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segunda-feira, 25 de julho de 2016

A prova é uma mentira conveniente

O ensino possui a prova como fetiche de avaliação. A melhor forma de saber o que aprendemos é respondendo algumas tantas questões que são transformadas em nota. Um mundo sem prova seria um desastre: é preciso medir o conhecimento, a qualidade do ensino, quanto o aluno aprende, se ele é dedicado, o trabalho futuro depende da nota da prova. A prova não poderia deixar de existir sem tocar no mito que ela cria na cabeça das pessoas.
            A prova tradicional consiste em 10 questões, o que facilita na hora de atribuir nota, pois cada questão vale 1 ponto se considerasse apenas o acerto ou erro dela. O número 10, por razões que somente os astros distantes poderiam nos explicar por clarividência, parece uma quantidade razoável de questões, pois é possível explorar o conteúdo previsto para a avaliação num tempo de 4h e que não sobrecarregue a correção do professor com uma sala de 25 alunos. Como podemos ver, em nenhum momento a qualidade do ensino e as condições de trabalho adequadas se adequam ao esquema.

            E a pergunta que fica é: qual o problema nisso? Nenhum para quem acredita no mito de que o conteúdo da prova a ser avaliado é essencial. O que faz as perguntas daquela prova serem tão importantes a ponto de não haverem outras? Diante da complexidade do mundo, como poderia ser aquelas perguntas as perguntas certas para serem feitas? O que faz delas perguntas que precisam estar lá? Algumas pessoas diriam todos sabemos que a prova não pode abordar tudo o que gostaríamos, por isso escolhemos da melhor forma possível. A minha resposta é: quando o profissional monta uma prova prefiro acreditar que ele a faz pensando que aquilo possui serventia para o aluno num futuro próximo, sendo assim a formação profissional do aluno está em jogo por algo que alguém considera o melhor possível.

Minha perspectiva sobre a prova enquanto alguns olham apenas sua frente.

          Como constatamos, temos bons alunos que realizam com sucesso seu trabalho, as habilidades e conhecimentos exigidos na prova (oral, escrita, etc.) estão a ser utilizados. Da mesma forma, outros alunos realizam seu trabalho de forma insuficiente e desastrosa. Realizar um bom ou mau trabalho não teria a ver com sua prova, até porque, se formos sensatos, somos contratados pelo diploma. Um estudante de física não precisa mostrar que tirou esta ou aquela nota em sua disciplina mecânica geral para trabalhar na Petrobras, por exemplo, é contratado por ter completado seu curso. A nota serviria apenas para aprovar o aluno em uma disciplina, as aprovações nas disciplinas para aprova-lo no curso e garantir seu diploma.
            Se temos pessoas diplomadas não sabendo realizar seu trabalho como espera-se de um graduado, também temos pessoas não graduadas ou com uma graduação questionável sabendo realizar a mesma função daquele bom graduado. Não ter graduação e saber realizar o serviço um diplomado pode inflar seu ego por saber naturalmente ou com algum esforço algo que outro precisou de mais ou menos 4 anos para aprender; também pode ser, como na verdade é, sentir-se explorado, pois seu salário, para desempenhar a mesma função, é menor apenas porque seu cargo é menor na escala hierárquica do local de trabalho ou porque você tem pouca escolaridade mesmo.
            Em termos de probabilidade, não chegamos à conclusão de que o diploma garantido pelas situações de sucesso escolar mediante as avaliações (em que as provas são ícones) são ótimos indicadores para concluir quem está apto ou não a desempenhar uma função social no mundo do trabalho.
            Para que fazemos provas? Para sermos aprovados. Para que somos aprovados? Para poder avançar na instituição de ensino e/ou no sistema escolar. Esta, por sua vez, de que serve? Para qualificar nossos saberes. Mas para que qualificar? Para saberem se somos bons ou maus trabalhadores. E eu não poderia mostrar diretamente minhas habilidades e conhecimentos para o empregador ao invés de fazer tudo isso? Não. Por quê? Porque é assim.
            Quando algo termina num raciocínio tautológico podemos entender que chegamos num mito. As coisas são porque elas são. A prova existe porque é o único jeito.
            Escola e prova, no mito herdado de nossos antepassados, são indissociáveis. Escola nunca significou qualificação, esta palavra é coisa do mundo do trabalho, principalmente com o surgimento da indústria. A escola tem por função educar. Atualmente o ensino preza a reflexão, a criticidade, a moralidade, o respeito mútuo, a boa convivência, abertura à multiculturalidade, procura fazer seu usuário entender a complexidade e a diversidade do mundo. Apenas este último possui devida coerência para ser avaliado em prova (ou assim é entendido), pois seria no mínimo estranho fazer uma prova para saber se alguém desenvolveu ou não a moralidade, que pode ser vista nas relações, ou que a reflexão e a criticidade, que deveriam pressupor a forma correta de aplicar sua criticidade ou a melhor maneira de refletir, possam ser transformadas em questões.
Seria mentira dizer que a escola não possui obrigatoriedade com a formação para o trabalho, pois consta no Art. 1º §2º e Art. 2º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394), respectivamente, “A educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social” e “A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. E não percebemos outra coisa senão a educação para o trabalho sendo privilegiada pelas provas, com todas as demais dimensões do desenvolvimento humano sendo ignoradas por um bem maior e primordial.
E ainda assim essa compulsão pelo trabalho não justificaria esquecer-se da ética, a orientação sexual, pluralidade cultural, meio ambiente e os temas locais: tópicos pertencentes aos Temas Transversais dos Parâmetros Curriculares Nacionais. Alguém tomado pelo arquétipo do velho sábio diria: os temas transversais fazem parte do currículo que pressupõe conteúdo. Então porque a mulher continua sendo ridicularizada, a homossexualidade rechaçada, a imagem do negro associada ao pobre, a desconfiança latente no convívio com desconhecidos, a disputa tão crescente entre grupos? A resposta é bem simples: porque o foco na prova privilegia conteúdos importantes: os temas transversais pouco ajudam a conseguir trabalho. E digamos que exista alguém que insista que os temas transversais são bem valorizados em sala de aula, seu próximo argumento pode ser “o professor possui uma péssima formação”.
O problema não está no instrumento de avaliação, mas na eficiência do trabalho do professor. É uma estratégia que descarta a infalibilidade do mito, ele é certo, direito, infalível. É no que as pessoas acreditam, como descarta-lo por paganismos que falam por aí?

Vestibular: a chance angustiante de se graduar para ter um bom emprego. Mas vale a pena, temos chances iguais – disse o bom fiel.

