida: tanto ela quanto a direção não compreendem os jovens e estão perdendo todos.  Outras vezes, com o professor Monnitoff, Donnie não é tratado como louco, idiota ou sabe tudo; é alguém curioso, possui dúvidas e uma motivação profunda sobre coisas que ninguém está interessado em saber.
Do outro lado, além da relação com professores, são relações entre colegas que marcam outro aspecto das relações escolares. A disparidade entre Donnie e os colegas surge de sua resistência em ser açambarcado por um mundo mortal, representado por quase todas as pessoas, inclusive colegas da escola. Donnie pode ser considerado uma representação da diferença, ou ainda, da loucura, a sombra da racionalidade e dos ideais modernos de sociedade. Donnie é antipático em suas relações, considero isso um tipo de proteção a sua identidade.
Donnie incorpora o caos como uma brincadeira. Seu caráter caótico mostra-se pela tentativa de afastar as pessoas, de desconcertá-las ou provocar um choque desagradável nelas. E não é diferente nas relações familiares, e talvez, por isso, seja obrigado a participar de sessões de terapia.
Donnie tem amigos. Parece algo superficial e sem importância para ele.
Já Frank é um personagem misterioso, uma fantasia de Donnie trazida do futuro para alertá-lo sobre o fim do mundo. Por ser um coelho, retrata simbolicamente o inesperado, a surpresa de sair da rotina, e seguir o coelho (como faz a Alice do País das Maravilhas) é tomar um rumo não planejado. Aqui, poderá ser confundido com destino ou algo parecido.
Gretchen é cúmplice de Donnie, como ela mesma diz, acha ele estranho, mas é o diz num elogio. Ficar próxima de Donnie faz com que ela compreenda o incompreendido, o que faz bem para ele.
Por fim, a Dona Morte, ou, Roberta Sparrow, escritora do livro que tanto cativa Donnie - A Filosofia da Viagem no Tempo - e a personagem com uma das frases das mais impactantes do filme: cada criatura viva na Terra morre sozinha.

Roberta Sparrow sussurrando sua  frase de solidão no ouvido de Donnie

 
Duplo sentido


            Na primeira aula de Pomeroy, Donnie lança sua interpretação sobre um trecho de The Destructors, de Graham Greene, no qual alguns garotos invadem uma casa e não roubam o dinheiro que encontram no colchão, apenas queimam-no. Nisto o garoto-que-se-esconde-entre-os-ombros fala “Eles [os garotos] dizem logo depois de inundar a casa e deixá-la em pedaços que a destruição é uma forma de criação. Então, o fato de queimarem o dinheiro é irônico. Eles só querem saber o que acontecem quando sacodem o mundo”. Razão que nos faz refletir sobre seu comportamento caótico e destrutivo, de não temer o que desorganiza e desestabiliza porque as coisas não acabam vazias num vácuo, formam-se coisas novas dos destroços. E Donnie completa dizendo “Eles querem mudar as coisas”, trecho que ajuda a compreender o próprio personagem, fazendo-nos pensar não apenas em resistência para manter-se, como para transformar.
            Outro diálogo que expressa essa mesma ideia sobre criação na destruição é quando Donnie acompanha Gretchen para casa e no percurso diz “Bem, estou feliz que a escola tenha inundado hoje”. Gretchen pergunta “Por que?”. Ele responde “Porque nós nunca teríamos essa conversa”.
            As coisas deixam de ser o que são. A ordem sucumbe, existindo outro sistema de organização. Subverte-se, assim, a linha entre amor e medo, expressa por Kitty. Quando Donnie se irrita com ela e diz que é mais complexo é porque a professora põe o amor como força criativa e o medo como força destrutiva, quando, na verdade, Donnie teme o mundo, resiste contra seus impulsos violentos de subsumi-lo e encontra poder para manter sua identidade no medo de perdê-la. O amor, por sua vez, quando quadriculado numa ideia de normalidade (como amar), torna-se destrutivo para uma identidade que ultrapassou essa norma de amor; o medo de Donnie torna-se o amor a si próprio, enquanto seguir o caminho da amorosidade é autodestruição, pois amar é doar-se de forma que os outros mudem o que ele tanto aprecia em si mesmo.
            Nesse duplo sentido que existe entre o medo e o amor, como poderia Donnie marcar um X na Linha Vital para indicar se uma situação é mais negativa ou positiva por estar associada ao medo ou ao amor, respectivamente, se ambos se confundem? “Não se pode dividir as coisas em duas categorias e negar o resto”, contesta Donnie.
            Parece que tudo acontece num grande ensaio deleuziano.


