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sábado, 23 de dezembro de 2017

A ilha itinerante (parte 1)

Chove do lado de fora do laboratório. Leonel manuseia com cuidado um crânio recém- chegado do sítio arqueológico. Deve apenas enumerar a amostra e guardá-la em seguida, mas perde-se nos vestígios que as eras deixaram, permitindo-o fantasiar uma vida inteira naquele pequeno objeto que carregava em mãos. Sua neta, Alice, entra na sala, inquieta pela demora do avô que vinha prometendo terminar logo o trabalho e irem para casa comer os pães-de-queijo restantes na geladeira.
- Vovô, vai logo!
- Só mais um pouco...
- Você já disse isso da última vez – Alice interrompe impaciente – Eu quero ir embora! Não tem nada para fazer aqui!
Leonel não está tão motivado para voltar para casa, sua filha Bianca continua irritada. Sentir o olhar ameaçador dela ao dizer boa noite o exaure só de pensar. Alice coloca-o contra a parede com seu pequeno surto. Como esperado de alguém experiente, Leonel não dá atenção ao pedido da neta, ao invés disso, mantém a postura e fala com naturalidade, indicando o crânio em sua mão:
- Justo agora que eu ia te apresentar esta sereia?
Alice arregala os olhos e puxa a barra da calça do avô.
- Deixa eu ver, coloca na minha mão - ela estende o braço tentando alcançar o objeto.
Leonel solta uma exclamação.
- O que você acha que tá fazendo? Não posso te dar isso aqui não. Pega seu banquinho. Vai lá.
Num trote desengonçado, Alice alcança o banquinho do lado da sala, arrasta-o para perto do avô, senta-se nele e põe-se a sacudir as perninhas.
- Como eu ia dizendo, esta é a cabeça de uma sereia. Mas não qualquer sereia, ela é uma guerreira! Na verdade ela é mais que uma guerreira, Ali, é uma tritã. Sabe o que são tritões?
A menina diz baixinho que não sabe, ainda balançando as perninhas como se estivesse num balanço. Seus olhos grandes encontram os do avô.
- É um povo antigo vivendo nos mares. Se parecem muito com peixes, mas muitos deles têm a aparência de pessoas com nadadeiras, escamas, aquelas peles que os sapos têm entre os dedos...
- Então eles são meio sapos também?
- Não, são meio peixes.
- Mas você disse que eles têm pele de sapo.
- Não, meu amor, é parecido, eles não têm nada a ver com os sapos, só parece. Tá bom?
- Tá.
- O nome dela é um pouco complicado de lembrar, era Irmadhala, mas podemos chamá-la de Irma, é mais fácil de falar. Ela vivia num mar chamado Mar de Ravel. Era um lugar com ondas grandes, as águas eram agitadas e tinham monstros nela. Alguns barcos afundavam de tão fortes que eram esses bichos, e eram bem agressivos, bravos demais.
- Tem tubarões?
- Tem sim.
- Tem baleias?
- Não tem.
- Tem sim. No meu livro tem uma baleia e uma lula e a lula tá comendo a baleia.
- Mas como você sabe o que tem e o que não tem? Você já foi pro Mar de Ravel alguma vez?
- Não fui, mas tem no meu livro e ele é dos oceanos e tem que ter baleias nos oceanos porque todo oceano tem baleias. – Alice começa a brincar de morder os lábios - Eu nunca fui no oceano vovô.
Alice contava tudo pausadamente, como se separasse as partes mais importantes.
- Olha, tem lulas aqui sim, elas são enormes. Bem grandes. As baleias estão em outro lugar, não passam por ali. É verdade, existem baleias nos oceanos, mas esse aqui é um mar. Lembra que eu te disse que o mar é menor que um oceano? Um oceano é maior do que um mar.
- Então não tem baleias? – sua voz mingou com a pergunta.
- Não, mas têm lulas, tubarões, serpentes gigantes e, o principal, um palácio enorme de coral – Leonel, numa atuação, ergueu seus olhos para o alto e levantou-se da cadeira erguendo os braços.
Ele tomou a mão da neta e dispararam para um pedaço de coral numa bancada do outro lado da sala em cima de uma placa de madeira. Levantou Alice no colo. Sem dizer nada a menina aproximou as mãos do cnidário de calcário.
                - Essa pedra é bem dura.
                - Não é uma pedra, Ali, é um animal. A parte dura é o esqueleto dela. Elas comem peixinhos também, sabia? E animais menores ainda.
                - Ela não se mexe.
                - Alguns animais não se mexem.
                Alice continuou tateando o que a lembrava duma rocha, daquelas que ficavam na beira do rio e gostava de brincar de lançá-las à outra margem. Leonel, ao não receber nenhuma resposta, continuou.
                - Alguns corais são tão grandes quanto as baleias. Muito maiores. Alguns peixinhos usam os corais para se esconder de outros peixes maiores ou até para morar por lá. O palácio de coral da Irma não é diferente, também tem peixinhos vivendo por lá. Têm tritões, que são peixes grandes. A casa deles é um coral. Já pensou que legal se sua casa fosse um coral? Você moraria dentro de um ser vivo?
                - Só não quero que ele me coma – ela solta uma risadinha, escondendo o rosto no peito de Leonel.
Deep Sea Mermaid Spitpaint de Robert Powell
- Você é muito grande para virar comida. De volta à história – Leonel devolve-a ao chão – Vou pular para a parte que importa. A tritã, num passeio a uma praia, encontra um humano. Ele não está sozinho, tem um outro garoto do lado dele. É seu irmão. Já viu aquelas pessoas que olham fixamente para você?
                - A mamãe olha bastante pra mim quando eu bagunço a sala.
               - Não desse tipo de olhar. Não é o olhar de quem está bravo, é um tipo de olhar de alguém que está enfeitiçado, meio paralisado, sem saber se mover direito.
                - Tem um menino da minha escola que olha assim pras pessoas. Ele é estranho.
                - Estranho como?
               - Ele tem medo de tudo. A tia sempre fala com ele. Ela pede pra gente brincar com ele, vovô. Eu não consigo ficar olhando pra ele, me dá medo.
                Leonel rumina alguns sons.
                - Não é bem um olhar de medo, mas é um olhar que incomoda. Quando Irma, a tritã, olha para esse outro garoto na praia, ela se assusta. Mas veja bem, o menino não está assustado. Ele quer a sereia.
                - Ele gosta dela?
                - Gosta, mas ela não gosta dele.
                - Então eles não vão casar.
                - Não mesmo, mas ele quer tanto que obrigaria a sereia, digo, tritã, a casar-se com ele, mesmo que isso a fizesse infeliz.
                - Ele é mau, vovô?
                Um desconforto atinge Leonel. Ele não quer responder essa pergunta, mas cede.
                - Um pouco. Bem, ela vai embora da praia, não quer ficar por ali. Os garotos também vão embora, não têm mais nada para fazer por ali. Alguns dias depois a sereia... Céus! Por que não lembro a porcaria da palavra? – Alice emite uma risada gostosa – Não repita essas coisas. Eu também não posso dizer, às vezes escapam.
                - Tá bom, vovô.
                - Bem, a tritã retorna à praia dias depois. O mais velho dos irmãos, o que não olhou assustadoramente para Irma, encontra ela. Ela não se sente ameaçada, ele parece ser uma boa pessoa. Eles conversam muito. Conversam sobre suas vidas, suas cidades, seus lares, seus trabalhos, seus sonhos, e ficam conversando por muito tempo, Alice. Eles só param quando anoitece, aí vão embora. Eles não podem se encontrar sempre, ele é um jovem pescador. Tem um barco e sobe nele todos os dias para pescar. Seu irmão participa da pescaria junto com ele, por isso Irma mantém distância do barco, nem se atreve a chegar perto dele.
                Um toque de celular interrompe a história.
                - Deve ser sua mãe.
                Leonel retira o celular do bolso e atende.
                - Alô.
                Uma voz feminina responde em tom inexpressivo.
                - Vocês estão voltando? – É sua filha, Bianca.
                - Não, estamos no laboratório...
                - Voltem logo então, estão demorando.
                A ligação é encerrada. Leonel passa alguns segundos olhando para o celular. A chuva do lado de fora se intensifica, chegando a bater na janela. Parecem pequenos pedaços de pedra contra o vidro. Num passe de mágica, Alice surge entre suas pernas grandes com as mãozinhas apoiadas na barriga do avô. Olha Loenel com alguma desconfiança e pergunta se ele está com fome. Leonel ri.
               - Estou sim, precisamos ir atrás daqueles pães-de-queijo. Fizemos muitos, não é?
              Leonel ergue Alice no colo. Guarda o crânio da suposta “sereia” no armário, tranca o laboratório e corre em disparada para o Gol cinza, cobrindo a cabeça de Alice com o jaleco branco. Leonel senta-a na cadeirinha no banco de trás primeiro para depois acomodar-se no banco do motorista.
                - Passe o cinto, Alice.
                - Aham. – Leonel ouve um clique no banco de trás.
                - O que ouviremos, meu amor?
                - Eu quero Pato Fu.
                - Hum, já estou me cansando desse CD, precisamos mudar a playlist.
                Leonel liga o rádio e pressiona o botão play. Alice vinha ouvindo o álbum Música de Brinquedo há quase um mês infatigavelmente. Seu gosto começa quando ela vai com o Leonel e sua mãe para uma apresentação do grupo na cidade. Ela fica encantada com a performance, como todas as outras crianças que estavam ali. Dançou as músicas a noite inteira, passando quase todo o show em pé em sua cadeira para ver o palco. Os fantoches a divertiam cantando ou fazendo bobagens sobre a cortina que escondia seus titeriteiros. Leonel comprou o CD, achou que fosse uma abertura para inseri-las no mundo da música. Um mês depois se arrepende de manter o CD o tempo todo no carro, já não consegue mais ouvir seu Tropicália como antes.
                “Misere nobis, senhor, dai-me o requiem dessa coisa” pensa Leonel revirando os olhos ao ouvir Love Me Tender na voz da Fernanda Takai. Alice acompanha a música baixinho, inventando algumas palavras, desvendando outras.