Mas sem perder a linha, como aquele professor adentrou uma sala de aula? Por provas sucessivas que o qualificaram para sua função. Alguns se impressionariam com isto, eu apenas comprovo o que já disse. A prova defendida para verificar as habilidades do profissional falha nestas horas, e o mais preocupante, não falha como exceção, falha como regra. É da natureza da prova, por constar uma nota, falhar miseravelmente em transparecer o conhecimento que alguém domina. Se a prova é tão lacunada para qualificar, por que insistem nela?
            Diz-se que é aprovado numa disciplina por alcançar média 5 nos exames, ao menos na maioria dos cursos. Se um curso tivesse média 7 ao invés de média 5, isso faria do curso média 7 melhor qualificado em relação ao último? A representação dos números é clara: 7 é maior do que 5, não haveria porque pensar que aqueles alunos, se aprovados, não estão bem preparados; foram bem sucedidas em suas avaliações.
Se quanto maior melhor, que se institua de uma vez a média 10! São todos cegos ou o que? A média 10 solucionaria todos os problemas. Todos nós concordamos que a média é uma forma de colocar o aluno para estudar, uma vez que ele não estudaria se não fosse impulsionado por uma motivação extrínseca. Por esse tipo de pensamento que não possuímos média 1 nos cursos, porque a motivação é baixa demais para precisar estudar muito. Quanto maior a média maior o tempo de estudo.
Ao invés de se limitar com a média 5 que, por culpa dos profissionais mal formados ou dos alunos, põe em risco toda a comunidade com pessoas que não estão minimamente qualificadas e dizem portar um diploma, que seja feito o que deve ser feito: a média 10 - a absoluta, a incontestável, a divisora, a indubitável.
Nem a média 10 seria solução. Nunca seria.
Permitir a média 10 é semelhante a dizer: deve-se tirar nota máxima em todas as provas. A performance esperada do aluno é atingir todos os objetivos propostos no planejamento educacional, ao menos em relação às questões. A média 10 torna a ideia de média desnecessária: se para ser aprovado é preciso fazer tudo o que for exigido, o primeiro erro desqualifica o avaliado imediatamente. Os erros não são permitidos, a perfeição é a regra. Bastaria perceber um ato falho e não se preocupar mais com quem faz a prova. Porém, a escola não poderia deixar de se preocupar com a educação do estudante a ponto de excluí-lo. Qualquer forma do estudante recuperar a nota perdida por um erro mínimo não poderia conceder-lhe nota máxima (ou a única nota permitida) sem alguém, em algum momento, se perguntar como que se apaga um erro. Para possibilitar a inclusão e garantir o direito à educação a média poderia ser 9, que por razões semelhantes, seria reduzida para 8, senão para 7, podendo ser 6 ou 5 e nunca menos que isto. A média consiste numa arbitrariedade negociada. A média é como é por discussões puramente retóricas, poderia ser qualquer uma maior ou igual a 5 e menor que 10 (e nenhum outro valor é possível por uma ordem divina que jaz nos corações de seus fiéis).
Se o plano de ensino possui um objetivo, por que não observar se o objetivo foi cumprido? Como a nota ajuda a perceber o cumprimento desse objetivo? Se as questões da prova são questões que reapareceram novamente pela vida dos estudantes faz sentido, mas as provas são tão ideais quanto o mundo comunista. Novamente: uma prova sobre História da América Latina com dez questões prevê que aquelas questões seriam tão fundamentais que se repetiriam intensamente no trabalho desse historiador. Se numa prova dessa disciplina o estudante de História obtém um 4, o que significa exatamente este número? Significa nada mais nada menos que o estudante acertou 4 perguntas ou que errou 6 perguntas. A nota constitui em si um feedback alertando para esse estudante que faltam 6 pontos para atingir nota máxima. Ela não aponta o que há de errado, apenas que faltam pontos. Quando anuncia o erro, continua visando pontos, como se eles traduzissem a globalidade do tema História da América Latina. Tirar um 10 numa prova dessas não significa que você sabe História da América Latina, indica que você soube fazer uma prova sobre o tema referido e que as questões arbitrárias colocadas pelo professor coincidiram com o conteúdo estudado.
A grande verdade é que a prova possui a finalidade clara de classificar os alunos. Somos um 5, um 7, um 10. Quando somos 3 não somos apenas quem estudou pouco, somos quem estudou menos que quem tirou 4, até o aluno nota 4 estudou mais que o aluno nota 3. Não bastasse classificar os alunos em 11 tipos diferentes, sujeitamo-los a mais classificações por incorporar as dizimas à nota.
8 pode ser bom. 8,5 é melhor. 8,551 é apenas escandaloso! Como alguém seria capaz de apontar milésimos? De onde vem tanta precisão?
Classificar é bom para o mundo do trabalho, significa qualificar o trabalho, separar saberes, dividir o mundo do trabalho de forma que sempre haja alguém que não é um 10. A preocupação com a nota mostra situações em que a prova instiga a competição natural pelas condições ambientais promovidas pelo sistema educacional alimentarem a concorrência. A escola é mais um filtro que marca os alunos e suas possibilidades de experiência a uma instituição que pensa a educação.
A prova só possui seu sentido preservado porque a intuição faz parecer que a existência das pessoas consiste em não se esforçarem para estudar, por serem desinteressadas pelas discussões em vigor, por serem preguiçosas, enganadoras, mentirosas, corruptas, de alma destinada ao repouso pleno, sem precisar fazer esforço algum, que se contentam com o mínimo, que precisam ser vigiadas e punidas para demonstrarem atividade. Por essa impressão mística do espírito, a prova é o melhor instrumento de avaliação. E mesmo que fosse verdade, o que é a nota senão a pior forma de expressar a impressão do professor sobre a prova?

- Por que ei de queimar?
- Para que a marca do espírito possa ser vista na carne.






sábado, 23 de julho de 2016

A Palavra de Deus

Introdução:

No caminho de volta para casa paro num book café da minha cidade. Sempre observei sua fachada, via as plantas que ornamentam o lugar, as mesas de madeira, as pessoas conversando ou trabalhando em seus computadores, os livros que pareciam atender uma diversidade. Ontem foi o primeiro dia que entrei no café para ver os livros. Todos sobre religião. Capas com cores convidativas, que agradam o espírito. Igualmente genéricos aos olhos de um leigo. Com toda a certeza continham a Palavra do Senhor. Curiosamente o nome Dong Yu Lan se repetia de incessantemente nos nomes dos livros. Foi impressionante ver como alguém consegue escrever tanto, se dedicar a produzir os caminhos para cristãos que buscam aprofundar seus conhecimentos sobre sua fé.
A balconista saiu de onde estava para me atender. Eu disse que só estava vendo os livros. Ela veio até mim, me apresentou os livros, perguntou se eu gostava desse tipo de literatura. Disse que não eram os livros que eu estou acostumado a ler, mas talvez eu resolvesse, algum dia, passar por ali, pedir um café e me debruçar sobre essa literatura. No fim das contas saí com uma amostra que deverei devolver na minha volta ao book café: Identificados pelo Invocar, de Dong Yu Lan, um livreto com 28 páginas, cuja primeira impressão data 1998 e a segunda, 2006, e recentemente reimpresso em 2010. Na contracapa encontramos as seguintes perguntas: Como Paulo identifica os cristãos a quem perseguia? Por que ele fazia coisas contra o nome de Jesus?
Ainda bem que não comecei lendo a contracapa, foi a última coisa que eu li, mas já sabia que encontraria uma doutrina semelhante.
No começo a leitura foi puramente informativa, ler o livro pelo livro, como se ele pudesse me ensinar algo, como se seu conteúdo tivesse algum valor para mim, como se ele abordasse algum tema que eu desconhecesse. Valorizei cada palavra inicial, cuidando para compreendê-lo integralmente.
Eram apenas 28 páginas com menos palavras numa página do que estou acostumado. Todas as palavras do livreto devem se aproximar a um artigo científico de 10 páginas, mais ou menos. O máximo que poderia acontecer é eu perder o interesse pelo livreto antes de chegar em casa.




Páginas iniciais:

Identificados pelo Invocar é iniciado com um breve relato sobre Saulo como um perseguidor de cristãos. Para prendê-los, o fariseu identificava-os por invocarem o nome do Senhor. O que responde a primeira pergunta da contracapa. Saulo, indo à Damasco, é surpreendido por luz que o ilumina e se identifica como Jesus. “A intensa luz o deixou cego por três dias e durante esse tempo ele, certamente diante dos fatos ocorridos naqueles últimos dias, pesou cada acontecimento de sua vida de perseguidor” (YU LAN, 2010, p.4). Ananias cura sua cegueira e batiza Saulo, que passa a se chamar Paulo. Assim, “Paulo, ensinava as pessoas a invocar o nome do Senhor.” (YU LAN, 2010, p.5).
A segunda pergunta também foi respondida: faltava a Palavra a Paulo.
O próximo capítulo é A edificação pelo invocar, quando Jacó recebe uma visão de Deus, desperta de seu sonho, levanta a pedra que lhe servia de travesseiro e derrama azeite sobre ela, que “representa o derramamento do Espírito Santo sobre os cristãos. Portanto, para haja edificação da Igreja, é necessário derramar o espírito Santo” (YU LAN, 2010, p.6).
Nesse capítulo me interessou saber se era essa representação da oliveira que pairava no inconsciente coletivo, pelo menos no ocidente: a fonte de uma comunhão, o começo de uma vida abençoada, as certezas que estariam por vir, nosso inconsciente nos alertando sobre as possibilidades para guinar nossa vida. Chegando em casa encontrei que “As oliveiras são símbolos tradicionais de paz, pureza e vitória. Podem invocar o triunfo sobre as adversidades, conflitos familiares ou lutas internas. O sonhador talvez vislumbre um período de criatividade” (ALTMAN, 2003, p.295).
Mesmo sem ter certeza sobre o que poderia ser a oliveira, percebi que segurava um livreto que continha imagens que possivelmente residem no inconsciente coletivo; figuras que com certeza são despertadas por pessoas que são sensibilizadas por esse discurso. Mesmo que houvesse chances daquele ser um texto de segunda mão com intuição de doutrinação (e mesmo depois de lido me parece ser isso), seria interessante ver como que estavam organizadas as imagens primordiais que conduziam à individuação.
A esta altura começam reflexões interessantes no livreto: “Como os coríntios poderiam estar no espírito? será que o fato de se reunirem e terem comunhão garantiria que eles estavam no espírito? ou o serviço aos demais irmãos? Ou a participação em muitas atividades da igreja?”, e a resposta é “Não, nada disso, por si só, garante que estejamos no espírito. Tudo isso pode ser feito por meio de nossa vida natural, de acordo com o velho homem, sem nenhuma comunhão com Deus” (YU LAN, 2010, p.7).
Somente invocando o nome do Senhor seria possível alcançar Deus, pois antes de Cristo não conseguíamos falar com Deus, inclusive, páginas depois, teremos mais claro como a vida sem Jesus, ou seja, viver a vida natural, não é uma possibilidade de salvação, pois somos incapazes de nos expressar a Deus sem sermos banhados pelo Espírito Santo, daí nos comunicamos com Deus, mas é somente através de Jesus que somos tocados pelo Espírito e passamos a evocar a Palavra, que é o próprio Deus.
Este ponto da leitura me recordou de As Palavras e as Coisas (2000), em que Michel Foucault, no capítulo A prosa do mundo, escreve sobre o período do Renascimento e como as ciências humanas estão voltadas para o estudo da natureza para encontrar semelhanças entre as coisas partindo do princípio que a Palavra das escrituras sagradas não são representações das coisas, são as próprias coisas. Não há diferença entre a Palavra e as coisas, pelo contrário, as coisas possuem semelhanças entre si que devem ser interpretadas por uma adivinhação e uma erudição que conduziriam os homens mais facilmente à compreensão da Palavra.
A Palavra e as coisas estão próximas, uma não é representação da outra, são a mesma coisa, tanto que “O estudo da gramática repousa, no século XVI, na mesma disposição epistemológica em que repousam a ciência da natureza ou as disciplinas esotéricas” (FOUCAULT, 2000, p.48). Existem segredos a ser desvendados nas coisas, a serem revelados.
Em Yu Lan, seguindo as escrituras sagradas, a Palavra é a própria invocação do Senhor, e este é o uso que o autor faz de sua eruditio para interpretar os textos religiosos na forma do livreto. Existe uma diferença entre interpretar e analisar: a presença da representação. A interpretação dispensa a representação porque nunca chegaria numa Verdade se tomasse esse caminho; a análise, adotando a representação por princípio, separa palavras e coisas, ou seja, cumpre a intenção deste texto que escrevo.
Para Yu Lan, “éramos adoradores de símbolos mudos” (2010, p.7) antes da chegada de Jesus, por sua gramática renascentista. “Hoje cremos no Deus encarnado, que é Cristo, que é a Palavra; por isso, podemos declarar que Jesus é nosso Senhor, que Ele é nosso Senhor” (YU LAN, 2010, p.8). E é na igreja, a casa do Senhor, que a Palavra será enunciada; dizer a palavra é tocar um corpo. Pela Palavra não ser um signo, quando evocada, ela não faz referência a algo, ela é esse algo. Dizer o nome de Cristo é sentir Cristo justamente pela palavra Cristo não ser arbitrária. Pensa-se que a palavra, do ponto de vista analítico, é um signo que representa outro signo, ou ainda, uma representação de uma representação. Como menciona Yu Lan, as coisas são mais simples, sua interpretação nos conduz a pensar que a Palavra quebra a ideia de representação: ela não faz menção a nada que não seja ela mesma. A Palavra possui fim em si mesma, seus motivos de existir não foram definidos pelos homens, sequer pode ser considerado um acessório linguístico para se referir ao mundo objetivo ou à imaginação, ela perdeu essa função desde Babel, daí em diante as diferentes línguas são reflexos fragmentados dela.
A Palavra é uma consciência.

A Salvação como violência:

Se a Palavra conduz à transformação, ela pode ser considerada uma consciência de si, em termos hegelianos. Talvez ela não possa ser considerada dessa forma, pois pediria reconhecimento de uma outra consciência para ser como é, o que pressupõe um diálogo. No momento ela apenas reconhece e cumpre suas funções teleológicas, sem precisar ser reconhecida por ninguém por ser a Verdade, portanto, fim último. A teleologia aqui consiste, se é que podemos colocar nestes termos, numa espécie de individuação do fiel – a Salvação. O encontro com seu Self depende de um único arquétipo, que é aquele que dita a relação com a Palavra; e talvez o encontro com Deus não signifique encontrar o Self.
No capítulo O dispensar do Espírito, acontece um evento: “O Espírito Santo foi derramado exteriormente sobre eles [os discípulos], e começaram a falar em outras línguas. Eles passaram a falar em línguas genuínas, línguas que eram compreendidas por pessoas vindas de outras nações” (YU LAN, 2010, p.9). Seria apenas pela invocação do nome do Senhor que viria a salvação, não da manifestação do Espírito Santo. Aqui também é advertido sobre invocar o espírito para necessidades próprias e esquecê-lo. Preza-se por adquirir o hábito de invocar o nome do Senhor a todo momento, “pois a cada momento necessitamos ser salvos de nós mesmos, de nossa natureza caída” (p.11).
Com esta justificativa para invocar a Palavra podemos compreender que o Yu Lan, ao interpretar as escrituras, está nos advertindo sobre a natureza humana, uma condição da qual não podemos fugir. Podemos tratar igualmente por uma metafísica da espiritualidade humana: o corpo, enquanto carne, recebe os pecados; sair dessa condição é portar a Palavra regeneradora.
Ensinar a Palavra na igreja é tão semelhante quanto ensinar a palavra na escola. Ambas despertam a consciência. Salvos pelo invocar é o capítulo que nos mostra a importância de tal educação para a expansão do divino em nós, salientando que a Palavra possui um efeito interno dividido em três etapas: regeneração, transformação/salvação da alma, redenção do corpo. A primeira etapa acontece ao encontrarmos a Palavra; a segunda por seu uso constante; “Quando cremos no Senhor, o Espírito de Deus entrou em nosso  espírito, fomos salvos, nossos pecados foram perdoados e fomos justificados (...) Na segunda vinda de Cristo, ocorrerá o último estágio da salvação, que é a redenção do nosso corpo.” (YU LAN, 2010, p.14-15).
Para concluir a última etapa é preciso passar por um processo de negação da vida da alma para conceber a vida de Deus, introduzido no final de Salvos pelo invocar e explicado mais detalhadamente em Negar a si mesmo e seguir ao Senhor. Lendo nas entrelinhas dessa negação de si: fazer com que o ser do sujeito seja aniquilado para receber uma consciência divina; mutilar-se, sacrificar-se, afligir-se e escapar de tudo o que ele é ou foi para ser outra coisa, algo que talvez ele nem quisesse ser.
Se a regeneração da alma só existe como etapa para que um Eu desapareça e um Outro assuma os restos deste antigo Eu, temos um caso de catequização. A regeneração não é revitalização, é iniciação; a salvação da alma não é perdão, é um processo constante de violência e de autovigilância, é quando o fiel, acreditando no que dizem, pensa que pensa errado, e não querendo errar invoca o Espírito de seu próprio sofrimento: lhe foi ensinado que um masoquismo poderia sarar suas feridas; por fim, a redenção do corpo é a morte de qualquer possibilidade de existência, o fim de uma consciência por outra.
As exatas palavras do começo do novo capítulo são: “Uma vez que o mistério de Deus é Cristo (...) somente Deus poderia revelá-lo; e sendo a igreja o mistério de Cristo (...), somente Cristo poderia revelá-la” (p.16). O mistério não é nada mais que a chave para a Semelhança dos gramáticos renascentistas, como sugere Foucault (2000). Pelas articulações da semelhança basta encontrar as assinalações necessárias - as marcas misteriosas – para descobrir a igreja, a casa de Deus, donde Cristo aparecerá com a Palavra, permitindo sentir o Espírito Santo, e, assim, Deus.