Professora Kitty e a Linha Vital do medo e do amor



Educação para o mundo real

            Repetindo os passos de Durkheim, os mais velhos educam os mais novos a obedecer as regras, preparam-nos para os desafios do mundo real, aquilo que existe em potência não é considerado real, somente imaginação. Como essa educação só acontece por uma hierarquia de saberes, os mais velhos sabem mais que os novos e estão capacitados a instrui-los simplesmente por que sabem algo que eles não sabem: pagar contas, criar filhos, trabalhar e outras tarefas do mundo adulto. Isto abre margem, por meios falaciosos, de afirmar a superioridade dos adultos sobre os jovens em todos os aspectos da vida.
            Os jovens são encarados como um perigo para si mesmos, entregam-se ao medo facilmente e fazem bobagens como fumar um cigarro, transar antes do matrimônio, afastar-se de Deus ou engordar. Existem dispositivos de poder preciosos para tornar os corpos dos adolescentes desconfortáveis, estranhos para si mesmos. Desde a terapeuta de Donnie atestando sua normalidade psíquica até Jim Cunningham apelando para sua patética sabedoria de dizer quando as pessoas sentem medo. Os adultos parecem enxergar a alma dos jovens e estão certos em suas colocações, constrangendo-os e deixando-os desconfortáveis.
            Aceitar todos esses discursos destrutivos ao ego seria ir de encontro à morte. Os jovens, que aprenderam a respeitar os mais velhos, seguem seus conselhos. Se eles apontam o medo, os jovens entendem como isto é prejudicial (compreensão pelos recursos que a ideologia dos adultos oferece), logo, seguem todos os rituais que garantem (dizem que garantem) maior felicidade.
            Donnie é capaz de diferenciar os adultos que agem por má-fé (como Cunningham) ou apenas ignorantes (como Kitty) dos facilitadores (professores Monnitoff e Pomeroy). Isto não faz dele um garoto iluminado, as sessões de terapia tem efeitos na autoimagem de Donnie, fragmentando-a, pelo rótulo de anormal, afinal, se fosse como os outros não precisaria ir para as sessões, percebidos na cena em que pergunta a sua mãe como ela se sente por ter um filho louco. É evidente que isto incomoda Donnie. Não se identifica com os outros, é a mais pura diferença entendida como loucura e medo.
            Possuir identidade é ser capaz de dizer “eu sou”. Se a identidade de Donnie é a loucura e o medo, sua diferença é absorvida por estes regimes de verdade (o poder-saber que emana dos discursos dos mais velhos); passa a ser representada por uma identidade avassaladora da diferença por pautar-se na igualdade dos termos.
            Tudo o que foge à regra/norma é visto como heresia no mundo da ordem conservadora, afronta a ordem natural das coisas, sejam novas ideias, novas palavras, novos costumes, novos hábitos etc.; porque as coisas sempre foram assim, e sempre serão, condenando os jovens a um mundo estagnado nos erros de seus mentores e tutores.
            Os mais velhos falam dos deveres e obrigações dos mais jovens como se falassem de uma lei física: imutável. São prepotentes e duros em suas colocações, mesmo quando não é imposto, como o pai de Donnie, no início do filme, ao criticar a escolha de voto da irmã: “Bem, talvez quando você tiver seu próprio filho que precise usar aparelho e não possa pagar porque metade do salário do seu marido vai para o Governo, você se arrependa”. O que não deixa de ser uma desqualificação do discurso.
            Donnie não se submete, cria controle onde não existia para desestabilizar os normatizadores e subverte a Verdade. Os pontos sobre os quais discorro nesta parte são muito parecidos com Considerações sobre Trainspotting, drogas, liberdade e absurdo (artigo deste blog, aqui). Foucault é um excelente nome para trabalhar temas como resistência, indisciplina, poder e verdade.