                Love me tender, love me true.

                O coração de Leonel se aperta. Alice não consegue percebe, está distraída com a chuva e a música, mas seu avô sente-se diminuir a cada palavra cantada, a cada metro mais perto de casa.

                And we will never apart.

                Leonel atravessa um sinal vermelho. A injeção do carro continua ruim, é melhor não parar. Quer chegar rápido em casa, mas não quer ver Bianca indiferente, preferia que ela estivesse brava, irritada ou o que fosse. É sempre pior quando ela está séria: o silêncio torna-se navalha, as palavras causam arrepios. Atrapalha-se todo ao responder as perguntas.
A música está acabando.

                For my Darling, I love you and I always will.

                Um breve silêncio acompanha o pensamento de Leonel antes de ser quebrado pelos batuques de Sonífera Ilha e sons irritantes de um ratinho. Alice canta “ué, ué” fora do tempo da música e usando a mesma nota, embora tente acompanhar as crianças da música enquanto bate na cadeirinha para marcar o ritmo, também descompassado.

                Não posso mais viver assim ao seu ladinho
                Por isso colo meu ouvido no radinho

              Leonel deixa de prestar atenção na música até Alice voltar a acompanhar a música sem mudar a nota a ser cantada.
                - Sonífera ilha!
                O carro para lado de fora da casa. Chegam antes de terminar a música. Quando ela termina Leonel desliga o carro. Ele não sabe se dormirá ali esta noite.
                - Vamos pegar os pães-de-queijo, meu anjo.
                Retira o cinto de Alice. Tranca o carro. Abre o portão da entrada. Atravessa a garagem e destranca a porta da sala sem maiores expectativas.