“Para que a igreja fosse gerada, era necessário que o Senhor Jesus fosse crucificado, morresse e ressuscitasse” (YU LAN, 2010, p.17). E antes que houvesse a crucificação, Pedro não permite a crucificação de Jesus pelos, impedindo, consequentemente, a formação da igreja, uma vez que Jesus precisa passar pelo ritual de aniquilação de Si. Conclui-se que Pedro está dominado por Satanás e qualquer tentativa de impedir a vinda da igreja é uma profanação vinda diretamente do reino do inferno, “é pela igreja que Satanás é derrotado” (YU LAN, 2010, p.17).

Qual a maneira de seguir ao Senhor? Vivendo a vida da igreja e ouvindo Sua Palavra. Quando fazemos isso, espontaneamente negamos a nós mesmos, a nossos interesses, opiniões, desejos, gostos e pensamentos e tomamos nossa cruz.” (YU LAN, 2010, p.17-18). E para segui-Lo precisamos viver no espírito, exercitando-o pelo invocar do nome do Senhor. Precisamos aprender a, em tudo, depender do Senhor, em tudo invocar Seu nome buscando comunhão, consultando-O sempre e permitindo-Lhe tudo decidir sobre nós. A todo o momento precisamos invocar Seu nome, pois somente assim nossa alma será salva. (YU LAN, 2010, p.18)

Para haver vida, perde-se vida. A recompensa de negar sua própria vida está em se tornar-se Deus. O processo de individuação, funcionando por uma teleologia, garante o equilíbrio do Self. Corpo caído, velho homem e vida da alma são assinalações de um complexo humano que deverá ser superado. Em nenhum momento as experiências parecem ter alguma significação para a ida ao reino dos céus, a não ser pela descoberta da Palavra, aí sim o mistério é revelado e começa o sentido da vida; qualquer outra expressão diferente desta é tida pela manifestação da vontade de Satanás. Hegel, portanto, está tomado por Satanás, assim como Foucault, Paulo Freire, e até mesmo Jung!
Hegel (1992) é sinalizado por pensar que duas consciências devem reconhecer-se como outro, que pressupõe reciprocidade, também pressupõe perigosamente que dois errantes se reconheçam como um Ser. Foucault (2000) utiliza seu domínio histórico para conceber tempo a algo intemporal, quando não percebe que a Palavra só vem sendo esquecida com o avanço dos estudos sobre linguagem, implicando na condenação de muitas almas. Como se não bastasse Paulo Freire (2012) ensinar a palavra que não é Palavra, insiste num aprendizado sobre a materialidade da vida, logo, aceita uma vida mundana como forma de desenvolver uma consciência que não é a de Deus. Finalmente, o processo de individuação de Jung (2014) recorre a elementos atemporais para aproximar o homem do divino, de senti-lo plenamente em sua alma, e isto estaria muito bem se as respostas para a transcendência não estivessem no homem que sofre a transformação, mas numa entidade externa a ele. Por estas razões, Yu Lan poderia, a partir da Palavra, reconhecer Satanás em todos esses pensadores.
Entretanto, tudo isto não passa de metafísica. Usar a Palavra para explicar os corpos, as almas e as verdades sobre Deus recusam instantaneamente qualquer argumento que não reproduza o Mesmo. Entre Hegel e Yu Lan é compreensível que seja um simples embate de posições metafísicas, nenhum deles cedendo por encontrarem em suas posições lógicas infalíveis; o cenário muda quando acrescentamos pensadores modernos. Continuo defendendo o uso de uma visão analítica sobre uma visão interpretativa, dessa forma a Verdade apenas converte-se em verdade, mas não significa que seja mentira, não totalmente.
Como exemplo, e podemos até tomar a título de experimento, se um bebê, seja na língua que for, pronuncia a Palavra de Deus não sentirá o Espírito Santo – esta é minha tese. Como verificar? Simples, é só acompanhar o desenvolvimento do bebê. Não fiz este experimento, e nem considero necessário. Se sentimos Deus pela Palavra, a nova sensação pode uma mudança de comportamento, mínima que seja, poderia ser visível, envolvendo os músculos, gestos e expressões faciais ou oculta pela endocrinologia, neurologia, processos inconscientes que se tornam conscientes.
A Palavra é antes de tudo uma palavra, por isso mesmo já está contida numa representação, daí faz-se necessário compreender a conjunção da Palavra com o que ela designa, criando sentido. Pedir que alguém se desligue de sua língua e fale uma outra que ela não compreende nada, chegando a pronunciar a Palavra, sem saber que pronuncia sua própria salvação, não a fará mais próxima de Deus, provavelmente não lhe fará diferença alguma. Mas tenho certeza absoluta que seu corpo reagirá com o retorno a língua materna, cuja significação permite uma intimidade com a Palavra e o Espírito Santo.
Quando Pedro chora por ter negado Jesus, ele não estava fazendo mais que promover seu próprio espírito, seu velho homem ser vil e caído é uma artimanha discursiva que sustenta-se no desconforto do outro sobre si mesmo, provocado por um encontro com uma consciência que não reconheceu a primeira consciência. Em A Fenomenologia do Espírito (1992) encontramos a dialética do Senhor e do Escravo para descrever este mesmo fenômeno. De forma dramática, Deus é o senhor de escravos, Pedro, o escravo.

O senhor do mundo tem a consciência efetiva do que ele é - [a saber] a potência universal da efetividade - na violência destruidora que exerce contra o Si de seus súditos, que se lhe contrapõe. Com efeito, sua potência não é a união do espírito na qual as pessoas reconheçam sua própria consciência-de-si; enquanto pessoas, são antes para si, e excluem a continuidade com outras, da absoluta rigidez de sua atomicidade. Estão assim em uma relação unicamente negativa, seja umas com as outras, seja para com o senhor do mundo, o qual é seu [nexo de] relacionamento, ou sua continuidade. Enquanto tal continuidade, o senhor do mundo é a essência e o conteúdo do formalismo das pessoas; conteúdo, porém, que lhes é estranho, e essência que lhes é hostil; pois, antes, suprime o que para elas tem valor como essência: o ser-para-si vazio de conteúdo, - e enquanto continuidade de suas personalidades, precisamente as destrói. (HEGEL, 1992, p.34)

            Jesus só é senhor porque não precisa que sua consciência de si seja um outro para Pedro, é negando reconhecer a consciência de si de Pedro, que seria o outro de Jesus, que o discípulo buscará reconhecimento na alienação de sua própria consciência. Tomando-se como medida das coisas, e poderá sê-lo apenas enquanto assinalação de semelhança da Palavra, Jesus não faz mais que aproximar seu discípulo da morte. A ordem das coisas consiste, assim, na igualdade pela aniquilação da diferença. Deus, como nos apresenta Yu Lan, não é uma diferença, pois não há nada que se oponha a ele. Havendo apenas o sentido de unidade-Deus, a diferença vive negativamente a partir do momento em que, em condições de se propor uma física relativista, o tempo é absoluto.
            Jung possui posição complementar a de Hegel:

A verdadeira ampliação da personalidade é a conscientização de um alargamento que emana de fontes internas. Sem amplitude anímica jamais será possível referir-se à magnitude do objeto. Por isso diz-se com razão que o homem cresce com a grandeza de sua tarefa. Mas ele deve ter dentro de si a capacidade de crescer, se não nem a mais árdua tarefa servir-lhe-á de alguma coisa. No máximo, ela o destruirá. (2014, p.124).

Entretanto, podemos ver que Yu Lan insiste nas provações:

Normalmente encaramos as provações como motivo de tristeza; quando chegam, murmuramos, dizendo que não as podemos suportar. Mas a Palavra diz que tais provações são por breve tempo, apenas o tempo necessário para alcançarmos a salvação de nossa alma. Por isso, ao sermos afligidos por diversas provações, lembremo-nos de que a aflição de hoje nos levará à salvação completa. A tristeza de hoje é leve e momentânea, em comparação com o peso de glória por vir (2010, p.23-24).