Vale a pena existir?

            Nosso mundo privilegia os acertos. Somos condenados quando erramos. Sentimos vergonha de nossos próprios erros. Sentimo-nos menores por errar, somos feridos por eles. Os versos da música Quebrando os Dentes, da banda brasileira Pato Fu, é ilustrativo nesse ponto: “As brigas que ganhei/ Nem um troféu/ Como lembrança/ Pra casa eu levei/ As brigas que perdi/ Estas sim/ Eu nunca esqueci/ Eu nunca esqueci”.
            Os acertos estão reservados aos mais velhos. Os erros, por sua vez, devem ser esquecidos, como se o erro não criasse ou construísse, fosse pura destruição. São corrigidas as posturas, a fala, ações, amizades, pensamentos e amores. O erro deixa de ser aquilo que acompanha a verdade sobre as coisas para ser o motivo que nos distancia de um mundo belo e ideal. A história que não pode ser prevista é substituída por uma razão teleológica; existem coisas “certas” e “erradas”: quanto mais errado estamos, nessa lógica, mais próximos da infelicidade, apenas o acerto nos conduz para um mundo próspero.
            Numa perspectiva marxista básica, agir sobre o mundo é transformá-lo, e transformar o mundo é criar novas ferramentas que nos possibilitam novas formas de agir, por isso, novas formas de pensar nossas ações sobre o mundo; ao mudar o pensamento nos transformamos, assim, narramos etapas de uma história. Como as ações e as interações que elas proporcionam são diversas, os pensamentos podem ser diversos. Se existe uma forma “certa” de agir sobre o mundo, não sabemos como é, mas mesmo se encontrá-la, perceberíamos (nós enquanto humanidade) em unanimidade que aquele é o modo certo de agir? Pensamentos teleológicos tendem a ser rejeitados pelas ciências por incentivarem a ideia de destino, de que as coisas estão prontas e não serão mudadas, basta seguir as pistas misteriosas deixadas em algum canto do universo para alcançar o acerto.
            Os adultos gostam de dizer como o mundo é, utilizando-se de uma razão ideológica que descarta um mundo que está sendo, e por isso é histórico. Ao menos para Donnie, é histórico. Por uma perspectiva trans-histórica, há que temer os erros. Todavia, se o erro é intrínseco à vida, rejeitá-lo não seria uma forma de alienação? No mínimo, um medo desnecessário?
            O erro assombra pessoas convencidas de seu valor negativo. Reaparece como uma tragédia, uma espécie de pecado que poderíamos ter evitado. São interpretados, atualmente, como afetos, seu efeito é emocional, capaz de levar um sujeito a meditar sobre suas escolhas, suas realizações, suas possibilidades, projetos, sonhos, o que fez, o que deixou de fazer, o que ainda poderá fazer com o quem fez e o que é impossível de ser realizado devido as ações passadas.      