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Sala de aula democrática

Introdução
Este trabalho consiste num relatório de estágio oferecido como trabalho final para a disciplina EP-378B (Ensino e Estágio nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental) na Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas, ministrada pela Professora Doutora Marcia Malavazi em 2016 e o auxiliar de sala Robson. 
Buscamos acompanhar uma sala de aula de 4º ano de uma Escola Estadual em Campinas, localizada num bairro de perfil socioeconômico baixo de região urbanizada, próximo a centros comerciais, shoppings e prédios da cidade. As ruas são pacíficas para os moradores, entretanto, os visitantes mantém-se atentos, como se entrassem numa zona de risco. A mudança de um ambiente social de costume dos visitantes para este novo lugar, relacionado à violência, justifica a sensação de desconforto .
Nas salas de aula foi observada a indisciplina dos alunos por não quererem cumprir as regras impostas pela professora. Este relatório busca explicar esse comportamento inadequado dos alunos, que não são os tipos obediente e respeitoso que a professora esperava, e as intervenções em sala de aula para colaborar com a disciplina dos alunos, que só foi possível adotando medidas democráticas dentro da sala de aula e mudando a concepção sobre o aluno, regras e a própria disciplina, tanto por parte da professora como dos alunos.

Considerações iniciais
A saber, o escopo pelo qual este trabalho avalia a escola consolida-se na perspectiva de incentivo à cidadania na educação. Por tratar-se de um eixo transversal entendemos que ele acontece de forma transdisciplinar e corrobora com as Leis de Diretrizes de Base da Educação Nacional para a formação do cidadão:

Art. 2º: A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (BRASIL, 1996).

As quais somam-se aos interesses das Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica, prescrevendo o seguinte: “a formação escolar é o alicerce indispensável e condição primeira para o exercício pleno da cidadania e o acesso aos direitos sociais, econômicos, civis e políticos” (BRASIL, p.4, 2013), e logo em seguida explicita que “A Educação deve proporcionar o desenvolvimento humano na sua plenitude em condições de liberdade e dignidade, respeitando e valorizando as diferenças” (BRASIL, p.4, 2013). Lembrando que o conceito de cidadania está sempre acompanhado da dignidade, sendo sua realização possível visando a educação referida nos documentos nacionais citados anteriormente.
Portanto, antes de ser um espaço de conteúdos, a escola é composta por relações de conhecimento com o mundo (CHARLOT, 2000), gerando sensações ao conhecer que são experimentadas pelos alunos e todos os segmentos da escola. Ao estabelecer uma relação com um objeto, o sujeito está imbrincado numa aprendizagem que lhe diz respeito uma vez que são seus sentidos, e não outros, voltados ao processo de conhecer esse objeto, gerando, assim, estruturas que passam por processos de assimilação e acomodação, formando o pensamento (LIMA, 1984; PIAGET, 2011). É a partir desta perspectiva que consideramos a diversidade: partindo de um corpo perceptivo sujeito às interações que, de formas muito particulares, constroem a personalidade e constituem o pensamento do indivíduo. Consequentemente, também elaboram estratégias de resolução de conflitos, moralidade, reflexão, criticidade e cidadania.
Não é pensado aqui que a educação para a cidadania, essencial para o exercício da democracia, seja desenvolvida sem pensar esses pressupostos teóricos construtivistas já muito arraigados na educação brasileira, mesmo na construção das políticas educacionais.

Análise do Projeto Pedagógico
O Projeto Pedagógico da escola (PP) está construído de acordo com as asserções positivadas em lei, tendo em vista, em resumo, construir um bom ambiente de convívio para que os educandos possam desenvolver-se integralmente no ambiente escolar:

É papel da Equipe Gestora coordenar o processo de democratização e participação nas decisões da escola e garantir as condições necessárias para que isto ocorra dentro dos limites de sua atuação. Também temos ciência de que o papel da escola atualmente é o de formar seres capazes de criar, em cooperação com os demais, uma ordem social na qual se possa viver com dignidade. Diante disso faz-se necessário proporcionar ao aluno formação e informação para o exercício da plena cidadania (PP, 2015).

Seguindo esta mesma intenção, os objetivos gerais do ciclo II abarcam a cidadania como fim, como explícito em: “(...) consideramos que todos os conhecimentos são inerentes a vida cotidiana, de forma que os alunos apropriem-se destes conhecimentos para que possam exercer plenamente sua cidadania.” (PP, 2015). Como este trabalho retrata a realidade de uma sala de aula de 4º ano, faz-se necessário explicitar os objetivos que se interessam pela educação cidadã.
A cidadania é um fim, tendo em vista que requer o amadurecimento das funções do pensamento da criança e criação de estruturas adequadas para a resolução de conflitos tendo em vista o reconhecimento da diversidade, o respeito, desenvolvimento da autoestima, formação de uma consciência de valores, a construção do conceito de justiça, sendo que todas essas numerações só são possíveis com a equilibração das estruturas do pensamento, segundo Piaget (2011). Ou seja, o exercício da cidadania exige um processo de formação da consciência cidadã que não será adquirido sem desequilíbrios, conflitos, choques ou isolamento da criança de outros indivíduos semelhantes a ela.
A justiça, a autoestima, o respeito, a empatia, o compromisso e a criação de valores são fins de um processo educativo, não meios desse processo; existem estágios do desenvolvimento para a construção desses fins, os quais supõem uso desses fins, mas eles não são ferramentas a serem utilizadas ora ou outra, são interiorizações do indivíduo, assimiladas e acomodadas em estruturas do pensamento e são partes integrante do indivíduo. Depois de interiorizadas (de completado os objetivos da educação) é que o educando pode utilizá-las como recursos-meio em suas convivências. Com isso, pretendemos enunciar que vias o PP deveria recorrer para implementar parte de sua proposta na escola: o exercício da cidadania.