            Ainda pela interpretação de Yu Lan no capítulo final: Os escritos de Pedro, pensando que Jesus é o dominante na relação, ele aplica sua palavra por violência à consciência na promessa da salvação que se revelará num tempo último. Inscreve-se na consciência um poder disciplinar que faz Pedro pensar que agiu de forma errada, que podendo destruir Pedro, é reprimida e passa a vigorar no inconsciente. A meditação que Pedro faz dos seus erros não o levaria a solucionar seus complexos, pois ele foi levado a pensar que possui um complexo e que ele deve ser resolvido adotando a salvação, e este sim é o único complexo que Pedro desenvolverá por se tratar de uma relação baseada na negação de Pedro por Jesus, ou ainda, das projeções dos conflitos de Jesus em seu discípulo.
            Posso dizer de forma mais cômica: Pedro deverá suportar as provações porque no final de tudo não restará nenhum Pedro para sentir. E se todos compreendemos a situação, não há nada de cômico nisto. Como se não fosse suficiente, Yu Lan nos traz a possibilidade da diferença e da comunhão, mesmo em meio a essa carnificina mental:

O julgamento de Deus começará por Sua casa, a igreja; assim, todos os cristãos terão de comparecer perante esse tribunal. Se aproveitarmos as várias provações para que a vida divina cresça em nosso interior, por meio de invocar o nome do Senhor a todo o tempo, ao comparecermos perante o tribunal de Cristo, estaremos aprovados, e seremos não somente louvados, mas também receberemos glória, a glória do reino milenar, como co-reis juntamente com Cristo. (YU LAN, 2010, p.25-26).

Após afirmar a negação de si pela qual todos que pronunciam a Palavra devem passar obrigatoriamente, parece estranho que todos continuem a existir em comunhão, a não ser que residam na memória de Deus. E de que serve a memória num mundo atemporal? As coisas passam a existir em si mesmas conjuntamente, sem desenvolver uma consciência. Ela surge do encontro com o outro.
Pedro segue errante até o fim do livro. bastava invocar o nome do Senhor para salvá-lo. “Devemos invocar esse nome em qualquer situação, principalmente ao ler a Bíblia, para que extraiamos dela Espírito e vida.” (YU LAN, 2010, p.26).
E tudo se encerra com:

Em Romeno 8:26 vemos que a melhor oração não é aquela que não sabemos o que dizer, não sabemos como orar. Então começamos a invocar e pedir ao Senhor: “Ó Senhor, não sei como orar, não sei sobre o que orar; não sei como louvar-Te nem como agradecer-Te. Só sei invocar Teu maravilhoso nome: “Ó Senhor Jesus, quero estar em Tua presença”. Então o Espírito intercede por nós com gemidos inexprimíveis, e já não somos nós que oramos, mas o Espírito ora em nosso lugar. Cristo como incenso deve ser acrescentado à nossa oração, para que, assim suba um aroma agradável a Deus quando orarmos.
Portanto, do início ao fim de nossas vida cristã, do início ao fim de nossa caminhada com o Senhor, devemos invocar Seu nome! (YU LAN, 2010, p.28).

            Se nos restavam quaisquer dúvidas se o espírito do fiel tinha validade alguma durante todo o processo de transformação, acabamos de confirmar que ele nada sabe, precisa ser guiado por um Mestre, que é Jesus, faz do Espírito sua voz e de Deus seu desejo. Só pode ser compreendido por Deus enquanto doe ao Espírito, sua linguagem com Deus, que só encontrará na Palavra, a linguagem com Jesus, que será julgado na casa de Deus, a igreja.

A Salvação como individuação:

            De uma forma menos dramática, em que Jesus é realmente o salvador e não um mal caráter, como o descrevi no conflito com Hegel, principalmente, não faz diferença ser aniquilado, deixar de existir, ser ou não ser consciência se no último tempo Deus corresponderá a todas as vontades e não há como fugir disso. Pensar desta forma seria cair num niilismo porque nascemos seres pensantes e gostaríamos de viver como as plantas. Nascer destinado a Deus é tão provável e certo quanto nascer com potencial de desenvolver funções do pensamento.


A trindade: elemento constante na Psicologia das Religiões, segundo Jung (2014).


            Partindo deste último princípio, a religião, como propõe Jung, nos direciona para o pertencimento com o todo. Neste caso, Deus será tudo e nós teremos participado desta formação, uma vez que nos oferecemos como receptáculos divinos. Não haveria como dizer que não é de livre e espontânea vontade, por mais que aquele velho poder disciplinar da Palavra mantenha-se como argumento pertinente.
            Pensando nos personagens bíblicos como símbolos do inconsciente, Pedro atende ao arquétipo do Cuidador: se preocupa com Jesus e não quer vê-lo crucificado, o que o faz parecer invejoso e ingrato, além de satânico, como menciona Yu Lan.
             Jesus está sempre ligado à Criança Divina: o prodígio, nascida de uma situação extraordinária, podendo fazer referência a um duplo nascimento: nascido da água batismal e do espírito, ao mesmo tempo humano e divino. Altman acrescenta que

Sua imagem na cruz é um símbolo múltiplo de vida, morte, ressurreição e salvação. Esse tipo de sonho ocorre em momentos críticos da vida: talvez próximos à morte ou quando a busca de um caminho pessoal ou espiritual seja uma preocupação essencial.
(...) Jesus também pode exprimir o desejo de alcançar a paz interior e servir aos outros (...). (2003, p.58).

“O próprio Cristo é o símbolo supremo do imortal que está oculto no homem mortal” (JUNG, 2014, p.125). Sendo Cristo o Espírito Santo em Jesus, que será compartilhado com os demais homens.
Jung reserva uma situação interessante para Paulo: “o aparecimento de Cristo a Paulo não proveio do Jesus histórico, mas sim do seu inconsciente” (p.124). Paulo teria sido acometido por uma função transcendente, derivada de uma imagem primordial, cujo propósito será o de receber a luz forte do Espírito Santo, um choque provocado pelo símbolo inconsciente que emerge e aos poucos torna-se consciente com o auxílio da Ananias, representante do arquétipo d’O Mágico, que cura Paulo de sua cegueira inconsciente.
Jacó “pode simbolizar as altas aspirações” (ALTMAN, 2003, p.368) pela sua ambição em edificar a igreja para disseminar o Espírito, e somente assim, permitir que todos alcancem Deus se estiverem dispostos a se sacrificar para isso.
            De uma forma geral, “Figuras sagradas representam altas aspirações religiosas, podendo oferecer um estímulo à busca pessoal da realização espiritual." (ALTMAN, 2003, p.59).
O Espírito Santo, na simbologia junguiana, admite ser o inconsciente que desperta a função transcendente, enquanto Jesus é o consciente sempre em diálogo com o inconsciente, numa atitude reconciliadora, e Deus, a individuação completa, representação do Self.


Conclusão:

No fim das contas, como podemos ver, Identificar pelo invocar não foi uma perda de tempo. Foi uma leitura bem agradável, por mais que eu tenha insistido em refutar a ideia original do livro: negar a si mesmo como promessa de algo maior. Vemos na sociologia das culturas de massa, na filosofia existencialista, na psicologia analítica e na educação corporal que negar nossa identidade ou encontrar dificuldades, e até impossibilidade, de expressá-la não deveria acontecer de forma tão natural. Afirmar a natureza humana é muito tendencioso, partimos para especulações imaturas, como achar que somos desde o berço gananciosos, preguiçosos, inconsequentes, profanos, e tantas outras qualidades que dizem ser inerentes. Dong Yu Lan não me convenceu que esta é a forma pela qual eu deveria invocar o nome do Senhor, Jung é muito mais atrativo neste aspecto, e ele nem pede que eu ouça a Palavra.
Podemos atribuir o insucesso de Yu Lan não ao cristianismo em si, mas ao próprio Yu Lan por se deter em linhas que fazem referência direta ao século XVI e ao período do Renascimento, quando começavam a surgir as ciências humanas, muito diferentes de como as conhecemos hoje: foram necessárias condições epistemológicas para deixar as regras da Semelhança serem sinônimo de Ordem; abandonada a divinatio, passou-se o período clássico a vigorar sob a identidade e a diferença das coisas para constituir um ordem classificatória com vista ao sentido comum, que só poderia acontecer com uma linguagem que se dispusesse a analisar ao invés de buscar o mistério escondido das coisas. É somente no período moderno, segundo Foucault, que passa a existir o homem enquanto sujeito e objeto das ciências humanas; enquanto fundamento de suas pesquisas e objeto de seu próprio saber, por essa mesma razão, entende-se o homem como o duplo empírico-transcendental. A própria natureza humana, como se pretendia explicar em épocas anteriores, principalmente com uma filosofia ou teologia, será agora compreendida como condições estruturais que permitem o surgimento de determinados saberes, inclusive, o homem enquanto saber. Seguindo a lógica, o homem torna-se necessário para se pensar e produzir saber, daí vem seu surgimento.
É pensando o homem dentro de sua finitude que encontramos posturas humanistas como a de Jung e Paulo Freire, em que não precisamos negar as consciências. O surgimento do homem nas ciências sociais traz a possibilidade de pensar condições em que o homem produz saber; de épocas que o homem produz saber sobre si mesmo sem questionar sob condições ele produz seu saber, visto que a natureza parece o reflexo de Deus – a Verdade.