Gretchen e Donnie

“E se você pudesse voltar no tempo e trocar todas aquelas horas de dor e escuridão por algo melhor?”, pergunta Gretchen à Donnie. Como se dor e escuridão fossem situações invasores da Vida, reduzida ao prazer e satisfação dos desejos: o reino da pulsão de vida eterna. O erro também é Eros, desde que saibamos que toda a Vida comporta desprazeres e abdicação de nossa própria satisfação.
Somos o que somos porque vivemos a vida que vivemos do jeito que ela se apresentou. A fantasia de Gretchen em apagar os erros é querer apagar algo em si que o Outro desgosta. O erro marca uma escolha e nem sempre poderia ser evitado, só o seria se fossemos diferentes de quem éramos quando erramos, o que implica dizer que deveríamos, em alguns momentos de nossas vidas, sermos outras pessoas que não nós mesmos para não ter errado. Consequentemente, significa ter ciência de algo que pouparia o erro, porém, tal ciência poderia ser adquirida no momento de reflexão após o erro, e isto é formação e crescimento, o curso da vida.
O acerto está para a identidade como o erro está para a diferença. Errar não marca destino, é história. O acerto está próximo do poder, daí é tradição, moral, costumes e a norma culta da língua. O poder pode escolher seu acervo de narrativas históricas a serem reproduzidas, ao fazê-lo, exclui outras narrativas. Muito possivelmente, estas tornar-se-ão o erro porque não repetem a história pretendida, a história enquanto Mesmo.
A diferença repetindo-se sempre igual deixa de ser diferença para ser o Mesmo. A diferença se repete no tempo com conteúdo indefinido, ainda que obedeça a uma forma. Ao me utilizar do conceito deleuziano de diferença, pretendo mostrar como ela é uma parte num todo que escapa às regras e normas capaz de igualá-la a outros termos para ser um termo de excelência num arranjo de regras gerais.
Por vezes a identidade fere a diferença como o acerto fere o erro. A diferença não precisa subsumir-se à identidade existente. Toda diferença nasce de uma identidade, mas não carrega essa identidade por toda a vida se for capaz de separar-se dela para constituir outra identidade: separar a parte de um todo para multiplicar-se em várias partes e formar outro todo. Por sua vez, o erro não deve limitar-se aos acertos, seria erradicar sua equivocidade à univocidade. O erro origina um acerto enquanto acontecimento, espontaneidade, criação; o erro origina identidade. O duplo sentido retorna na relação entre erro e acerto dinamizando a diferença na identidade.
O mundo adulto e a resistência de Donnie é uma perfeita pretensão de instalar a dialética hegeliana de negação ao sujeito jovem para ser sintetizado num corpo que vive intensamente uma pulsão de morte vestida com elegantes remendos de autorrealização. Todo jovem, assim como Donnie, é convencido por discursos e outros recursos de uma sociedade mais velha sobre o quão inevitável é a transcendência que seu Eu encontrará na doação de seu corpo e mente para o Outro-solapador-das-liberdades.
Vale a pena existir num momento em que os sujeitos e suas diferenças são indesejáveis? A diferença confunde-se com a identidade; os comportamentos e ações são minuciosamente arranjados para servirem uma ordem mecânica de como as coisas deveriam ser, enquanto a liberdade com a qual a diferença se repete multiplica as possibilidades de como as coisas podem ser.
A juventude, representada em Donnie Darko, reclama, mais uma vez, versos da banda Pato Fu: “Eu quis ser eu mesmo/ Eu quis ser alguém/Mas não como os outros/ Que não são ninguém”. Há uma proposta de distinguir-se do mundo-de-amarras, porém, a individualidade e o processo de subjetivação estão em constante conflito com a ordem social que instaura modelos de identidade.
Cheritta, na sua condição de mulher gorda, tem em seu corpo o arquétipo de medo perpetuado por Cunningham. Ela é o exemplo de toda a vergonha que tange as escolhas erradas, apenas por ser gorda. Para deixar de ser gordo basta parar de comer (esta é a mentalidade trazida pelo filme), pois quem come muito está tomado pelo medo. Com efeito, Cheritta sente um mal-estar no seu Eu porque outras pessoas elegem-na receptáculo de máculas. A garota tem pouco espaço para produzir-se enquanto ser. São outros discursos que produzem significado no seu corpo-significante e se reproduzem nele. O olhar que a jovem possui sobre si mesma não é suficiente para convencer outros olhares que sua imagem pode coexistir no seio das várias relações sociais.
Os conflitos de Cheritta não estão apenas em sua imago e sim em todos os demais que a relembram como uma deficiência. Ela o será até se adequar à norma ou que a mentalidade dos grupos dos quais recebe os afetos percebam a relação de cumplicidade ao tentar moldar o corpo dela. A agressividade de Cheritta é a de um sujeito sem reconhecimento; como resposta à aniquilação, ela responde aos berros, literalmente, que existe vida no corpo errante: o corpo se debate a cada furo de faca que é o sangrento discurso regulador .
Ao tentarem exorcizar o erro da humanidade tentam expurgar algo que define os sujeitos enquanto seres. O erro não desaparece sem que o sujeito sinta uma parte de si indo embora. O mal-estar que ronda a juventude é desse gênero performativo: ao serem levados a atuar como pecadores questionam as crenças de sua espiritualidade pelos males que tentam fragmentar sua essência. Numa tentativa de reconciliar-se com seu Eu, agem com indisciplina, imoralismo, com inconsequência, imprudência e desrespeito.
Donnie reclama uma ontologia perdida para toda a juventude. Para identificar-se adulto seria preciso menos um esforço de constrangimento a uma aceitação das redes de diferença. Em outras palavras, paira um ar de deformação dos sujeitos para a condição de objetos, um conflito que nunca desaparece com o sujeito, mesmo que retorcido, recortado, atado, silenciado, subjugado, desqualificado, ridicularizado e mutilado. A subjetividade sobrevive enquanto existir sentido para ser significado no devir do sujeito.
Sempre haverá momentos de dor e escuridão e a existência depende deles para a formação do Eu. Ao invés de imaginar a morte, quem sabe somos capazes de depreendê-los a nosso favor enquanto seres inacabados, como parte de nossa história, assimilação do mundo em nós e construção de uma tragédia diferenciada que partilha sua temporalidade com outras tragédias num teatro em que os personagens são ora escolhidos e ora impostos, não por isso, somos impedidos de atuar de maneira imprevista um papel decadente, fazendo do choro solitário uma performance da diferença a qual apenas nós podemos executar.