As experiências na sala de aula
O primeiro dia em sala de aula não foi na turma onde despendi maior parte do tempo de observação, foi numa turma do 1º ano com 26 alunos, da mesma escola. Na aula de leitura as crianças eram efetivamente dinâmicas, escandalosas e desrespeitosas. Não e nenhum exagero categorizar o estado da sala como caótico. A professora (nova na escola) levou mais de meia hora para acalmar os ânimos das crianças, recorrendo inicialmente a palavras de gentilezas, seguidas de ordens e por fim berros. Esgotados seus recursos, as crianças continuaram a se divertir (ou tentar não se entediar), reduzindo o barulho e a dispersão quando suas energias encontravam-se mais estáveis. O problema maior, depois dessa quase uma hora pedindo silencia e atenção aos alunos, foram alunos específicos na sala de aula que não se incomodavam por serem repreendidos, jogavam objetos nos colegas e riam da professora. Parecia um ambiente inóspito para qualquer tipo de ensino ou aprendizagens voltadas para o currículo escolar e seus eixos transversais.
Foi somente com a chegada da professora titular que as crianças se comportaram. A bagunça parou e a ordem foi instaurada tão rapidamente que invadiria qualquer um de curiosidade – por que as crianças passaram a ficar em silêncio só agora?
Foi com este questionamento e com a inteção de trabalhar a moralidade na sala de aula que o relato segue para a turma de 4º ano  com 25 alunos. Na nova turma não foi percebido tanta desobediência (com todas as ressalvas necessárias à palavra), apenas um descompromisso com as atividades. Estar na sala de aula parecia um fardo para os alunos. A professora precisava impor-se demais para corrigir o comportamento em sala de aula e fazê-los cumprir as tarefas exigidas.





Intervenções
Pensando na boa convivência em sala de aula e com leituras prévias sobre salas de aulas construtivistas – corrente pedagógica em que encontramos o tema moralidade e o desenvolvimento moral evidentes – foi pensado juntamente com a professora responsável uma forma de questionar os alunos que os fizessem falar sobre suas impressões da sala de aula.
Inicialmente foram elaboradas as seguintes perguntas:
1 – Você acha sua sala de aula indisciplinada ?
2 – Você acha que contribui para a indisciplina da sala de aula? Como?
3 – Como você acha que a sala pode tornar-se mais disciplinada?
4 – Você acha que consegue contribuir para a disciplina da sua sala de                       aula? Como?

Junto com a professora foi discutido como seria melhor agir e decidimos resumir o questionário à pergunta 4. Também decidimos trabalhá-la em grupos e que seria precedida de uma mesa-redonda sobre o comportamento em sala de aula.
Reservamos um dia inteiro para introduzir os alunos à ideia de que a sala de aula pode ser um ambiente agradável para todos. A mesa-redonda iniciou-se com um levantamento das percepções dos alunos sobre o espaço da sala de aula; foi perguntado aos alunos como eles completariam a seguinte frase: vejo que minha sala de aula é _______. O espaço em branco foi completado com as seguintes palavras: desrespeitosa, chata, falante, briguenta frescurenta, cheia de bullying, entre outras contemplando a perspectiva negativa que as crianças possuem de sua sala de aula.
Em seguida foi perguntado que valores elas consideravam importantes para solucionar os inconvenientes da sala de aula. Foram listados quatro: respeito, educação, compromisso e bom comportamento. Educação foi evidentemente o valor com mais repercussão na sala de aula. Também foi perguntado quantos acreditavam que a sala de aula podia se transformar num espaço onde esses valores aconteciam.. Dos 25 alunos, apenas 1 (considerado indisciplinado pela professora) acreditava na impossibilidade dessa mudança.
Os alunos também sugeriam formas de melhorar a sala de aula, entre elas estão: fazer atividades fora da sala de aula, aumentar o tempo do intervalo, sair mais cedo da escola, a professora tornar os conteúdos mais interessantes. Vale informar que também perguntamos se os alunos gostariam de estar na escola, quando iniciamos a mesa-redonda. A maioria dos alunos (mais ou menos metade da sala) não gostariam de estar na escola.
A pergunta final, que encaminhou os trabalhos em grupos, consistiu em: como tornamos a sala de aula um lugar agradável para todos? Dessa vez foi reservado um tempo maior para a elaboração das propostas em cartolina. Esta proposta mostrou-se difícil para os alunos: eles perguntavam pela resposta certa e pediam para explicar a proposta diversas vezes. Parecia custoso ter de pensar em algo que poderia ser respondido de uma forma tão livre. Tornar a sala de aula agradável não foi uma tarefa fácil pois não requeria uma resposta certa, e quando isto era informado a eles a confusão aumentava. Ao dizermos “A resposta estará certa quando todo o grupo concordar com ela” só contribuía para fazer a tarefa algo mais difícil.
        Nos trabalhos com as cartolinas as crianças reviram seus comportamentos, mencionando que algumas atitudes bem comuns na sala de aula, como gritar, podem não ser bem vindas ao convívio cotidiano. Alguns grupos propuseram a opção de levantar a mão para responder as perguntas, apesar de esta já ser uma estratégia adotada pela professora, que agora parte da iniciativa dos alunos em usá-la. Outras ações, tais como, não incomodar o colega, não conversar muito ou não xingar foram reconhecidas como ações necessárias para uma sala agradável. 