Referências:

ALTMAN, Jack. 1001 Sonhos: Guia ilustrado de sonhos e seus significados. São Paulo, SP: Publifolha, 2003.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Ed. Especial. Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira 2012.

FOUCALT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Ed. 8. São Paulo, SP: Martins Fontes, 2000.

HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito: parte II. Petrópolis, RJ: Vozes, 1992.

JUNG, Carl Gustav. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Ed. 11.Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.

YU LAN, Dong. Identificados pelo Invocar. Ed. 2. São Paulo, SP: Árvore da Vida, 2010.


domingo, 3 de julho de 2016

Feminino e masculino: construções sociais ou arquétipos

Introdução

Atualmente está em voga certificar o feminino e o masculino como construções sociais. Fazem-no baseado nos estudos sobre gênero e sobre a condição da mulher nas sociedades e na história, donde as ciências sociais constituem sua cornucópia. Evidencia-se, graças a esses estudos, a existência do machismo, que privilegia os símbolos masculinos frente aos femininos e pressupõe formas de atuação para os portadores desses respectivos símbolos. Mais do que separar os símbolos em dois grupos, eles são divididos em símbolos para homens e símbolos para mulheres; os símbolos são vistos como naturais a determinado sexo, destinados a partir do nascimento: o pênis se propõe herdar tudo o que faz referência ao masculino, enquanto o a vagina é herdeira equivalente do universo feminino. Daí diz-se que esse ou aquele brinquedo é para meninos, que alguém cruza as pernas como uma mulher, que rosa não é cor de homem. E poderíamos muito bem concluir este texto nos dando conta deste processo de naturalização se não fosse por interferência de argumentos visando a biologia dos dois sexos:  corpos diferentes, formas de pensar diferentes, necessidades diferentes e uma série de diferenças que justificam as desigualdades sociais. Estes últimos argumentos se fundamentam numa visam arquetípica que procura dizer isto é da natureza do homem e isto é da natureza da mulher, ou ainda, existe uma divisão entre homem e mulher que é natural e que não pode ser igual. E a pergunta que fica é: feminino e masculino são construções sociais ou são condições inatas da espécie?

A construção social

            Por construção social devemos entender que as condições materiais, culturais, históricas, políticas, econômicas e simbólicas participam das relações sociais, das interações entre pessoas, do que se entende por sociedade e suas estratificações. A discussão seria rasa se reduzíssemos o aspecto social do sexo pela ação em si (o homem possui remuneração maior que a mulher pelo mesmo cargo, função e horas de trabalho) e não ao que provoca a ação, que é, por acaso, uma das finalidades da sociologia. Busca-se, portanto, encontrar as condições de existência que respondem por que a sociedade trata desigualmente os sexos?
            É necessário ter em mente que a sociedade não é apenas uma plataforma sob a qual somos plenamente livres para decidir como agiremos ou um ambiente inócuo de estímulos para o desenvolvimento de nossos corpos. As sociedades se organizam por um controle inerente a sua formação: existem normas, regras, limites, condutas. O desenvolvimento de um ser humano em sociedade prevê uma coerção de certos impulsos e desejos, canalizando essas energias para fins sociais, ou seja, para poder conviver com outras pessoas seguindo os pré-requisitos já comentados. Por este motivo é que não vemos pessoas se masturbando publicamente: é uma prática proibida pelo código social, que além de ser visto como comportamento imoral pelos seres sociais que aqui vivem, é inadmissível por um código de leis que chamando essa prática de atentado ao pudor tenta preservar a integridade de todos. Viver em sociedade é, em parte, atuar e manter a performance que esperam de você.
            A educação dos homens e mulheres imersos numa sociedade não deixa de estar sobre um controle social; a sociedade tolhe os impulsos e desejos de homens e mulheres baseados em seu sexo (no seu órgão genital). Negam ao menino brincar de boneca, a menina não pode subir em árvores, o menino não pode ter um vestido, a menina não deve brincar de lutinha, o menino não se maqueia, não tem como a menina não gostar de princesas da Disney.
Esses são alguns costumes sociais travestidos de naturais que são reproduzidos com frequência, e deles entende-se que posteriormente: o homem não brincando com bonecas brinca com figuras de ação (super-heróis, soldados, personagens com músculos desnecessariamente grandes), desenvolvendo sua virilidade e o combate para defender sua honra; suas roupas não poderiam ser um vestido para não lhe restringir os movimentos, as roupas folgadas lhe permitem melhor movimentação e sente confiança nos movimentos de seu corpo; a luta entre meninos é natural, em seu sentido social, para gerar a competição entre seus semelhantes, é uma das formas que se encontra de decidir o alpha do grupo, portanto, pretende ser pública, para que todos vejam, que depois passará de uma disputa física para uma disputa baseada no discurso, o que faz da política o tema preferido entre homens decididamente masculinos.
A maquiagem e a identificação com princesas de pouco servem para os homens numa sociedade machista (cujo termo justifico a seguir). A maquiagem leva a menina a se preocupar com sua aparência, é uma educação da estética disseminada socialmente; as princesas estão aí para serem resgatadas por príncipes de suas madrastas ou mesmo de suas famílias: o príncipe substituirá a figura do pai e a princesa se tornará mãe, devendo engravidar e ter herdeiros. A gravidez possui significações diferentes para o homem e para a mulher que vivem numa sociedade sexista: para a mulher será doar sua carne para gerar um filho, devendo alimentá-lo, cuidar dele e educá-lo minimamente; para o pai, o filho é o herdeiro de todas suas conquistas em batalhas passadas, ensinará o que significa tornar-se homem e como continuar disputando num mundo de lutas. A filha é a possibilidade de que algum homem a possua para ter filhos que carregarão seu legado.
O filho não continuará sua educação com a mãe por muito tempo, e por pressão social (conselhos, ritos sociais, identificação com os símbolos masculinos, ser alvo de chacotas por essa ou aquela ação) cederá ao universo masculino, se desvinculando dos símbolos femininos por completo, vendo neles uma repulsa, e se o controle social for eficiente, nojo. A filha seguirá sendo educada por sua mãe enquanto o pai serve de parâmetro sobre os símbolos masculinos e o que esperar de seu marido. Mais delicado ainda é confirmar que a figura amada do pai é praticamente divina para a menina, pois é nele que reside os símbolos de poder.
O homem quando está no mundo público, principalmente frente a outros homens, se porta confiante, com postura firme, seu olhar é mais atento, incita virilidade próximo a outros homens. Seria mentira dizer que todos os homens hoje em dia são assim, mas por uma seleção social, os mais fracos, efeminados, inseguros, menos combativos, tenderão a ser excluídos rapidamente dos grupos ou tratados por uma relação dominantes-dominado.
A mãe, aos olhos da menina, é frágil, histérica, está insatisfeita com a limpeza da casa, possui uma beleza que nunca é suficiente, entre tantas outras características suas.
 Sem contar que a mãe se preocupa demais com o corpo, o que pode mostrar, o que deve cobrir, mas isso a menina também descobrirá ao ser observada, ao primeiro comentário sobre seu corpo, com assédios frequentes. A menina nunca terá um corpo de que se orgulhar, o estranhará. Seu corpo será transformado em carne pelos olhos dos outros, por isso vive tão recolhida. Ela viverá uma vida difícil, pois deverá mostrar seu corpo-carne o suficiente para ser bela sem ser alvo de olhares clandestinos, daqueles que desejam pousar sua virilidade no corpo sensualizado da mulher como se ele pertencesse a quem o olha. O desconforto com seu corpo não está somente no ser observada, é nítido pelas roupas que usou na infância e pela maquiagem que este é seu destino. Ser bela é seu atributo maior; sua virtude é a beleza e sua temperança é feminilidade. A boneca, a vassoura, os brinquedos que imitam os móveis da casa corroboram para praticar os rituais que a esperam em sua vida adulta. Sua vida inteira está confinada à casa, à vida privada. A menina sabe que deverá que se casar, se não fosse para isso, de que serviria toda sua educação?
Os filhos tendem a imitar os pais por serem figuras de respeito, no fundo o respeito está fundado na mãe ser o troféu que o pai exibe aos amigos homens e o pai ser o Deus que a mãe exibe para as amigas mulheres. Ambos os sexos jogam as naturalizações sociais simplesmente porque o controle social contribuiu para a formação de uma visão natural das coisas. Se algo é natural, está dado e pronto. E não é como se a mulher não se sentisse valorizada nessa sociedade, as condições de existência são suficientes para que elas sintam-se tão importantes quanto os homens. Parte de suas angústias provocadas pelo tecido social nem poderiam ser expressas pensando em condições naturais de existência, como dever dar prazer ao marido ou ao cônjuge, satisfazer todas as vontades do companheiro, ser alvo de sua brutalidade, sentir-se inferior, ter sua autoestima ferida por um olhar. Por serem naturalizações entende-se que a mulher vem ao mundo predestinada a sofrer dessa forma, o que a mantém é seu papel de Mãe.
Essa educação diferenciada entre sexos é pesquisada cuidadosamente por Simone de Beauvoir em seu livro O Segundo Sexo: a experiência vivida, fazendo de minhas palavras ecos de sua obra eminente. Em outro sentido não tão distinto, Pierre Bourdieu nos apresenta essa situação desigual de educação dentro do seu conceito de campo, insinuando o combate entre os agentes por distinção.
Os dois sexos devem jogar incansavelmente as partidas com as peças que lhes foram dadas. Nesse jogo, os símbolos-peças não podem ser partilhados com o sexo ao qual eles não dizem respeito, um homem feminino ou uma mulher masculina são punidos por não jogarem direito.
Em nenhum momento expressei como participariam os homossexuais deste cenário. Eles também estariam no meio de todos esses símbolos, imerso num mundo em que deve ser masculino ou feminino. Os homossexuais tenderiam a escolher entre homens masculinos, mulheres femininas, homens femininos ou mulheres masculinas. A homossexualidade não significaria a vitória sobre esse jogo simbólico.
O sexo não define gênero, apenas constata seu órgão sexual. O gênero é definido socialmente, e aqui caímos no masculino e no feminino, também conhecido como papel social. A sexualidade apontaria o objeto de desejo. O erro de atribuir símbolos às pessoas é supor que o sexo define o gênero – ligar homens ao masculino e mulheres ao feminino - ou que os gays e lésbicas são todos femininos segundo a seguinte lógica: a) homens que não são viris são afeminados; b) homens que se relacionam afetivamente com outros homens não são viris; c) todas as mulheres são femininas. Mesmo os homossexuais, por reconhecerem no masculino o símbolo dominante, optam por ele quando se identificam com esse símbolo de poder.
As regras do jogo para todos os efeitos é bem simples: o masculino será dominante e o feminino será dominado, a educação, em seu sentido mais amplo, cuidará de distribuir os jogadores em cenários e situações sociais que (sem desconsiderar a biologia dos corpos) cuidará de aproximá-los ou não do símbolo dominante, e a mulher sempre está em desvantagem neste jogo. Por definição, o feminino seria tudo o que não é masculino, e o masculino representa a dominação dado as circunstâncias em que nossa sociedade está embasada.