Donnie no momento decisivo do dilema

Solidão

A ideia de destino atormenta as consciências que se consideram livres. No destino a liberdade é anulada por atos predeterminados. Donnie, ao conversar com Monnitoff, procura respostas para a existência da escolha, capaz de enfraquecer o destino. Neste diálogo, Donnie encontra em Deus a liberdade, nele reside o poder de decidir o caminho de todos; porém, é no caminho de Deus (God's channel) que o garoto acredita podermos fazer escolhas.
A necessidade da escolha provêm da solidão como destino de toda criatura viva, segundo Roberta Sparrow ao chochichar "Toda criatura viva na Terra morre sozinha" no ouvido de Donnie. Nossa existência possui sentido porque é compartilhada, existimos nas relações com o Outro. A morte é sacrificar as interações com o Outro. Morrer é perder esse sentido criado coletivamente.
O que pensa Donnie da morte?
Em sua sessão de terapia, Donnie afirma que Frank matará alguém e que os céus se abrirão. Em resposta, sua terapeuta diz: "Se o céu se abrisse de repente, não haveria lei. Não haveria regra. Haveria apenas você e suas memórias, as escolhas que fez, e as pessoas que tocou. Se esse mundo fosse acabar haveria apenas você e ele [Frank], e ninguém mais". Já no início do filme Donnie espera pelo fim do mundo, sem saber exatamente do que se trata.
De acordo com a terapeuta, a solidão espera Donnie na forma de um diálogo interno, ao invés de puramente nada o garoto continuaria a multiplicar-se em seu plano de imanência, num horizonte de eventos recriando-se a todo instante a partir de si e de Frank (sua razão interior, ou ainda, seu inconsciente tornado sombra). Ao menos podemos fazer esta interpretação.
Falamos tanto sobre mundo sem sequer conceituá-lo. Afinal, o mundo é objetivo ou subjetivo? O fim do mundo como inquieta Frank é subjetivo: é o mundo de Donnie que acabará. O mundo são as experiências do protagonista e todos os acontecimentos que constroem a subjetividade dele; é o ponto de vista de cada personagem do filme, singularizado em sua existência. Para os leitores deste artigo, o mundo é um conceito que nos permite pensar as experiências dos personagens de Donnie Darko na tentativa de pintar um quadro e chamá-lo totalidade de perspectivas ontológicas, a partir da interpretação deste autor que vos escreve (nada mais que outra perspectiva reclamando sua própria singularidade).
A existência, por ser compartilhada, exige atravessamentos de subjetividades (intersubjetividade). Criar pontes entre mundos para comunicarmos nossa solidão, na qual somos artistas de nós mesmos; emprestamos nosso olhar para produzir nossos cúmplices num agenciamento de experiências. A morte está reservada para toda existência que se justifica em si mesma, numa tentativa de imitar Deus, cuja existência consiste em criar sem ser criado.
Sendo a morte a porta para o fim porque Donnie escolhe ficar em sua cama sabendo o que acontecerá? Este é o ponto mais difícil de ser respondido. Compreende um dilema, por sua vez, consiste em escolhas. A análise não é um trabalho simples nesta altura.
Aplacar-se em sua cama não seria um ato de desistência, por excelência; cabe aqui servir-se da liberdade. A princípio, a morte de Donnie parece que diz respeito somente a ele, cabendo-lhe a simples escolha de viver ou morrer. Na verdade, sua temporalidade provoca efeitos no curso de outras vidas, de outros tempos individuais. Seu devir mantém e transforma o devir-outro.
A vida de Donnie apresenta-se num movimento circular de um devir-mesmo. Resignar-se com seu fim rompe o ciclo numa espiral que continuará sem ele, na qual Gretchen vive. Donnie lança mão do caos mais uma vez.
De todo modo, ele faz isso por ele ou pelos outros? Ou pela Gretchen? Ou aceita que sua diferença só faz sentido num lugar em que não há identidade para subjuga-lo? Ou, a visão mais cruel, entende que sua vida é um mal por causar dor e solidão?
Por um lado, entendo que ele tenta afastar-se do imprevisível incorporando-o para obter controle sobre a situação. Como o caos é imprevisível, sua única certeza é que nada acontecerá como antes. Por outro, o dilema existencial de Donnie põe em xeque sua resistência; deixa de enfrentar o mundo para conservá-lo. Deixa-se devorar por inteiro. O destino-acontecimento é a história reescrita pela liberdade de escolha.
O garoto-caos não pertence mais ao mundo de relações, vive como memória em algumas pessoas, é pura representação imagética. Sequer Gretchen, que aceita a diferença em Donnie, lembrar-se-á dele.
            Todo o sentido de ter-sido (numa inversão de vir-a-ser) perde seu propósito. Ao reescrever a história, Donnie opta por ser vazio, nada, sem valor, no momento em que se passa o filme. Sua escolha insinua que ele não se preocupa deixar de existir, como se fosse a coisa certa a ser feita. Do contrário, o que o esperava senão viver desafortunadamente suas experiências? Se estivéssemos na mesma situação de Donnie, abriríamos mão de nós mesmos apenas pela sensação de ter o destino em nossas mãos? Mais assombroso: seria a morte (deixar de existir) a única forma de vencer o destino?          