Justificativas e bases teóricas das intervenções
Justifica-se a intervenção nesta escola e com a proposta acima mencionada pelo desconforto da professora e dos alunos com a sala de aula, gerando um ambiente inapropriado para ser chamado de espaço de ensino, visto que o que predominava eram os conflitos entre os alunos e entre alunos e professor. Como mencionado anteriormente, o objetivo foi criar um ambiente confortável para todos os envolvidos no processos educativo, por este motivo, seguimos com as bases teóricas que direcionaram as atividades e as ações de intervenção pedagógica.
Os estudos sobre o surgimento da moralidade de Piaget foram muito utilizados. Os estágio de morais do homem de Piaget ajudaram a compreender como o comportamento da sala mostrava-se naquele momento e como poderia vir a demonstrar a reciprocidade, solidariedade e respeito mútuo. As leituras de Vinha (2000) sobre Piaget sempre ressaltam que a moralidade é “resultante das relações estabelecidas pelo sujeito com esses ambientes” (p.41, 2000). Logo, a preparação do ambiente que favoreça a construção dos próprios valores é essencial.
A moralidade pode ser traduzida em como eu devo agir perante o outro; está implícita a ideia de julgamento e de que a avaliação e aprovação que o outro faz de mim é decisiva para a criação do juízo moral. São esses juízos que levam o sujeito a obedecer as regras, é assim que se cria um amor e medo pelas regras, surgindo daí, também, um respeito. Segundo Vinha (2000), o cumprimento às regras acontece inicialmente pelo respeito que nutrimos por alguém que cria essas regras (como acontece com as crianças em estado de heteronomia, geralmente entre 2–6 anos, as quais apenas obedecem as regras sem compreender sua necessidade). O respeito é compreendido aqui como um conjunto de afetos que a criança nutre por um adulto (uma autoridade) e o temor que possui por esse mesmo adulto (que pode muito bem ser, também, o medo de perder o amor desta autoridade). O excesso de amor dedicado à criança pode vir a preservar a anomia da criança (não existem regras a serem cumpridas) e a percepção constante do medo à um adulto pela criança não desenvolve sua autonomia, sendo levada a permanecer num estado de heteronomia.
O que se buscou nesta experiência de estágio foi justamente desenvolver a autonomia de uma sala de aula: um estado de criação e compreensão de regras, bem como a capacidade de discuti-las com outras pessoas que estão sujeitas a mesma regra e compreender a necessidade dessa regra (e se ela é necessária).

Referências bibliográficas
BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei nº 9394, de 20 de dezembro de 1996.
________. Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica/ Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Diretoria de Currículos e Educação Integral. Brasília, 2013.
CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Porto Alegre, RS: Artmed, 2000.
DRABACH, Nadia Pedrotti. As formas de provimento à função de diretor escolar no Brasil a partir da reforma do estado de 1995. Disponível em: . Acesso em: 25/04/2016.
LIMA, Lauro de Oliveira. A construção do homem segundo Piaget: (uma teoria da educação). São Paulo, SP: Summus Editorial, 1984.
LOPES, Natalia Francisca Mezzari. O Diretor no processo de democratização da escola pública. IX ANPED Sul – Seminário em educação da Região do Sul, 2012.
PIAGET, Jean. Seis Estudos de psicologia. 25. Ed. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária, 2011.
VINHA, Telma Pileggi. O educador e a moralidade infantil: uma visão construtivista. São Paulo, SP; Campinas, SP: FAPESP: Mercado de Letras, 2000.

Charge de Humberto Pessoa: Retirada de: . Acesso em: 21/12/2017.

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Belo esotérico

Louis Comfort Tiffany. 
Landscape with Figure.
Óleo sobre papel, 22,8 x 17,8 cm. 
Charles Hosmer Morse
Museum of American Art, 
Winter Park, USA. 1870.

De julgamentos ferozes, lamentos
De atos salvacionistas, desalentos
De linguagem contraída, adventos

Da simplicidade, alegria
Da cumplicidade, simpatia
Da hora passada, sintonia

Para pés perdidos
Para olhos incompreendidos
Para corações angustiados

Dois amigos queridos

- Mal informado!
- Eu? Me calo.
- Inverterado!
- Mas como?
- Não fala dos viados!
Louis Comfort Tiffany. Boys fishing.
Óleo sobre tela ,40,6 x 50,8 cm. 1900. 
- Não falo.
- Seu falo!
- Meu falo? Coitado!
- Engraçado?
- Mal interpretado!
- Estou errado?
- Um pouco exaltado.
- Te conheço!
- Mereço!
- Ué! Não é mesmo?
- Te conheço?
- Nenhum pouco.
- Olha só!
- Não dá no mesmo.
- Então desapareço.
- Macho nojento!
- Mal informado!
- Tá pirado?
- Encolerizado.
- Coitado...
- Sabe?
- Que?
- Ao diabo!
- Não se conhece.
- Não me conheço!
- Tô sabendo.
- Vai aprendendo.
- Mas eu to dizendo!
- Descompreendendo.
- Te fortalecendo!
- Só se convencendo.
- Sabe?
- Que?
- Não te reconheço!

Os usos de cultura em A Reprodução

Avaliação final entregue para a disciplina EP 191B (Seminário de pesquisa - cultura, sistemas de ensino e reprodução) em Novembro de 2017. Agradecimentos especiais ao professor responsável pela disciplina, Maurício Érnica, pelo intenso envolvimento na leitura conjunta da obra A Reprodução.