A herança arquetípica

            Os arquétipos consistem em imagens e símbolos universais que são a base da vida da espécie humana. Os arquétipos, enquanto modelos primordiais, equivaleriam inclusive ao masculino e ao feminino, conhecido na psicologia analítica por animus – o arquétipo masculino no inconsciente da mulher – e anima – o arquétipo feminino no inconsciente do homem. Pelos arquétipos, compreendemos que nascemos com ambos (anima e animus), entretanto expressamos mais um arquétipo do que outro.
            Como consta no livro O Eu e o Inconsciente, de C. G. Jung, animus e anima seriam arquétipos opostos ao arquétipo da persona, que é como nos apresentamos para os outros. Uma pessoa que demonstrasse ser mais masculina em seus meios sociais por inferência dos já conhecidos controles sociais, teria uma anima reprimida. Em contraposição, o animus reprimido seria resultado de uma persona que deve apresentar-se feminina.
            Jung propõe que no inconsciente coletivo residem os sedimentos simbólicos das vidas passadas dos nossos ancestrais, sendo a humanidade herdeira de símbolos comuns e universais, o que gera discordância entre aqueles que justificam a existência do masculino e do feminino como socialmente construídas, pois para Jung, aparentemente, não seriam. Minha defesa aos arquétipos vem mostrar que a existência deles não prejudica em nada o que já foi exposto, mas vamos por partes.
            Primeiramente, Jung sempre buscou refutar o cunho místico de seus trabalhos, considerava-os ciência e várias vezes em seus livros precisava explicar que se tratava de ciência e não de misticismo, alquimia ou religião (pode parecer difícil de acreditar vindo de alguém que acreditava no poder curativo das mandalas e buscou comprovar a sincronicidade preparando o mapa astral de seus convidados). Seria minimamente justo que considerássemos o caráter científico de seus trabalhos e de seus arquétipos apenas para nos livrarmos de preconceito.
            Segundo, o inconsciente coletivo de Jung nunca está num plano místico. O inconsciente coletivo é herdado da mesma forma que se herdam genes, e quando ele aborda o tema, é comum referir-se à espécie: a psique do organismo de todos os seres humanos porta uma série de imagens que podem vir a manifestar-se de acordo com as experiências vividas pelo inconsciente pessoal.
            Terceiro, os estudos de Jung acontecem com base na psicanálise, filosofia, religião, alquimia e sempre sustentado pela probabilidade. Existem tantos traços comuns nas culturas e seus símbolos, como poderia isso ser acaso? (como seu estudo sobre sincronicidade).
            Voltando ao segundo ponto, que é o que nos interessa aqui. É consenso que todos possuímos uma psique que faz parte do organismo humano e não seria separada dele. Pensando no inconsciente sendo formado a partir de uma programação básica a todos os indivíduos, que é o que acontece quando pensamos na genética, estamos aptos a pensar o inconsciente em termos de evolução, mais precisamente de adaptação e ativação dos arquétipos do mesmo jeito que acontece a ativação de genes. Os arquétipos representam modelos básicos do comportamento instintivo, como consta Jung no livro Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo, ou seja, são anteriores à consciência e auxiliam seu lento desenvolvimento. Os comportamentos advindos dos arquétipos preveem tipos emocionais.
            As emoções também estão sujeitas ao aspecto adaptativo e evolutivo do ambiente, inclusive, Paul Ekman afirma em A Linguagem das Emoções que as emoções estão sujeitas a seleção natural e que existem expressões faciais universais e que poderiam ser reconhecidas em qualquer cultura do mundo (felicidade, tristeza, raiva, aversão). Uma de suas várias pesquisas envolveu o estudo das expressões de pessoas cegas para verificar se elas apresentavam o movimento muscular da face semelhante ao de pessoas dotadas de visão. Se as expressões fossem aprendidas, cada cultura definiria um conjunto de expressões faciais diferentes para as emoções. O que ele relata é que pessoas cegas, que não poderiam ter aprendido as expressões, movem os músculos que tornam reconhecível aquela emoção, como em expressões que indicam felicidade as pessoas curvarem a boca para cima e contraírem os músculos orbiculares do olho, nas expressões de nojo o músculo levantador do lábio ser acionado ou as sobrancelhas se abaixarem, ou ainda, as pálpebras ficarem semicerradas e os músculos da boca ficarem tensionados quando estamos com raiva. “Estas constatações me conduziram à conclusão de que nossa herança evolucionista contribui definitivamente para modelar nossas respostas emocionais” (EKMAN, 2011, p.43).
Os instintos do esquecido mundo selvagem viria a ter sua energia deslocada para o mundo social e da civilização, onde a sobrevivência acontece num ambiente diferente e a atenção para caçar uma presa e o medo para fugir do predador continuam a existir, embora sob novos contornos.
Richard J. Davidson, em O Estilo Emocional do Cérebro, escreve: “As propensões genéticas podem fazer com que uma criança seja direcionada a determinado estilo emocional, mas certas experiências e ambientes podem desviá-la de um caminho para outro.” (2013, p.98). O estilo emocional do cérebro é constituído por seis dimensões, segundo Davidson: resiliência, atitude, intuição social, autopercepção, sensibilidade ao contexto e atenção; essas dimensões estão intimamente ligadas com a ativação dos genes humanos que são herdados dos pais. O ambiente possui participação na ativação e desativação dos genes e consequentemente na fisiologia do corpo, o que afeta diretamente as emoções. Os comportamentos herdados não seriam aleatórios, mas decorrente do estilo emocional dos pais e poderiam ser modificados pelo ambiente, o que sugere a adaptação do cérebro as possíveis condições ambientais, onde o social está incluso.
Sob estas condições, parece tão improvável herdar imagens? No que consistiria a informação genética que desperta o estado de alerta ao vermos uma cobra ou uma aranha? Como seria possível identificar tais animais se não herdássemos imagens deles associadas ao hipotálamo e a consequente produção de adrenalina e cortisol?
O inconsciente coletivo, entretanto, não possui a capacidade de atribuir sentido às vivências, apenas geraria uma forma simbólica inicial que prepararia o indivíduo para o mundo esperado, onde reside aquele símbolo. Conforme este indivíduo vivenciasse situações e as culturas ele preencheria a forma do símbolo com um conteúdo que formaria seu inconsciente pessoal. Pode-se dizer, em analogia, que o arquétipo, sempre atuando no inconsciente, é desativado ou ativado pelo ambiente. Segundo Jung, “O processo simbólico é uma vivência na imagem e da imagem” (p.48, 2014).
A cultura não mudaria os símbolos no inconsciente, ressignificaria um conteúdo latente no inconsciente coletivo, e é por isso que a teoria dos arquétipos não interfere nas teorias da construção social dos sujeitos. A cultura participa da formação do sujeito (re)significando constante os símbolos herdados pelo inconsciente.
Lendo atentamente como Jung se refere ao animus e a anima em O Eu e o Inconsciente, parece menos uma descrição arquetípica e imutável a uma excelente analise psicológica da divisão sexual de seu tempo social. A começar por animus e anima não serem opostos, mas um mesmo arquétipo que é representado de forma dual numa sociedade em que a persona é impelida a mostrar-se heterossexual e que reconhece que existem símbolos para homens e para mulheres, independente de sua identidade de gênero (não se reconhece gênero nesse momento, as primeiras pesquisas com utilização do termo gênero surgem anos depois da primeira publicação de O Segundo Sexo, em 1949).
Jung provavelmente prepara os psicólogos de seu tempo para os complexos que irão encontrar no homem e na mulher pela sociedade exigir do primeiro uma persona autenticamente masculina, logo, impulsionada pelo animus, e na mulher uma representação feminina da persona, que possuiria laços de identidade com a anima. Apenas longe de observadores que induzem um comportamento neste homem e nesta mulher, é que estes indivíduos poderiam retirar a persona sufocante para sentirem-se mais a vontade, nos recônditos do lar, a entrarem em contato com a oposição de sua persona: a anima para os homens e o animus para as mulheres.
O casamento, que a essa altura do século XX possui poucos casamentos arranjados, é nada mais do que a identificação de seu animus/anima no(a) parceiro(a). Homens, por expressarem o animus a maior parte do tempo, procurariam numa esposa uma anima parecida com a sua, e a mulher identificaria seu animus reprimido num marido. A psique, nestes moldes sociais, reprime determinados símbolos em virtude de uma correspondência natural que supostamente possuem com o sexo em questão. O inconsciente pessoal se adequa ao social, mas o inconsciente sempre busca a reconciliação da anima e do animus por se tratarem de um mesmo arquétipo cindido por controle social, por isso gera tantos complexos nas culturas em que a divisão sexual acaba em desigualdade.
Jung comenta que os homens não apenas identificam sua parte feminina na mulher, como também projetam os complexos de sua anima na anima da perceira. E as mulheres projetariam as inibições de seu animus no animus do parceiro. Essas projeções acontecem principalmente porque homens e mulheres são ensinados socialmente a recusar alguns símbolos com os quais se identificam e a viverem apresentando apenas o que diz respeito à anima ou ao animus
A anima está para o capricho assim como o animus está para a opinião:

“Se eu tivesse que caracterizar, resumindo em poucas palavras, a diferença entre homem e mulher no tocante ao problema que nos ocupa, isto é, como se confrontam anima e animus, eu diria: assim como os caprichos do homem brotam de um fundo obscuro, do mesmo modo as opiniões  da mulher provêm de pressupostos apriorísticos inconscientes” (JUNG, p.97, 2014a).

Os arquétipos que representam o masculino e feminino, por se tratarem de um mesmo arquétipo, são representações precisas do yin yang: são os princípios que denotam a dualidade do mundo, forças opostas e complementares, princípios de todas as coisas. O inconsciente requer a anima e o animus, assim como yin requer yang, pois o movimento não acontece a partir de uma separação entre eles, como se um precisasse se libertar do outro, suas existências são duradouras porque eles possuem seu princípio oposto. Se o yin representa a Lua, a água, a noite e a passividade, o yang é o Sol, o fogo, o dia e a atividade. Yin está para anima assim como yang está para animus.
Se vemos no feminino uma inferioridade, isso mostra apenas uma incapacidade de lidar com os próprios arquétipos e evidencia uma enorme dificuldade da humanidade de reconciliar os símbolos. Se há inferioridade, há superioridade, e é esta dualidade que fere a dinâmica do inconsciente, pois a inferioridade não é significada como uma noção espacial, é precisamente a diferença de forças que existem entre os opostos e que incentivam a tensão constante. O mundo exacerba demais as qualidades do animus: a atividade, o estar por cima, o ser duro, a extroversão, gerando, portanto, tensão. É reconhecendo a anima como um igual e permitindo movimento à ela que devemos pensar em viver mais baixos, mais moles, mais introvertidamente, porque somente assim podemos encontrar o relaxamento. 




Hermafrodita com águia. Ilustração do livro Aurora Consurgens. Séc. XV.

Conclusão

Em momento nenhum é levado em conta a identidade de gênero de homens e mulheres, sendo coibidos e amedrontados por expressarem sua identidade e suas afinidades. A construção social do masculino e do feminino prejudicam os ambientes sociais por edificarem as experiências na violência simbólica.
O problema nunca foi existir masculino e feminino (que são dois lados da mesma moeda), pois seus símbolos participam de forma significativa para a formação do Self. A tensão reside na tentativa do masculino imobilizar, invalidar, desqualificar, negar, subsumir, suprimir e dominar o feminino. Pensando que vivemos numa época que se apoia no princípio de visão e divisão (termo bourdiesiano), o homem ao distanciar-se do feminino distancia-se de uma parte de si, nesse mesmo processo, convence a mulher que a melhor coisa a fazer seria distanciar-se dos símbolos masculinos, pois o homem não aceita um igual, precisa da diferença para subjugá-la.
Quando a visão vertical entre sexos e gêneros for substituída pela relaxante horizontalidade que abrange a diversidade, a diferença e as possibilidades como semelhantes de si, teremos cumprido um crepúsculo do homem e estaremos mais próximos dos raios lunares de uma humanidade; quando o mundo de lutas e disputas passe a ser um mundo de boa convivência e respeito, podemos dizer que a identidade poderá ser experimentada com sinceridade e solidariedade entre os sujeitos, que sendo simultaneamente masculinos e femininos, não precisarão identificar-se como isto ou aquilo. Apenas serão e todos compreenderão sua identidade manifesta na liberdade de aproximar-se de qualquer símbolo que expresse seu Eu.

Referências

BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo II: a experiência vivida. São Paulo:Difusão Europeia do Livro, 1967.

BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989.

DAVIDSON, Richard J. O Estilo Emocional do Cérebro. Rio de Janeiro: Sextante, 2013.

EKMAN, Paul. A Linguagem das Emoções. São Paulo: Lua de Papel. 2011.

JUNG, C. G. O Eu e o Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 2014a.


JUNG, C. G. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Vozes, 2014b.