Donnie após decidir pelo fim do mundo

Últimas palavras

            Seguindo as representações discutidas até aqui, as identidades dos jovens estão excluídas do mundo adulto e com vistas de inserir-se nele, é um destino inevitável. O massacre das diferenças eleva a resistência entre o corpo-subjetividade e os discursos dominantes. A criatividade existe na solidão do corpo, sempre incapaz de comunicar tudo sobre si mesmo, sujeito à interpretações, distorções, recortes, eliminações e representações do que pretende comunicar e apreender do outro, por isso, uma diferença não é capaz de apreender outra, produz-se incansavelmente, prolifera-se na própria substância a partir dos sentidos, conhecimentos e conceitos encontrados nas interações e agenciamentos.
            O mal-estar da adolescência e da juventude (de forma geral) consiste na incompetência dos mais velhos de compreender a dimensão subjetiva do corpo, representando-as por uma identidade deformadora das diferenças, impondo uma forma incapaz de atender seu significado, provocando agressividade, revolta e afirmação de si por atos inconsequentes (segundo um juízo moral enunciado pelos adultos).
            Será que o destino dos jovens seguirá o arquétipo de Donnie? Serão os corpos des-subjetivados pelos dispositivos de poder a ponto de deixarem de existir para si mesmos? Por sorte a diferença não tem fim, o que propicia resistência. Todavia, Donnie, contemplado por sua diferença, escolhe não resistir, apagando-a.

Referências bibliográficas

Textos:
DELEUZE, Gilles. Logica do sentido.  São Paulo: Perspectiva, 2000.
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 2006. FOUCAULT, Michel. Microfisica do poder.  Rio de Janeiro: Graal, 2007.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2013.

Filme:

DONNIE DARKO. Direção: Richard Kelly. Produção: Adam Fields; Nancy Juvonen; Sean MacKittrik. Estados Unidos: Flower Films, 2001.