A cultura aparece como um conceito central para a compreensão da teoria sociológica de Bourdieu, tanto na noção de violência simbólica quanto de capital cultural e outros termos igualmente relevantes para a interpretação de sua obra. A Reprodução[1], escrito em coautoria com Jean-Claude Passeron, obra na qual se propõe uma análise e teorização do sistema de ensino francês, será privilegiada aqui. Mais do que propor um verbete sobre o que é cultura para Pierre Bourdieu, nos interessa verificar como o sociólogo constrói sua noção de cultura a partir dos usos sociais da cultura presentes em A Reprodução, acompanhada de outros escritos.
            Os grupos ou classes serão os detentores e produtores de cultura, não de uma cultura unitária, mas de culturas cultivadas em seus respectivos grupos ou classes. Estes, por sua vez, na condição de agentes sociais que incorporaram disposições duráveis ao longo de suas vidas em diferentes campos, disputarão entre si o prestígio social consagrado pelos diferentes capitais simbólicos.
            O sistema de ensino será a instância encarregada de reproduzir a cultura de um grupo ou classe entre outros grupos ou classes (proposição 4.1[2]), seja por aculturação ou endoculturação, como tentativa de uniformizar os interesses dos vários segmentos culturais em disputa para atender um corpo coerente de crenças, valores e ideias. A escola, em sua função de ensino da cultura, transmite apenas o que é digno de ser transmitido: a cultura legítima, nada mais é que a cultura arbitrariamente selecionada e catalogada para servir de artifício de dominação de um grupo ou classe a outros. (prop. 2.2.1 e 2.3.1)
Apenas por esta breve introdução, podemos assegurar que Bourdieu distancia-se de uma noção de cultura prevalente na França entre os séculos 18 e 20: de um universalismo cultural ou da cultura como processo civilizatório[3]. Se nesse período a cultura carrega em si a promessa de progresso de um povo através da instrução de saberes humanos acumulados, para o bearniense a cultura que se propõe universal ou natural à humanidade está imbuída de violência simbólica em seu processo de consolidação (prop. 1.2.1).
A concepção de arbitrário cultural é necessária para denotar o relativismo cultural empregado por Bourdieu às diferenças observadas entre os mais variados grupos dentro do sistema escolar (e mesmo fora dele). Se a ação pedagógica é a imposição de um arbitrário cultural e toda cultura requer a ação pedagógica para ser transmitida, logo toda cultura ocorre sob a forma de uma imposição arbitrária dos interesses objetivos dos grupos ou classes dominantes (prop. 1.2.2 e 1.2.3).
Dizer que existe uma separação entre grupos dominantes e dominados implica numa hierarquização das classes sociais que se fazem mais explícitas nos períodos históricos de industrialização com a hierarquização das posições e funções de trabalho. Nisto a cultura toma outra roupagem, não sendo a cultura escolar comum a todos os grupos justifica-se a noção de arbitrário cultural, cujo aprendizado significa a apropriação de uma cultura fragmentada. Talvez este seja o ponto de maior interesse para explicar porque os estudantes parisienses de classes populares da pesquisa de Bourdieu e Passeron dificilmente serão, apesar de sua boa vontade cultural (prop. 2.1.2.3) evidente pelo alto nível de desempenho no Quadro 2 (Cuadro N.º 2)[4], como os estudantes parisienses de classes superiores.
Enquanto um grupo (dominado) cede às forças simbólicas que legitimam um dado conteúdo escolar como cultura legítima (prop. 3.2.2.1.1 e 3.2.2.1.3), podendo até acreditar que pelas aprovações nas avaliações escolares serem detentores dessa cultura, podem não ser capazes de manipular com a mesma expertise as práticas que os sujeitos nascidos no grupo (dominante) que é reconhecido e legitimado como portador (legítimo) daquela cultura escolar (prop. 3.3.2.3.1).
            O currículo escolar promove o ensino de uma parcela da cultura do grupo dominante. No sistema escolar a cultura dominante é rearranjada por retalhos culturais propícios ao domínio prático, insuficiente, embora necessário, para o domínio simbólico esperado dos estudantes pela escola e seus avaliadores.
Assim, o domínio simbólico a ser realizado com excelência pelos agentes será mais ou menos prejudicado em decorrência da distância do domínio prático entre o trabalho pedagógico secundário oferecido pela escola e sua primeira educação, tipicamente familiar (prop. 3.3.2, 3.3.3.1, 3.3.3.3 e 3.3.3.4). A escola mostra-se, nestes termos, desencorajadora de culturas ilegítimas (prop. 3.2.2.1.2, 3.2.2.1.3 e 3.3.1.1), prometendo, inclusive, através de uma reeducação de alguns alunos sua salvação cultural.[5]
            A cultura permite ao grupo pensar logicamente através das mesmas categorias, estabelecendo lugares comuns para ocorrência da comunicação. A cultura dominante, portanto, cria esse lugar comum no qual o dominando é capaz de apreciar e compreender os constructos lógicos de seus dominantes, incorporando-os a sua prática, fazendo da cultura desse outro lugar a sua própria. O sujeito dominado produz e reproduz as regras desse lugar novo de forma que o dominado contribui com a própria dominação[6]. A cultura surge então como forma de dominação para Bourdieu.
            A noção de cultura, já muito confundida com sociedade, principalmente quando a delimitação da cultura como objeto de pesquisa ainda está em construção entre os antropólogos no começo do século 20 (ou mesmo depois de notáveis revisões e trabalhos notórios na antropologia)[7], encontra em Bourdieu locais bem delimitados, uma separação adequada e de rara confusão, assim julgo. A sociedade, conjunto de grupos sociais posicionados desigualmente num campo social, possui culturas diversificadas, as quais podem ser caracterizadas por legítimas e ilegítimas, criadas dentro de condições sociais e históricas específicas para a produção de sua significação (prop. 1.2.2). Dito isto, uma mesma sociedade tende a funcionar, para Bourdieu, como uma arena de combate entre grupos e classes pela definição e imposição da cultura legítima, a consagrar a sua própria cultura como a única cultura possível (prop. 3.2.2.1).
            Interessante é perceber como a cultura incorporada, mediante trabalho pedagógico ou trabalho escolar, contribui para a criação de um habitus (prop. 3.1), cuja natureza das práticas estão presentes nos trabalhos de Bourdieu demasiado vinculado ao corpo, e, para isso, poderíamos nos perguntar se este recurso conceitual de cultura remonta à França iluminista e sua materialidade ou, por outro lado, poderia ser a incorporação de um espírito (o geist da tradição alemã) dos pensamentos dominantes, da cultura na sua forma imaterial.
            As formas de aquisição do capital cultural responderiam este impasse[8]. Num primeiro momento, sua acumulação se deve à incorporação pessoal via socialização de experiências externas ao indivíduo, que pela inserção de um corpo vivente a essas experiências se apropria delas para ser seu capital mais íntimo. Estas experiências incorporadas contribuem para a decifração da cultura objetivada e do desenvolvimento do gosto pessoal (socialmente formado). Portanto, como numa fusão das tradições francesa e alemã, o capital cultural acontece na relação entre sua forma incorporada e objetivada, ou, dito de outra forma, do encontro do espírito humano com a matéria.
            A cultura depende da relação criada entre um corpo, dotado de um habitus, e o meio a partir do qual apreende, ou ainda, somatiza os sentidos dado por outros seres viventes. É neste sentido dado que se inicia a violência simbólica, impondo sua força eminentemente simbólica à relação, tornando-a relação de forças para a incorporação do sentido que sustenta as práticas e entendimento culturais do mundo (prop. 0). A cultura assemelha-se a uma força cuja aprendizagem perdura sem que seja necessário reafirmar constantemente o comportamento desejado, de modo que o corpo educado é capaz de agir aos comandos prévios sem que haja alguém para mandá-lo, fazendo parecer um ato voluntário, de sua própria vontade (prop. 2.3.2.1 e 3.2.2).
            Nesse jogo de aceitação entre o dominado e a cultura dominante, não é somente a cultura que age sobre o agente. Ele mesmo é capaz de usá-la para seus projetos pessoais de forma que não será necessário apreender todo tipo de cultura dominante, apenas aquelas cujo valor é rentável num determinado campo (prop. 2.1.1.2).
            De toda forma, o valor atribuído ao dado cultural em questão está mais na afirmação da instituição escolar sobre a importância dessa cultura apresentada como cultura desinteressada[9], daí cultura universal. A escola detém, nesta lógica, o conhecimento em sua forma erudita, objetiva, pertencente a todos, enquanto a cultura popular, dotada de subjetividade e particularidade, não se apresenta como lugar comum, como se impedisse qualquer comunicação que exige o ato educativo.
            Feito o trabalho de inculcação da diferenciação entre a alta cultura e a baixa cultura (erudita e popular, respectivamente), através do poder da instituição escolar de ensino de dissimular o arbitrário cultural enquanto tal e criar suas próprias condições de reprodução necessárias para o exercício de sua função, ela aparenta a neutralidade (prop. 4.1.2 e 4.2). Sem nunca ter-se aproximado verdadeiramente dessa alta cultura, o dominado chega a imaginar que é nativo dela, visto que a escola proporcionou essa aproximação, entretanto, sofre um atraso cultural causado pela não sincronicidade entre o arbitrário aprendido e as transformações sofridas em seu grupo original (prop. 4.1.2.1).
            Sem mencionar a quantidade de alunos eliminados com o exame escolar ou antes dele (entre a conclusão de um nível e o ingresso no próximo), os quais servem para confirmar que
As diferentes trilhas e os diferentes estabelecimentos [liceus e escolas modernas, por exemplo] atraem muito desigualmente os alunos das diferentes classes sociais em função de seu êxito escolar anterior e das distinções sociais, diferenciadas segundo as classes, tipos de estudos de estabelecimentos, compreende-se que os diferentes tipos de curriculum asseguram oportunidades muito desiguais de se atingir o êxito no ensino superior.[10]

            Desta forma, a escola apresenta diferentes currículos para diferentes estabelecimentos escolares, indicando diferenças entre as culturas ensinadas (ainda fragmentada e impondo sua força de violência simbólica), contribuindo para modificar as esperanças subjetivas dos alunos com relação à escola a partir de sua relação com a classe social de origem.[11]
            Apesar de todo o estudo e dedicação consagrados a essa cultura, o encontro com um verdadeiro nativo, nascido na cultura dominante, parecerá obra do dom em razão da naturalidade, destreza e originalidade que seu habitus lhe proporciona, por exemplo, no uso da língua materna. Não é para menos que o uso da linguagem pode ser atrelado ao estado do ser humano cultivado, daquele que se apresenta com desenvoltura, brilhantismo e carisma pessoal em sua oratória, como no caso dos professores dos liceus, segundo Bourdieu e Passeron.          
            A reprodução cultural da cultura dominante pela instituição escolar se deve ao seu alto valor no mercado profissional, como demonstrado no gráfico Estrutura de Diferentes Públicos Escolares Segundo a Profissão do Pai[12] e no Gráfico Num. 2[13]. A instrução decorrente do diploma escolar é tanto mais valorizada pela família quanto maior sua importância no mercado de profissões, o que leva essas mesmas famílias a apreciar e se importar com a educação escolar dos filhos quanto mais sua (alta) formação escolar é exigida por esse mercado e necessária para manter sua posição social ou superá-la. Pode-se falar, portanto, na existência de um mercado escolar (prop. 2.3.1.2) regulando diferentes valores para diferentes práticas culturais.

            



       O valor do capital cultural justifica-se também nesta relação com o mercado. Não sendo todas as culturas (e práticas geradas a partir delas) a apresentarem o mesmo rendimento nos mercados econômico e simbólico, apenas algumas cumprirão a função de aproximar a educação familiar (trabalho pedagógico primário) da educação oferecida pela escola (trabalho pedagógico secundário) (prop. 3.3.1 e 3.3.1.2). Estarão melhores posicionados nos sistemas avaliativos aqueles que já foram previamente iniciados na cultura escolar (detém algum conhecimento escolar; nem tudo o que se aprende na escola é novidade, apenas continuação da educação familiar) (prop. 3.3.1.3), ou ainda, aqueles com disposições escolarizadas, dotados de um habitus escolar (estão familiarizados com as técnicas de escrita, como segurar o lápis, por exemplo) (prop. 3.3.2.1 e 3.3.2.3).


         
          Sendo assim, Bourdieu oferece alternativas para pensar a cultura como forma de dominação devido a existência de classes sociais numa mesma sociedade procurando impor seu ponto de vista aos demais, homogeneizando e reduzindo as práticas culturais apenas àquelas socialmente aceitas (pela visão de mundo dominante), ainda que seja necessário a existência de práticas ilegítimas para justificar o uso das ditas legítimas.
            Se as culturas possuem elementos, traços ou padrões que nos permita compará-las, não é a preocupação maior de Bourdieu, e se pudéssemos fazê-lo seria na comparação entre as forças exprimidas nas práticas que contribuem para a reprodução da cultura legítima, ou seja, o habitus servindo de mediação entre a estrutura e as práticas necessárias para reproduzir a estrutura a partir de sua incorporação, práticas altamente valorizadas (simbólica e economicamente) pelo mercado escolar e incumbidas ao sistema escolar de reproduzi-las como cultura legítima.
            A cultura pode ser definida a partir de duas situações de observação: é aquilo que os portadores do habitus compreendem como cultura (perspectiva do agente no campo); ou será toda prática que gera um sentido possível de ser partilhado pelos agentes produtores da práxis (perspectiva do cientista social).
            Estas análises tão demoradas sobre os jogos sociais de poder, levados a cabo por Bourdieu em grande parte de sua produção (se não toda ela), podem levar ao equívoco de pensá-lo como alguém que utiliza a cultura apenas num sentido reprodutivista ou mesmo como um grande pessimista da razão (a competição pela definição do que é cultura é inevitável, o habitus é irreversível[14]), sem espaço para diagnósticos mais felizes acerca de paradigmas mais democráticos para as culturas.           Para todos os efeitos Bourdieu já respondeu estas questões em entrevista ao dizer

Quando você diz as coisas são assim, pensam que você está dizendo as coisas devem ser assim, ou é bom que as coisas sejam dessa forma , ou ainda o contrário, as coisas não devem ser assim. [...] Não digo que conserva [a escola], reproduz; digo contribui para conservar.[15]

            Este outro paradigma seria possível na impossibilidade da escola valer-se de seu monopólio sobre a violência simbólica para reproduzir as hierarquias nas relações sociais como hierarquias das relações escolares sob o discurso dissimulado de cumprir sua função de formação e seleção técnica sancionada pela obtenção do diploma escolar, visto que o sistema escolar incumbe-se, pela ação pedagógica, de realizar a lógica de reproduzir a estrutura de relações de classes nas relações escolares pela distribuição desigual de capital cultural e posterior eliminação dos alunos menos hábeis a dominar simbolicamente as práticas culturais dos grupos dominantes, valendo-se, ainda, de um controle do êxito de classes menos favorecidas para fazer crer que a cultura particular é de fato cultura geral, omitindo as forças simbólicas do arbitrário cultural que culminam no reconhecimento da cultura dominante como cultura legítima. Este diagnóstico bourdieusiano explica a dominação simbólica valendo-se das instituições escolares como possuidoras de um papel importante no sistema de reprodução da cultura dominante, dissimulando o conhecimento dos agentes sobre suas posições de dominados e dominantes no campo.




[1] Pierre Bourdieu, Jean-Claude Passeron. A Reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Petrópolis, Vozes. 2008.
[2] Os postulados ou proposições do Livro 1 de A Reprodução serão mencionados durante o texto para delimitar bem o interesse da argumentação.
[3] Cf. Denys Cuche. A noção de cultura nas ciências sociais. 2ª ed. Bauru, EDUSC. 2002.
[4] Pierre Bourdieu, Jean-Claude Passeron. La Reproducción: elementos para una teoria del sistema de enseñanza. Distribuiciones Fontamara, S.A. 1996. P. 119. Para mais gráficos ver Capítulo 1 do Livro 2.
[5] Pierre Bourdieu. A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura. In: Maria Alice Nogueira; Afrânio Catani (orgs.). Pierre Bourdieu: Escritos de Educação. Petrópolis: Vozes. 2008. P. 39-64.
[6] C.f. Pierre Bourdieu. Estructuras sociales y estructuras mentales. In: La nobleza de estado: educación de elite y espíritu de cuerpo. Buenos Aires, Siglo veintiuno. 2013. P. 13-22.
[7] Ver Adam Kuper. Cultura: a visão dos antropólogos. Bauru, EDUSC. 2002. Ver Também Denys Cuche. A noção de cultura nas ciências sociais. 2002. Principalmente o segundo capítulo de ambas as obras.
[8] C.f. Pierre Bourdieu. Os três estados do capital cultural. In: Escritos de Educação. Petrópolis, Vozes. 2007. P. 71-79.
[9] C.f. Pierre Bourdieu. Sistemas de ensino e sistemas de pensamento. In: A economia das trocas simbólicas. São Paulo, Perspectiva. 2007. P. 203-229.
[10] Pierre Bourdieu; Jean-Claude Passeron. A Reprodução. 2014. P. 139.
[11] C.f. Pierre Bourdieu. Reprodução social e reprodução cultural. In: A economia das trocas simbólicas. São Paulo, Perspectiva. 2007. Podemos perceber melhor este argumento neste texto visto a quantidade de estatísticas que comprovam a forte relação dos filhos com a herança do capital paterno.
[12] Pierre Bourdieu; Jean-Claude Passeron. Reprodução social e reprodução cultural. 2007. P. 309.
[13] Pierre Bourdieu, Jean-Claude Passeron. La Reproducción. 1996. P. 141.
[14] Conforme proposição 3.3. Para uma construção mais móvel e flexível do conceito de habitus ver Loic Wacquant. Esclarecer o habitus. Educação&Linguagem, ano 10, n.16, p. 63-71, jul-dez 2007.
[15] Maria Andréa Loyola apud Nadia Gaiofatto Gonçalves. Apresentação. In: Pierre Bourdieu, Jean-Claude Passeron. A Reprodução. 2014. P. 14.